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Date post: 11-Oct-2015
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  • A construo do espao tnico roraimense, ou:os Taurepng existem mesmo?

    Erwin H. Frank

    Professor Adjunto da Universidade Federal de Roraima

    RESUMO: Tomando a publicao em 1989 e 1990 de dois folhetos hist-rico-antropolgicos como um esforo por parte da Diocese de Roraima com afinalidade tipicamente orientalista de impor um consenso sociedaderoraimense quanto realidade tnica do estado, nosso trabalho reconstri ahistria de construo deste consenso, desde o sculo XVII at os trabalhosetnogrficos decisivos de Theodor Koch-Grnberg.

    PALAVRAS-CHAVE: etnicidade, tribalismo, orientalismo, Roraima, Taurepng.

    Introduo

    Entre 1989 e 1990, o Centro de Informao da Diocese de Roraimalanou dois volumes de uma Coleo Histrico-Antropolgica (CIDR,1989 e 1990) com a finalidade declarada (alis, por ningum menos queDom Aldo Mongiano, ento bispo de Roraima, na sua Apresentaoao primeiro volume) de proporcionar ao leitor uma viso do ndio,que permita equacionar corretamente o problema (1989: 3; grifo meu). De-safortunadamente, o bispo no especifica o problema em questo. Mas,no temos dvidas, se tratar da poltica declaradamente antiindgenado recm-criado estado de Roraima.

    Ora, tendo em vista o considervel esforo logstico e, sobretu-do, financeiro que, para uma diocese pobre como a de Roraima,

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    com certeza significou a formao e manuteno durante mesesde toda uma equipe de pesquisadores altamente qualificados1,uma per-gunta surge espontaneamente: quais foram mesmo osmotivos que levaram Dom Aldo e a cpula da igreja catlica locala considerar tal esforo indispensvel2?

    Neste trabalho defenderei a tese que, no fundo, as intenes do bispo edos seus colaboradores foram orientalistas, o que em seguida esclarecerei.

    Orientalismo

    Como Edward Said (1979) nos ensinou j h vinte anos, longe de sermeramente outra cincia regional, orientalismo uma espcie de con-senso, pelo qual certas coisas, certo tipo de pronunciamentos, certo tipode obras [so] vistas pelo Orientalista [e seus leitores ocidentais, diria eu]como corretos (: 202)3. O orientalismo pode, pois, ser tomado como ummodo regulamentado (ou orientalizado) de escrever, olhar e estudar que,segundo Said, cria o Oriente, no como um espao geogrfico particu-lar, mas sim como conhecimento verdadeiro do Ocidente (idem).

    certo que Edward Said aplicou o termo especificamente a umconjunto de cincias regionais (tais como: Egiptologia, Sinologia,Indologia etc.) que surgiram no sculo XIX para dotar o Ocidente(sobretudo a Frana e a Inglaterra, naquele momento em rpidaexpanso colonial) com uma viso cientificamente legitimada doamplo espao entre o Egipto e o Japo. Mas, como notou prontamen-te a maioria dos participantes da viva discusso provocada pelas tesesde Said (e finalmente, at ele mesmo), o orientalismo como estilo depensar [ocidental, claro], fundamentado em distines ontolgicas eepistemolgicas (entre o Ocidente e tudo que fica fora deste espaoprivilegiado), constitui toda uma viso do mundo, associada a umametodologia e estruturas institucionais autorizadas para produzir,e institucionalizadas para autorizar tal viso, que em nada se confi-ne ao Oriente geogrfico.

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    Existem, sem dvida, especifidades! Mas se o orientalismo mesmo(como insiste Said) muito mais que meramente um saber especficosobre uma regio particular, um modo particular de relacionamen-to que o Ocidente desenvolveu (e institucionalizou em museus, bi-bliotecas e departamentos universitrios) no exato momento (e, segundoSaid, com a finalidade implcita) de se impor, no apenas sobre a Arbiae ndia, mas sobre a totalidade do mundo no ocidental, ento no cabedvida que a Antropologia (nica cincia especializada exclusivamen-te e particularmente nesta totalidade) constitui mesmo a cincia maisorientalista de todas! Pois, muito mais que a Indologia ou a Sinologia,a Antropologia uma disciplina4 enormemente sistemtica, pela qualo Ocidente foi [e continua sendo] capaz de manusear, e at produzir, oOriente [o mundo moderno, diria eu] politicamente, sociologicamen-te, militarmente, ideologicamente [e] cientificamente (: 3). Nesse sen-tido, chamar a Antropologia de orientalista no (como sugeriu um dospareceristas annimos deste ensaio) acus-la de errada ou artifici-al nos seus resultados, mas sim, reconhecer o seu papel particular naconstituio da relao entre a civilizao ocidental atual com o restodo mundo.

