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Rebeldia por tras das lentes

Date post: 18-Oct-2015
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Análise da midia independente no Brasil

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    A REBELDIAPOR TRS DAS LENTES

    Carlos Andr dos Santos

    O CENTRO DE MDIA INDEPENDENTE NO BRASIL

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    carlos andr dos santos

    a rebeldia por trsdas lentes

    o centro de mdia independente

    no brasil

    Florianpolis2013

    UFSC

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    S237r Santos, Carlos Andr dos

    A rebeldia por trs das lentes: o Centro de Mdia

    Independente no Brasil / Carlos Andr dos Santos.

    Florianpolis : Em Debate, 2013.

    305 p. : grafs, tabs.

    Inclui bibliografa.

    ISBN:

    1. Sociologia. 2. Sociologia poltica. 3. Juventude.

    I. Ttulo.

    CDU: 316

    Copyright 2013 Carlos Andr dos Santos

    Capa

    Tiago Roberto da Silva

    Foto da capa

    Indymedia Manila

    Editorao eletrnica

    Carmen Garcez, Flvia Torrezan

    Catalogao na fonte pela Biblioteca Universitria

    da Universidade Federal de Santa Catarina

    Todos os direitos reservados a

    Editoria Em Debate

    Campus Universitrio da UFSC Trindade

    Centro de Filosofa e Cincias Humanas

    Bloco anexo, sala 301

    Telefone: (48) 3338-8357

    Florianpolis SC

    www.editoriaemdebate.ufsc.brwww.lastro.ufsc.br

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    Dedicado a Janice e Fernando, pelas trsdcadas de digna raiva e fraterna rebeldia.

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    La libertad es como la maana.

    Hay quienes esperan dormidos a que llegue,

    pero hay quienes desvelan y caminan

    la noche para alcanzarla.

    Subcomandante Marcos

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    SUMRIO

    prefcio ..........................................................................................

    apresentao...............................................................................

    . as juventudes contemporneas

    e suas narrativas polticas...........................................

    . a teoria da mdia radical alternativa

    e da mdia ttica..................................................................

    . indymedia: a rebeldia dos corpos por

    trs das lentes....................................................................

    consideraes finais..........................................................

    referncias .................................................................................

    lista de abreviaturas e siglas........................................

    anexos ............................................................................................

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    prefcio1

    Gostaria de realar que considero digna de nota a iniciativado mestrando em provocar o universo acadmico com umadiscusso que, do ponto de vista tratado, incomum a tal ambiente.

    Nisso, notadamente, j se encontra um mrito, posto que a dissertaodo Carlos Andr, conforme construda, uma pedrada no olhoda academia e tambm da cincia. O texto pe sob questo nadamenos do que a propriedade intelectual, o trabalho do especialista,alm do domnio da comunicao convencional e da propriedade

    privada. Questiona o prprio fazer intelectual acadmico, quandoadvoga explicitamente a no monopolizao do saber, a construoterica em trnsito com a arte, a msica, a literatura, a cultura

    popular, enm, perla-se ao lado daqueles que advogam uma novacincia. Reconheamos: nada mais fustigante para uma instituio

    placidamente assentada sobre esses valores. Mas no apenas... oautor trata teoricamente e procura oferecer evidncias da relevnciada cooperao, da solidariedade, da coletividade, da horizontalidade

    para uma convivncia humanizada e profcua, conforme encontrouna experincia avaliada de participao poltica contestadora juvenil.Trazer essa proposio, naquilo tudo que ela signica, para estudo na

    ps-graduao , sim, um ato de resistncia em uma academia e emum mundo mais frequentemente comprometida com temas e fazeresconsensuais, paccos, que no incomodam, normalmente

    afeitos ao novo ethos mundial contemporneo, marcado comosabemos pela convenincia, pelo imediato, pelo instrumental, pelapoltica dos resultados. Esta, por sua vez, hegemonizada pelas forasdo mercado, do Estado ou da vaidade acadmica.

    Para dizer de outro modo o que faz Carlos Andr no seu trabalho,recorro ao poeta Torquato Neto, que na sua verve inquieta da dcada

    1 Este prefcio composto de partes da arguio da Dra. Marlcia Valria da Silva

    durante a banca de defesa da dissertao que deu origem a este livro. A Dra. ValriaSilva gentilmente autorizou as modicaes.