    O olhar correto e suas alternativas

    Visto por este ngulo, o carter e as finalidades eminentementeorientalistas das duas publicaes acima aludidas, lanadas pelo Cen-tro de Informao da Diocese de Roraima em 1989 e 1990, resultambvios. Nas reveladoras palavras (outra vez) de Dom Aldo, o objetivofoi mesmo o de definir, com o mximo de autoridade cientfica que aDiocese pudesse mobilizar, uma viso do ndio, que permita equacionarcorretamente o problema e, com isso (eu acrescentaria), desautorizarqualquer viso alternativa, vigente na sociedade roraimense da poca.

    Ora, a viso correta que, num s momento, as duas publicaesdo CIDR definem e propagam, encontra-se exemplarmente resumida

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    pelo prprio bispo, ainda na j citada Apresentao. Diz DomAldo: Os ndios constituem grupos de pessoas, que se reconhe-cem com afinidades scio-culturais, conforme suas caratersticas,mesmo fazendo parte de um nico projeto poltico, que o Bra-sil [...]. Qualificar o ndio como caboclo, pensar que para ser bra-sileiro necessrio no ser ndio, cometer um erro imperdo-vel (1989: 3-4; grifos meus). E: O primeiro passo para resolvero problema do ndio em Roraima [...] conhecer o prprio n-dio. O segundo passo dar condies aos povos ndios de vive-rem do seu jeito. dar terra (idem).

    Analisando a seqncia e a nfase de tais asseveraes, fica clarocontra que tipo de viso elas se opem: combatem uma viso que negaterra (territrios/reservas) aos indgenas de Roraima, pela negaoda prpria indianidade deles (chamado-lhes caboclos5) e pelo fatode serem integrantes de povos scio-culturalmente constitudos. Opem-se tambm (e, talvez, sobretudo) idia de que para ser brasileiro necessrio no ser ndio, ou seja, ao conceito de integrao.

    Ora, para provar o equvoco da viso combatida, e (re)instalar toda averdade (com toda a autoridade da cincia6), sobretudo o primeiro dos doisvolumes indicados informa inicialmente que, muito antes da chegada doprimeiro brasileiro (no indgena), o centro e o norte do atual estado deRoraima j foram ocupados por um nmero considervel de gruposscio-culturais (menciona-se uns 25 que, ao contrrio de Dom Aldo, osautores preferem chamar de tribos) que, desde o sculo XVIII, em con-seqncia de um longo e sangrento confronto com um crescente nmerode intrusos no-indgenas, foram reduzidos a, na atualidade, basicamentequatro: Makux, Taurepng, Ingaric e Wapixana, os quais, asseguramambos os textos, ainda so povos autnomos, o que se comprova su-postamente pelo fato que (1) mantm nomes prprios, que (2) ocu-pam territrios prprios (mesmo que ameaados por terceiros), e que (3)mostram ainda particularidades (scio) culturais, embora, os autorestenham notveis dificuldades em especificar tais particularidades, em ca-

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    ptulos dedicados aos modo de vida destas quatro tribos.Na parte restante deste trabalho discutirei como tal viso profunda-

    mente tribalista7 da histria e realidade atual de Roraima (enquantoespao tnico) foi historicamente construda, e reconstruda, inmerasvezes, ao longo dos ltimos 250 anos, discusso na qual os assim cha-mados Taurepng tero um papel especial.

    Construo da paisagem tnica roraimense: sculo XVIII

    Os primeiros relatos sobre a estruturao interna do espao tnico noatual estado de Roraima esto marcados pelo olhar tribalista, tpicodo orientalismo antropolgico ocidental com relao s sociedades noocidentais e no estatais. Na realidade, os primeiros documentos dosquais dispomos so, basicamente, levantamentos de grupos tribaissob nomes, supostamente deles prprios, associados a determinadosposicionamentos geogrficos8. Contudo, os nomes e territrios indica-dos divergem, e muito, de uma fonte para outra. H autores que inter-pretam tais divergncias como evidncia de migraes ou de um im-pacto especificamente devastador do contato inicial, causando aextino sbita de grupos inteiros. Tais interpretaes at podem estarcorretas, em alguns casos, mas, do meu ponto de vista, elas no po-dem e nem devem ser aplicadas mecanicamente.

    Uma hiptese alternativa considera as mesmas variaes de nomese territrios tribais uma conseqncia da fuso aditiva inicial de v-rios sistemas de classificao social nativos9 (e neobrasileiras locais)alternativos, pr-existentes na rea, e da lenta adaptao posterior doresultado dessa fuso s normas simplificadoras de um olhar tribal oci-dental que, no fundo, equaciona tribos com grupos lingsticos. Taladaptao levava, quase sempre e em qualquer lugar, a uma drsticareduo em nmero e estandardizao, at na ortografia, de nomes tribais.

    Se compararmos, por exemplo, as principais descries da paisagemtnica roraimense do sculo XVIII10, encontramos, segundo Alexandre

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    Rodrigues Ferreira (1994a e 1994b), Parauana junto comAruaquiz e Macs, no mdio rio Branco e o Catrimani e, juntocom Aturahiz, tambm no rio Anau. Um pouco mais ao norte,no mdio e alto curso do rio Branco, moram os Pauxiana, povoento dominante. Vm em seguida os Guaxumar, Tapicari,Sapar e Auaqui dos rios Mucaja e Cauam e, finalmente, noUraricoera e os seus afluentes, os Uapexanas, Trimicanes, Peralvilhos(ou Peravilhanos), Caripunas e outros Tapicarys. Nos rios Surum,Tacut e Mah h ainda os Uapexanas, juntos com Sucurys,Yaricuna, Carapys, Uaics e, finalmente, tambm os Macuxis.

    Em Lobo DAlmada (1861), por outro lado, deparamo-nos com in-formaes surpreendentemente distintas (que dificilmente podem serinterpretadas como simplesmente adicionais), apesar de seu relatoser contemporneo ao de Ferreira e de, provavelmente, ter-se benefi-ciado dos mesmos informantes, indgenas ou no indgenas. O autorcorrobora Ferreira com relao aos Paravilhanos (se que esses somesmo os Peravilhanos deste ltimo), embora os desloque do Uraricoe-ra para o rio Tacut. DAlmada confirma tambm a presena dosMacux na Serra do Sol (entre Surum e Ma), bem como os Wapixana,Auaquis (os Aruaquis de Ferreira?), Sapar e Caripuna, embora estesltimos, segundo este autor, ocupem terras ao este do rio Tacut e partedo rio Rupununi. Os Waik, por outro lado, so indicados numa reamuito distante daquela que Ferreira indica, sendo encontrados agoranos rios Amajar e Parime, junto aos Acaparis (ou Acarapi?), Arina eTucurupis (dos quais Ferreira nada fala).

    Tambm no alto Uraricoera aparecem novas tribos, tais como os Qui-nhaus, Procotse e Guimaras, alis, acompanhados agora por aquelesMakus, que Ferreira localizou no baixo rio Branco. Aparecem ainda osChaperos e Guajuros. Estranha-se, porm, a ausncia total de Yaricuna,que muitos autores consideram os nossos futuros Taurepng (Farage,1991: 127).

    De nada adianta tentar resolver as contradies entre essas fon-

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    tes, consultando ainda outras fontes e autores contemporneos (como,por exemplo, Sampaio 1872). Seguramente, o resultado de tal proce-dimento seria outros nomes tribais, dos quais ningum sabe o refe-rencial social objetivo.

    Como, ento, interpretar tudo isso? A minha proposta a seguinte:entre 1770 e 1790, num momento de intensa preocupao do podercolonial portugus na Amaznia com a identificao e defesa da fron-teira norte da colnia, os encarregados por esse poder da tarefa de or-ganizar tal defesa in situ (entre outros, Ferreira e DAlmada) tentaramde tudo para formar uma viso clara da estruturao tnica da regio,com a finalidade decididamente orientalista, de (nas palavras j cita-das de Said) domin-la melhor, politicamente, sociologicamente,militarmente, ideologicamente [e], cientificamente. Para isso, eles re-gistram nomes e territrios de grupos sociais de natureza altamentevarivel. Registram todos esses nomes igualmente como tribos (nosentido pr-formado que importaram para a rea) e as relacionam comotais nas suas obras.

    Construo da paisagem tnica: sculo XIX

    No temos tempo aqui para revisar detalhadamente a histria da extrema-mente lenta formao e consolidao do atual quadro ortodoxo da com-posio tnica do espao roraimense, como o que foi apresentado, entreoutros, nas duas publicaes da Diocese de Roraima de 1989 e 1990. suficiente indicar aqui que, na primeira metade do sculo XIX, vrios au-tores importantes contriburam decisivamente para a formao de tal or-todoxia, basta citar, entre eles, os irmos Robert e Richard Schomburgk.O mesmo vale para a segunda metade daquele sculo, quando, entre ou-tros, Henri Coudreau e Everard ImThurn percorreram a rea.

    Ora, comparando as informaes proporcionadas por esses autores,e contrastando-as com as fontes do sculo anterior, o que encontra-mos alm, claro, de uma variedade de novos nomes tribais, nunca

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    antes e nem depois registrados : (1) o desaparecimento com-pleto de muitas tribos, proeminentes ainda nas fontes do sculoXVIII, tais como os Paru, Guayxumar, Tapicari, Arina,Acarapi, Sucuri etc.; (2) o lento, mas ao cabo, total desapareci-mento dos Paraviana e Pauixana; e, finalmente; (3) a substitui-o destes ltimos pelos anteriormente quase insignificantesWapixana e Macux, como tribos dominantes na rea. Do meuponto de vista, muito mais do que uma conseqncia de tendn-cias demogrficas opostas em tribos vizinhas, essas mudanas tes-temunham a lenta formao e adeso, por parte de nossos teste-munhos, a uma viso nica da paisagem tnica roraimense,estruturada pelo olhar tribal ocidental, em decorrncia do fatode que, antes de penetrar na rea, os testemunhos do sculo XIXse prepararam, cada vez mais, estudando as obras dos seus pre-decessores.