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    de 1960 nervo exposto e carne crua retira o leitor da sua zona deconforto com a poesiaLets play that. Diz o poeta:

    Quando eu nasci

    um anjo louco, muito louco,

    veio ler a minha mo.

    No era um anjo barroco.

    Era um anjo muito louco, torto,

    com asas de avio.

    Eis que esse anjo me disse,apertando minha mo,

    com um sorriso entre dentes:

    Vai, bicho, desanar

    o coro dos contentes.

    . O trabalho do Carlos Andr desana o coro dos contentes...

    Desse modo, no economizo os parabns orientadora que, enfrentan-do oscriptposto, abriu as portas da sua sala e disponibilizou o seu tra-balho docente para abrigar as inquietantes perguntas e respostas juve-nis problemtica do mundo em que vivemos, entendendo os jovenscomo sujeitos ativos do nosso tempo. Esto de parabns o mestrandoe a professora Janice. Est de parabns o Nejuc e o PPGSP-UFSC

    por possibilitarem tal discusso, fazendo oxigenar, assim, o ambientepesado das certezas centenrias. Acadmicas ou no.

    Em uma viso panormica, ler a dissertao do Carlos Andr ,na maior parte do tempo, experimentar uma vivncia interativa e em3D. A urgncia da escrita e a tenso do argumento se desdobram emuma profuso quanto-qualitativa de particular performance. O texto

    bem escrito serpenteia agilmente por entre uma enorme cascatade informaes que o autor vai trazendo, s vezes, de um s flego,obrigando que o leitor redobre a ateno para no perder o o da me-ada e/ou perder-se dos inumerveis pontos de contato no percurso de

    apropriao da questo posta para estudo. Carlos Andr no facilita,no edita, no oferece o caminho... segue at o m exigente com o

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    leitor. Constri um texto vivo, pulsante, rebelde e tambm polimorfo,quando declina de apresentar verdades e deixa abertas as vrias pos-

    sibilidades, raticando com o seu trabalho aquilo que defende teori-camente: existe mais de uma forma de se chegar a um lugar, mais deuma maneira de ver o mundo e as coisas. Assim, aproximando o seutrabalho do movimento tanto do real time on-linecomo da vida realoff-line, fazendo as escolhas difceis,torna-se o prprio autor exemplode corpo e mente indceis, conceitos caros construo da disserta-o como um todo. isso. O trabalho j tem um excelente ttulo, mastalvez pudssemos tambm cham-lo de Notcias do front: jovens

    desanando o coro dos contentes, recompondo, por tratar-se da mes-ma matria-prima, o que os anos e a histria separaram, qual seja: avivncia/inspirao do msico/poeta e a anlise/experincia do autor/militante. Nada mais atual..., somos obrigados a concluir, ao olhar

    para as reviravoltas juvenis da contemporaneidade.

    Por isso, o trabalho se mostra de leitura obrigatria a quem dese-ja adentrar os temas que interpelam e conformam a atuao juvenil emum mundo de incertezas, de fronteiras em desmanche; atuao juvenil

    que, ao mesmo tempo, inaugura nessas dcadas novas pautas de con-vivncia, novas formas de entender o mundo.

    Profa. Dra. Valria Silva2

    2 Membro do Ncleo de Pesquisa sobre Crianas, Adolescentes e Jovens (NUPEC-UFPI) e do Laboratrio de Observao Permanente do Mundo Rural do Nordeste

    da Universidade Federal de Campina Grande (LAE-RURAL/UFCG). Atualmente coordenadora do PPGS-UFPI.

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    apresentao

    Este livro uma contribuio sociologia da juventude ao colocarem evidncia como parte das novas geraes de ativistas tem seapropriado dos meios tcnicos (leia-se mdia) para construir suas tra-

    jetrias, formas de sociabilidade e ao poltica. Para tanto, o sujeitode pesquisa utilizado a rede do Centro de Mdia Independente (CMI)no Brasil.

    Ao lado das rdios comunitrias e livres, dos vdeos populares,da imprensa alternativa, dosoftware livre e de outras formas de apro-priao de meios de comunicao pelos movimentos de contestao, oCMI constitui-se a partir da necessidade social e poltica de haver livreacesso troca de informaes e produo cultural e livre associao,sobretudo para construir solues perante o monoplio dos meios decomunicao de massa.