    Segundo nossa anlise, ainda preliminar, a viso cada vez maiscompartilhada por nossas fontes do sculo XIX fundamenta-se numcontraste, tanto lingstico como ecolgico, entre membros da fa-mlia lingstica aruak, que ocupam as savanas centrais, e os mem-bros da famlia caribe, localizados nas montanhas do extremo nor-te do estado. A partir desse contraste, os Wapixana (aruak) soconsiderados o paradig-ma de ndio do lavrado, a absorver, len-tamente, todos os seus vizinhos do mesmo estoque lingstico ehabitat. Os Macuxi, por sua vez, so tidos como o paradigma dendios das montanhas, bem como de toda a famlia lingsticacaribe. Uma vez estabelecidos como prototpicos, os dois gruposseguem canibalizando as identidades tribais alter-nativas, aindasobreviventes na sua vizinhana, como os Amariba e os Atorai, nocaso dos Wapixana, e os Arecuna dos rios Parime e Amajar, ou-trora considerados muito mais importantes, no caso dos Macuxi11.

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    Construo da paisagem tnica: Koch-Grnberg

    O autor que, sem dvida, mais do que qualquer outro, contribuiu paraa formao do quadro tnico ortodoxo na atual Roraima (falo daquelaortodoxia definida nas publicaes do CIDR) foi Theodor Koch-Grnberg, antroplogo alemo que faleceu em Vista Alegre, perto deCaracara, Roraima, no dia 8 de outubro de 1924.

    So trs as obras nas quais esse famoso etnlogo analisou a conste-lao tnica no norte de Roraima (e no extremo sul da Venezuela). Aprimeira dessas obras o dirio da sua ousada viagem feita em 1912,de Manaus ao cume do monte Roraima, e de Boa Vista at o rioOrenoco, de onde voltou para Manaus atravs do canal Caciquiare. Essedirio foi publicado, ao que tudo indica sem grandes modificaes, noprimeiro volume (de um total de cinco) da obra-prima desse autor, VomRoroima zum Orinoko. O segundo trabalho um ensaio que trata daDistribuio de povos entre rio Branco, Orinoco, rio Negro e Yapur,publicado em Festschrift Eduard Seeler, em 1922. Finalmente, h ain-da o primeiro captulo do volume trs da obra-prima acima indicadaque, na realidade, uma verso abreviada da obra de 1922, agora sobo ttulo de Land und Leute (Paisagem e povos)12.

    Ora, muito mais que simples resumos etnogrficos, esses trstrabalhos constituem o resultado at hoje mais amplamente aceito,entre todos os intentos de algum antroplogo em descobrir e defi-nir, de uma vez para sempre, a verdade verdadeira (cientfica) daconstituio tnica de Roraima. Com essa finalidade, Koch-Grnbergrealizou no campo uma srie de manobras metdicas, tipicamenteorientalistas, sobretudo o confronto sistemtico e constante datotalidade dos seus informantes com um esboo da paisagem tni-ca de Roraima, elaborada a partir de todas as fontes histricas aoseu alcance.

    No seu ensaio de 192213, Koch-Grnberg comea a sua exposio, ca-racteristicamente, com uma referncia s primeiras notcias seguras so-

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    bre a rea, que encontra em Lobo DAlmada. Informa-nos que aqueleautor encontrou 22 tribos distintas no centro-norte de Roraima, dasquais Koch-Grnberg declara a maioria extintas ou que dentrode pouco desaparecero, j que [de muitos deles] sobrevivem so-mente alguns restos lastimosos (: 205).

    Estamos diante de uma manobra orientalista importante, que per-mite a nosso autor trs operaes fundamentais: primeiro, essamanobra permite a Koch-Grnberg eliminar a priori da sua verso doespao tnico roraimense todos aqueles grupos (como os Parauian,Amariba, Tucuripis, Acarapis, Arinas e Chaperos) identificados emfontes do sculo XVIII, mas ausentes das fontes do sculo XIX (ex-tintos); e, segundo, permite tambm eliminar do quadro da conste-lao tnica roraimense de 1912 aqueles grupos tribais mencio-nados por autores do sculo XIX, ignorados como tais pelosinformantes consultados por Koch-Grnberg no campo; terceiro,essa manobra introduz no quadro tnico roraimense a importantecategoria de tribos reduzidas a restos miserveis, categoria quecompreende todas aquelas tribos identificadas nas fontes, tantodo sculo XVIII como do sculo XIX (ou apenas nestas ltimas),mas que os informantes de Koch-Grnberg em 1911 parece que ig-noram como tais. Em resposta a seus insistentes questionamentossobre as residncias de Sapar, Wayumar, Purukot e Mak, porexemplo, os informantes lhe apontam apenas um ou outro indivduoou (no caso dos Pauischian, Marakan e Auak) as respostas so sem-pre extremamente vagas.

    Ora, a importncia desta curiosa categoria na histria da formaode um quadro ortodoxo do espao tnico roraimense est no fato que,posteriormente, nas dcadas que seguem a morte de Koch-Grnberg,os grupos assim caracterizados no so mais sequer procurados pelospesquisadores, pois no estariam eles j quase extintos nos tempos dogrande antroplogo alemo14? Por outro lado, devido total confianade Koch-Grnberg na veracidade das informaes de Coudreau e Thurn

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    e, sobretudo, dos irmos Schomburgk (1841 e 1848, respectivamen-te), autores que, na sua totalidade, tinham formado as suas respectivasverses da paisagem tnica roraimense nas savanas do Essequibo.

    Koch-Grnberg incluiu na sua viso dessa paisagem uma srie degrupos, na sua faixa oriental, que, antes dele, no faziam parte dessequadro como, por exemplo, os Akawaio, os Ingarik e os Patamona. Acompleta ausncia dessas tribos no mapa tnico de autores que comoo prprio Koch-Grnberg enfocaram esse espao, desde as margensdo rio Branco (ou da grande savana venezuelana), explica, alis, assrias dificuldades que Koch-Grnberg encontrou no campo, para ve-rificar a existncia e importncia deles, atribudas por seus autores pre-feridos do sculo XIX (1922: 210-13).

    O caso dos Ingarik particularmente revelador. Por um lado, embo-ra no seu caminho ao cume do Monte Roraima o antroplogo tenhacruzado o territrio desse grupo, conseguiu identificar como tal, somen-te um homem j velho, casado com uma Taulipng (: 21). Por outro,entre os Taulipng e Macux do Surum e Cotingo, Koch-Grnberg en-controu uma rica prosa, relatando guerras sangrentas entre estes ho-mens da mata. Mesmo assim, persistiu duvidando da existncia dosIngarik como tribo autnoma, documenta-o uma carta que dirigiuao missionrio jesuta guianense Cary-Elwes, solicitando explicaessobre a relao exata entre os Akawaio da Guiana e os Ingarik do nor-te de Roraima. O missionrio, numa carta em que Koch-Grnberg citaem todos os seus trabalhos, respondeu: Acho que no existem e nun-ca existiram Ingariks [...] os Makuschi falam dos Patamona comoIngariks, os Arekuna chamam os Akawaio de Ingariks etc. (apudKoch-Grnberg, 1922: 22). Afinal, claro, Koch-Grnberg decidiu queos Ingarik existiam mesmo e, alis, como tribo distinta dos Akawaio.Ora, para aqueles que, por acaso, no conhecem a rea, os Ingarik soos Akawaio da Guiana Inglesa, ou melhor, tanto os que no Brasil soidentificados como Ingarik, como aqueles que na Guiana so classifi-cados como Akawaio pertencem a um s grupo de autodenominao

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    Kapon (junto aos Patamona), oposto aos Pemon, aos quais per-tencem os Macuxi, Arekuna, Puru-kot, Pemon e os Taulipng.

    O olhar tribal de Koch-Grnberg

    Tudo o que vimos at agora revela Koch-Grnberg como o fiel in-trprete das suas prprias autoridades mximas (sobretudo, osSchomburgk e Coudreau), reinterpretadas, claro, luz do prpriotrabalho de campo que era, em grande parte, um esforo de verifi-car (pace Popper!) informaes a priori tomadas como indubitveis.Em conseqncia, Koch-Grnberg interpreta toda e qualquer dife-rena significativa, entre aquilo que estas autoridades indicam eaquilo que encontra no campo, como outra conseqncia de umadinmica intertnica nos lavrados de Roraima, profundamente avessa sobrevivncia indgena. Isso explica, por exemplo, porque Koch-Grnberg no se surpreendeu com a descoberta que dos Wayumar,tribo que, segundo Richard Schomburgk (1848), em 1838 contavacom trs malocas, sobreviveram somente dois irmos e um desmonteabandonado, apenas oito dcadas mais tarde. As diferenas aindamais dramticas entre as suas principais fontes e aquilo que conse-gue verificar em campo no fazem Koch-Grnberg duvidar das pri-meiras; nem mesmo lhe ocorre a hiptese de que os Wayamur,identificados por Richard Schomburgk em 1838 e aqueles dois ir-mo que lhe so apresentados em 1911, possam no ter nada maisem comum. Ao contrrio, a suposta sobrevivncia dos doisWayamur que segundo o prprio dirio lhe so apontados emresposta a perguntas insistentes por um Mayongong residente damaloca mista (Tauripang, Makuxi e Wapixaba) de Koimlemong,nas savanas do rio Cotingo, tomada como outra prova contun-dente da confiabilidade de Richard Schomburgk, e de uma supos-ta decadncia fsico-social e moral indgena generalizada, em con-