    Os estudos para a produo deste livro foram realizados no N-

    cleo de Pesquisa sobre a Juventude Contempornea (Nejuc) do Pro-grama de Ps-Graduao em Sociologia Poltica da Universidade Fe-deral de Santa Catarina entre 2007 e 2010, com apoio do Conselho

    Nacional de Desenvolvimento Cientco e Tecnolgico (CNPq), paraobteno da titulao de mestre em Sociologia Poltica.

    O objetivo da pesquisa foi compreender e analisar criticamente aparticipao poltica na mdia radical alternativa (DOwNING,2002)a partir da dcada de 1990, por meio da anlise das aes coletivas

    protagonizadas por jovens inseridosno CMI1. A escolha do Centro deMdia Independente como sujeito de pesquisa foi motivada pela minhatrajetria acadmica e poltica. Desde 2004 sou voluntrio do CMI ede outros projetos pela democratizao da mdia, que tm por princpiofazer com que os sujeitos das aes coletivas sejam sua prpria mdia.

    1 No Trabalho de Concluso de Curso do Bacharelado em Cincias Sociais, em 2005,eu j havia buscado analisar a relao entre o crescimento da rede Indymedia no

    Brasil e os dias de ao global contra o capitalismo, as campanhas contra as medidasneoliberais e o monoplio da comunicao em massa. (N. A.)

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    Acredito que a democratizao da informao esteja fundamen-talmente ligada tomada da palavra verdadeira e do fazer poltico re-

    belde, constituintes de uma outra histria contada pelos ninguns oslhos de ningum e os donos de nada que Eduardo Galeano descreveuem poesia. J os zapatistas ensinaram aos ativistas da minha geraoque a rebeldia e a palavra andam de mos dadas e caminham pela noiteconstruindo essa outra histria, da qual tambm me sinto parte. Essaoutra histria no est alicerada na verdade cartesiana que obedece aracionalidade instrumental da eccia, e sim na or da palavra verda-deira, a palavra que vem do corao daqueles que lutaram e lutam por

    justia, democracia, liberdade, igualdade e dignidade.Quando falarmos Todos somos Marcos!, vamos querer dizer

    que Todos somos Brad will!, o jovem voluntrio do CMI de No-va York assassinado por paramilitares ligados ao governador ErnestoRuiz quando cobria a insurgncia em Oaxaca, no Mxico, e que To-dos somos Elton Brun!, o trabalhador sem terra assassinado pela Po-lcia Militar de Porto Alegre. Todos somos moradores de Pinheirinhoe de Pinheirinho Novo, os garotos com pedras na mo da Palestina

    e as transsexuais, as lsbicas e as feministas da Marcha da Vadias;somos aqueles a quem as elites e os mal governantes amam odiar, porno baixarmos a cabea e por fazer da memria de nossos mortos e denossos corpos indceis, barricadas.

    A escolha do CMI como sujeito a ser pesquisado pode parecerconfortvel, mas essa deciso me obrigou a realizar um esforo enor-me para no cair em um discurso militante nem em um academicismoestril que encaixota a realidade dos ativistas e suas prticas em ar-cabouos tericos correspondentes moda acadmica. Minha expec-tativa foi contribuir com a Sociologia, trazendo menos respostas aos

    problemas do CMI e novas perguntas que possam instigar um debatesobre a participao poltica dos jovens.

    Apesar de a rede do Centro de Mdia Independente no ser cons-tituda mundialmente por redes de associativismo exclusivamente

    juvenil, no Brasil os jovens so a grande maioria de seus membros

    e procuram guiar suas aes coletivas no campo da militncia de es-querda de forma diferenciada das geraes de militantes que os ante-

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    cederam. Alm disso, a longevidade do CMI como veculo de mdiaradical algo incomum no Brasil, pois muitas experincias desse tipo

    no chegam a durar um ano. Essa longevidade me permitiu visualizaras mudanas das novas formas de participao poltica da juventudecomo parte de uma conjuntura, pois, enquanto as aes coletivas con-tra o neoliberalismo no Brasil estavam em reuxo, gradativamente asaes coletivas de cunho local e por direito cidade, protagonizadas

    por jovens, passaram a ter visibilidade.

    O perodo pesquisado corresponde, tambm, s mudanas navida dos jovens ativistas que iniciaram sua participao poltica em

    meados dos anos 2000. Foram anos marcados pelo forte apelo porconformidade, gerado pelas tentativas de cooptao estatal e por parteda indstria cultural, impactando de forma difusa no ativismo desen-volvido por esses atores.

    Na busca por compreender e analisar criticamente os sentidosque os jovens membros do CMI do a sua participao poltica, uti-lizei mtodos de pesquisa qualitativa: entrevistas com roteiro semies-truturado e anlise de uma vasta documentao disponvel no bancode dados do CMI na internet.

    As entrevistas com os voluntrios de Braslia (DF), Curitiba (PR)e Florianpolis (SC) foram realizadas presencialmente entre maio edezembro de 2009. J as entrevistas com voluntrios de Tef (AM) ede So Paulo (SP) foram realizadas por e-mailno mesmo perodo detempo e, nos casos de dvidas, foram utilizados como recursos adicio-nais para esclarec-las os programas de mensagens instantneas MSN,

    Pidgin, AMSN eEmpathye o telefone. Por motivo de segurana, osentrevistados que solicitaram foram identicados apenas pelo preno-me ou codinome.

    Para a seleo dos entrevistados foi utilizado como critrio aparticipao do voluntrio nos coletivos locais ativos e tambm nasatividades em perodos onde o coletivo possua grande visibilidade nacomunidade ativista, como foram os casos do Camarada D, do CMIFlorianpolis, e de Sandino, do CMI So Paulo.

    O roteiro de perguntas semiestruturado foi dividido em trs par-tes, que correspondem identicao do voluntrio e s atividades

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    que desenvolve na rede CMI, ao sentido que d a sua participaopoltica e, nalmente, s questes sobre a democratizao dos meios

    de comunicao.A anlise das entrevistas foi realizada separando os assuntos por

    temticas relacionadas documentao da rede (carta de princpios ede unio da rede Brasil e global, poltica editorial, e-mailsdisponveisnos bancos de dados das listas abertas e editoriais produzidos peloscoletivos locais do CMI). Durante o processo tambm foram utiliza-das outras fontes, como artigos produzidos por colaboradores do CMI,atas de reunies dos coletivos autnomos e estatsticas produzidas por

    uma voluntria do coletivo tcnico do CMI.Para a anlise dos editoriais, vdeos, udios, cartas de apresenta-

    o de coletivos, de princpios de unio global e nacional e da polticaeditorial, a documentao foi dividida entre snteses dos princpios po-lticos e organizacionais e descries de trajetrias e narrativas, pos-teriormente apresentadas no corpo do texto. Tambm foram utilizadose-mails disponveis nos arquivos abertos das listas do CMI, ocultandoo endereo eletrnico a m de manter a privacidade do voluntrio.

    Em 2012 foram realizadas algumas alteraes no corpo do textocom o objetivo de oferecer ao leitor um vis mais analtico do que des-critivo. Aproveitei para repensar algumas consideraes e para incluirno debate aspectos sobre os movimentos de cultura livre, uma rede di-versicada de agentes coletivos e individuais em prol da constituiode novas formas de produo e difuso dos bens culturais.

    No primeiro captulo percorro as contribuies da Sociologia pa-

    ra a temtica juvenil, acrescentando debates sobre as vrias formasde ser jovem em uma poca marcada por arbitrariedade cultural, queao mesmo tempo exalta a juventude e a transforma em um projeto do

    porvir pelas correntes polticas de esquerda e direita modernas. Sementrar no debate que est longe de estar esgotado sobre se estamosna modernidade ou na ps-modernidade, fao uso de uma bricolagemimprovvel para tratar as novas geraes como sujeitos polticos com

    parcial autonomia e a contracultura como parte no menos importante

    da sociabilidade juvenil.

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    O segundo captulo dedicado Teoria da Mdia Radical Al-ternativa criada por Doning (2002), a consideraes sobre a mdia

    ttica e, por m, a um debate sobre a relao entre ativismo na mdiaradical alternativa e o movimento de cultura livre, uma rede diversi-cada de agentes coletivos e individuais em prol da constituio denovas formas de produo e difuso dos bens culturais.

    O terceiro captulo uma exposio do trabalho de campo, adescrio da trajetria do CMI em 12 anos de existncia, seus desa-os, as mudanas sofridas e o sentido que seus voluntrios do a sua

    participao poltica. Ao nal do livro, esto os anexos utilizados na

    elaborao do estudo.O leitor observar que mantive no texto o uso do pronome reto

    ns em vez de eu. Seu uso, longe de ser um recalque acadmicoou somente o chamado plural da modstia, foi uma deciso toma-da aps reetir sobre como ocorreu o processo que resultou nestelivro. A sistematizao foi realizada por mim, mas o processo foiconstrudo por vrias mos: as dos meus colegas do ncleo de pes-quisa durante os debates e atividades de extenso, as sempre crticase delicadas mos da orientadora, Dra. Janice Tirelli Ponte de Sousa,e, sobretudo, as dos ativistas da rede Indymedia, que ousam semearrebeldia por onde passam.