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    seqncia do contato entre esses primitivos com a civilizao.O papel de Koch-Grnberg na formao daquilo que chamo de or-

    todoxia orientalista do quadro tnico de Roraima, criado por esseantroplogo e vlido at hoje (cf. Migliazza, 1978; Hemming, 1994),no se limita a um passivo transmissor e verificador (ou corretor) deinformaes preexistentes. Tambm encontramos em Koch-Grnberguma srie de tribos nunca antes mencionadas por algum. So elasos Seregng e os Plyemko, do alto Cotingo; os Pischauk, do alto Surum;e, finalmente, os Taulipng! verdade que, com exceo dos ltimos,nenhuma dessas tribos entraro no quadro ortodoxo da paisagem t-nica roraimense atual, principalmente, porque o prprio Koch-Grnbergno acreditava muito nelas. Com relao aos Seregng e Plyemko, oantroplogo alemo sugere uma provvel subordinao deles aosIngarik (: 22). Quanto aos Pischauk descreve-os, tanto no dirio comono ensaio de Festschrift, em termos tais que sugerem a natureza mera-mente mtica deles15. Se, mesmo assim, nosso autor decidiu, afinal,inclu-los no seu quadro da constelao tnica de Roraima, a razo porele declarada que nunca conseguiu fazer os informantes ndios admi-tirem a inexistncia desses grupos.

    Com isso, chegamos, finalmente, aos Taulipng, nica contribuiorealmente original e permanente de Koch-Grnberg ao quadro atualda paisagem tnica do norte de Roraima, ainda que seja uma contri-buio bastante duvidosa.

    Ento, os Taulipang existem mesmo?

    O pargrafo do dirio no qual Koch-Grnberg (1916-1928, v.1: 52) narraa descoberta dessa tribo bem conhecido:

    La tribu de los Taulipng est ampliamente diseminada. Viven desde laparte Norte del Surum hasta el Roraima, la gran sierra arenisca en la fronterade Brasil, Venezuela y la Guayana inglesa, y hacia el Sudoeste, ms all del

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    Alto Perime y del Alto Majary, hasta la gran Isla Marac de Uraricoera.El nombre de la tribu Taulipng lo descubr yo. A estos ndios losllaman Yarikuana los Wapischana y conforme a ellos, tambin losblancos. Todos los viajeros anteriores, como los hermanos Schomburgk,Appun, Brown y otros, los llaman Arekuna, o Alekun. Solo despusde una prolongada estancia entre ellos, me enter de que elverdadero nombre de su tribu era Taulipng y esto lo encontrcomprobado en los textos que grab16.

    Ou seja, Taulipng , segundo Koch-Grnberg, aautodenominao de uma tribo do norte de Roraima, chamadaYarikuna ou Arikuna pelos seus vizinhos Wapishana e pelos bran-cos. Alis, a classificao pelos Wapishana e pelos brancos dosTaulipng parece ao antroplogo alemo duplamente equivocada,pois se trata, supostamente, de um grupo bem distinto dos verda-deiros Arekuna17, os atuais Pemon do sul da Venezuela. aindaimportante apontar que, no seu ensaio para a Festschrift..., Koch-Grnbergestimou os Taulipng de Roraima em torno de 1.000 a 1.500 pessoas. Noentanto, depois de Koch-Grnberg, ningum foi mais capaz de encontrarndios em Roraima que se auto-identificam-se como Taulipng! Mesmo as-sim, inclusive nas publicaes do Centro de Documentao da Diocesede Roraima, os Taurepng constituem uma das quatro tribos indgenas que,na atualidade, compartilham supostamente o espao tnico do nortede Roraima com os brancos. Como explicar isso?

    Dizer que, nunca mais, depois de Koch-Grnberg, foram encontradosndios em Roraima, que se autodenominavam Taulipng ou Taurepng,no significa, por certo, que no existam em Roraima, atualmente, indge-nas que saibam (e insistam) que o seu nome tribal fosse Taurepng.Contudo, esses ndios se chamam a si mesmos Pemon(gong), como todosos demais falantes da lngua caribe daquela rea, inclusive os Arekuna eMacux. Mas, os Pemon que, segundo nosso ponto de vista, em conseq-ncia dos esforos orientalistas do CIDR (e de Koch-Grnberg), sabemque o seu nome tribal Taurepng, so descendentes diretos dosTaulepng identificados por Koch-Grnberg? Duvido!

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    Fato que, menos de trinta anos aps Koch-Grnberg, o pa-dre Cesareo de Armellada, grande lingista e folclorista dosPemon/Arikuna da Venezuela e autor de Bellezas del dialectoTaurepan (1943), incapaz de detectar, tanto na Venezuela comono Brasil algum grupo indgena que se auto-identificasse comoTaurepng/Taulipng, chegou finalmente concluso de queos Taulipng de Koch-Grnberg eram, na verdade, alguns Pemonque, por casualidade histrica, viviam e seguem vivendo no Brasil!

    Trata-se, sem dvida, de uma soluo elegante para o enigmados Taulipng que, justamente por isso, agora fazem parte denossa viso ortodoxa da composio interna da paisagem tnicaroraimense. Mas essa soluo elegante tem srios problemas.

    O principal problema , por certo, que os Pemon atuais deRoraima, aqueles que, desde Koch-Grnberg, sabem que o seunome tribal Taurepng, no ultrapassam trs grupos locais,com uma populao total de menos que cem pessoas, dos quaispelo menos alguns parecem ter emigrado recentemente para estarea, vindos, supostamente, da Guiana! Em 1911, por outro lado,Koch-Grnberg indicou a existncia de mais de mil Taulipngno Brasil, que ocupavam, talvez, umas vinte malocas, distribu-das numa rea enorme: do Surum para o norte, at o Roraimae, para o sudeste, passando pelos cursos altos dos rios Parim-Maru e Majary at a ilha de Marac (1922: 209). Destarte, comoinexistem fontes historiogrficas (pace Andrello, 1993) que com-provem uma migrao em massa de ndios roraimenses para osul da Venezuela nas primeiras dcadas do sculo XX, a identifi-cao dos Taulipng de Koch-Grnberg com os atuais Pemndo alto Surum e do rio Kukenn, na Venezuela, parece-me al-tamente improvvel. Levando em conta, particularmente, que nemo termo macuxi, nem os termos arikuna ou taurepang, nem mes-mo qualquer outro nome tribal de nossas fontes (com exceodo termo pemong) constituem de fato um termo de

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    autodenominao de algum conjunto de ndios de Roraima, con-sidero muito mais provvel que os Taurepng de Koch-Grnbergeram apenas outra faco regional dos Macux que, segundo anossa evidncia etno-histrica, desde a segunda metade do s-culo XIX e, sobretudo, a partir do incio do sculo XX18, comea-ram a descer maciamente das montanhas norte-orientais e, as-sim, a compartilhar com os Wapixana os lavrados roraimensesao norte do Uraricoera e do Tacut. Acredito que os Wapixanae os no indgenas de Roraima classificaram esses Macux comoArekuna, por causa de semelhanas lingsticas e de estilo de vidacom os Pemon (Arikuna) da Venezuela. No mnimo, essa hip-tese me parece de igual probabilidade que aquela do famosolingista venezuelano.

    Gostaria de lanar aqui ainda outra hiptese, bem mais ousada. Parece-me que, na realidade, todas as nossas costumeiras diferenciaes tribaisno interior do conjunto de indgenas da famlia lingstica caribe inclu-indo-se a, alm dos Macuxi de Roraima e da Guinana, os Pemon (Taulipng,Arekuna e Kamarakoto etc.) da Venezuela, os Patamona e Akawaio da Guiana(bloco que ocupa as extensas matas e savanas naturais ao redor do MonteRoraima) so plenamente artificiais, fruto de processos tipicamente orienta-listas de imposio de diferenciaes classificatrias, sem fundamento ne-nhum na realidade classificada.

    No duvidamos que (como anotou um dos pareceristas annimos des-te trabalho) todas as classificaes so mesmo contestveis, inclusive aslingsticas e as dos prprios indgenas. Mas isso no significa que todaselas fossem mesmo iguais. Algumas nos ajudam a enxergar melhor umarealidade, que existe alm das percepes que dela fazemos, enquanto outrasservem unicamente para a manipulao em favor dos classificadores.

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    Notas

    1 O contedo das duas publicaes da responsabilidade de uma equipe de qua-tro pesquisadores, contratados pela diocese. Dois deles devidamente doutora-dos naquela cincia (a Antropologia), cujos representantes so popularmenteconsiderados (e costumam declarar-se a si mesmos) os mais bem preparadospara identificar a viso correta, no somente da natureza dos ndios rorai-mense, mas, de todos os povos no-ocidentais. Chefiada por Dr. EmanueleAmdio, naquela poca talvez a mais (re)conhecida autoridade internacionalna etnografia dos povos circum-Roraima (Butt-Colson, 1985), essa equipefundamentou a sua pesquisa em informaes etnogrficas colecionadas porintermdio da ampla rede missionria da diocese, contextualizadas por umaexaustiva anlise bibliogrfica.

    2 Por que no republicaram simplesmente um ou outro de alguns traba-lhos parecidos, j publicados nacional e internacionalmente em diver-sos momentos anteriores, tais como: Diniz (1966, 1967 e 1972 sobre-tudo a terceira parte); Farage (1986); Sampaio-Silva (1980); Farabee(1924); Migliazza (1978); Hemming (1987: 339-62); ou Rivire (1984)?

    3 Todas as tradues de Said so de minha autoria.

    4 Said utiliza essa palavra aqui no seu sentido duplo de temtica de estu-dos e esforo controlado.

    5 preciso lembrar, nesse contexto, que as publicaes aqui em ques-to limitam a sua discusso aos ndios de Roraima (ttulo do primeirovolume): aos Makuxi, Taurepng, Ingarik, (e) Wapixana, como in-dica o subttulo do mes-mo volume.

    6 Afinal, claro, a quantia de autoridade cientfica que Dom Aldo e a dioceseefetivamente foram capazes de mobilizar, mesmo que impressionanteem termos regionais e do momento, foi insuficiente para realmente calarqualquer viso alternativa. Vide as publicaes de Hemming (sobretu-do 1994) ou a recente tese de Lemos (1998), que ambos simplesmen-

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    te ignoram as publicaes do CIDR. Por outro lado, as publicaesindicadas mostraram-se eficientes para mudar radicalmente o discursooficial contra o qual foram concebidas: em 1996, aquele quadro tnicororaimense que as duas publicaes indicadas ajudaram a definir foiaproveitado por parte de quem menos se esperava a sua aceitao. Nasua contestao delimitao da rea Indgena Raposa- Serra do Sol,escrito no ano indicado, o Estado de Roraima alegou (entre outras coi-sas) que tal delimitao em rea nica era improcedente, pois ignoravao fato de que naquela rea Indgena existissem trs tribos distintas,tradicionalmente opostas entre si: os Makuxi, Ingaric e Taurepang.

    7 O termo olhar tribalista se refere ao preconceito ocidental comum(ou, viso orientalista) que declara o mundo no-ocidental e no-estatal (isto , o mundo propriamente primitivo da Antropologianos primeiros cem anos da sua existncia) dividido em unidadessupralocais de auto-identificao tnica (cultural/lingstica), embo-ra, no necessariamente centralizadas politicamente. A persistnciada idia da tribo na Antropologia j foi devidamente criticada porMorton Fried, em 1968, mas segue ofuscando a discusso antropo-lgica nos mais diversos campos.

    8 O fato no surpreende, afinal, desde os gregos clssicos corriqueiraessa lente tribalista sob a qual o Ocidente costuma olhar os primiti-vos.

    9 Como aquele dos Wapishana atuais, magistralmente analisado por Farage(1997 e 1998).

    10 Refiro-me aos relatos.de Alexandre Rodrigues Ferreira, que visitou a reaem 1786 (1994a e 1994b), e Descrio relativa ao rio Branco deLobo DAlmada (1861), de 1787. H, por certo, informaes espordi-cas anteriores a estas, resumidas por Whitehead (1988), relativas Venezuela e s Guianas, e por Sweet (1974), para a regio do rio Negroe do rio Branco.

    11 Alis, temos um valiosssimo estudo nesse sentido (Farage, 1997), dedi-cado ao caso Wapixana, os quais absorveram, supostamente, os gru-

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    pos anteriormente distintos Amariba, Maopityan, Tapicari, Atorado eTarum .

    12 Existe ainda um quarto trabalho, publicado em 1908, ou seja, trs anosantes da sua primeira chegada a Roraima, em co-autoria com GeorgHbner. Esse pequeno ensaio me parece importante, pois comprova umaspecto, de meu ponto de vista, de suma importncia: muito antes de suachegada a Roraima, Koch-Grnberg j tinha formado uma imagem relati-vamente clara da distribuio de povos entre o rio Branco e o Orinoco,que, posteriormente, em seu ensaio de 1922 ser apresentada como re-sultado de um levantamento de dados in situ...

    13 Traduzi recentemente partes desse trabalho relativas s tribos deRoraima, trabalho que espero poder publicar em breve.

    14 Alis, no meu entender, o fato de Koch-Grnberg lograr ainda identifi-car indivduos que supostamente so sobreviventes de tribos, comoos Sapar, Wayamur etc., no implica necessariamente que tais tri-bos existiram realmente. Ningum sabe com base em um Yekuana,que Koch-Grnberg encontrou no Surum, apontou-lhe dois homens re-sidentes da ilha de Marac como Wayamur, nem mesmo o que significa-va para este informante esta palavra.

    15 Segundo relatos colecionados entre os Makuxi e Taulipang: trata-se deuma tribo de Kanaim, odiada por todos os vizinhos [...] que atribuem bruxaria deles quase todos os falecimentos (Koch-Grnberg, 1924, v. 4:22). E: Todos falam dos Pischauk, mas ningum jamais os viu. Pareceque se trata de uma tribo que j no existe mais como tal (idem). Final-mente: Alguns Taulipang do alto Surum me foram apontados como ex-Pischauk [sic!]. Pelo tipo feio deles, os chumaos sseos grossos acimados olhos, e pela sua aparncia pouco proporcionada, eles se diferenciamsignificativamente dos verdadeiros Taulipang e dos Arekuna (idem).

    16 Cito a partir de traduo espanhola, publicada pelo Banco Central daVenezuela, em 1979, pois o original em alemo no est minha disposi-o.

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    17 Os quais, segundo nosso autor, moram no oeste e norte do Monte Roraima,ou seja, nas savanas venezuelanas (1922: 53).

    18 Compare-se, por exemplo, os dados de Butt-Colson (1998) e Ule (1913),alm dos dados do prprio Koch-Grnberg, com as fontes da primeirametade do sculo XIX, sobretudo a dos irmos Schomburgk.

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  • ABSTRACT: Taking the publication in 1989 and 1990 of of two his-toric-anthropological booklets as an typically orientalist trial of theDiocese of Roraima to impose a consensus on Roraima society withrelation to the ethnic reality of that state of Brazil, we reconstruct thehistory of the formation of that consensus, starting in the 18th cen-tury, up to the decisive ethnography of Theodor Koch-Grnberg.

    KEY-WORDS: ethnicity, tribalism, orientalism, Roraima, Taurepng.

    Recebido em janeiro de 2002.


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