    Carlos Andr dos Santos

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    as juventudes contempornease suas narrativas polticas

    Odebate sobre a participao juvenil na poltica, ao longo do sculo

    XX, apresentou o jovem ora como questo, ora como problema,devido a sua condio de socializao, vigilncia, disciplinarizao edireito reconhecido (GROPPO, 2005) em reexes cientcas, los-cas e literrias que fazem parte dojogo de olhares e silncios sobrea juventude (JURIS, 2005). Isso demonstra, conforme Sousa (2002),o desao do iderio juvenil contemporneo, uma vez que esse com-

    portamento evidencia que as instituies contam com os jovens paraseus projetos, integrando-os em grupos controlados por adultos, mas

    no anula ou neutraliza a sua capacidade de autonomia, de questionaro velho e de organizar-se politicamente.

    Para a autora, na ltima dcada os estudos da participao polticadas novas geraes vm sendo atualizados na compreenso das novassociabilidades histricas inter-relacionadas com categorias sociais, cul-turais e polticas (SOUSA, 2002, p. 1).Nesse sentido, para ela, o de-

    bate proposto sugere, entre outras coisas, que interessante distinguir oconceito de poltica, na dimenso da esfera institucional, daqueles que

    frequentam os espaos de experincia social que geram novas socia-bilidades. Ainda que vago e impreciso, esse conceito de poltica ajudaa compreender a ao juvenil contempornea, onde existe a tendnciade insurgncias indicadas em aes contrainstituintes.

    Os jovens esto gestando novos modos de organizao co-tidiana de negao do institucional, novas formas sociaiscontrainstitucionais de enfrentamento contra a ordem. A

    maleabilidade, a capacidade de mudana, a adaptao dasexpresses como formas de recusa de instituies so atra-

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    vessadas por experincias tnues de autogesto, questiona-mento do princpio jurdico e poltico da ordem institucio-nal que orienta a lgica do convvio social moderna (apudLOURAU,2000) A matria da poltica parece estar orienta-da pela ao anti-institucional que se revela como uma lutacontra a poltica como tecnologia de luta pelo poder e alheiaa uma disposio emancipatria (SOUSA, 2002, p. 3).

    Para Sousa (2002), apesar de na modernidade testemunharmos aao de muitos jovens com a inteno de transformar o mundo, isso nonos autoriza a falar em uma natureza revolucionria que lhe seja intrn-

    seca. Segundo a autora, parte da juventude brasileira no faz da polticaseu objeto de expresso; so jovens que no expressam publicamente su-as angstias, desejos e insatisfaes (SOUSA, 2002, p. 6). So tratadoscomo problema social na esfera pblica e no recebem a devida atenodo Estado, apesar de serem um segmento signicativo da populao eco-nomicamente ativa do pas e a maioria dos trabalhadores brasileiros.

    Quanto participao poltica da juventude, a mesma autoraarma haver uma presena poltica difusa, mas que tem crescido noBrasil, na Amrica Latina e na Europa. A autora procura identic-la visando entender seu comportamento no quadro da emergncia,mais aproximada ou distante, de uma nova sociabilidade poltica(SOUSA, 2002, p. 7).

    Para essa autora, os movimentos juvenis contemporneos resga-tam contedos, mesmo que considerados novos, que estavam preco-nizados no projeto poltico libertrio de maio de 1968 em sua forma e

    organizao: horizontalidade, sem vanguardas ou lderes hierarquica-mente estabelecidos que monopolizem a publicizao do projeto pol-tico. Essa juventude convida a uma revoluo no cotidiano, do corpoe da sexualidade, realizando uma poltica congurativa (PERALVA,1997), onde os princpios libertrios so vividos no presente e noapenas como algo a ser alcanado no futuro, realizando aes diretas eartsticas contra as mais diversas formas que o institudo se apresenta.

    As revoltas dos jovens nas ruas de Seattle (EUA), Gnova (Itlia)

    e Praga (Repblica Tcheca), na Argentina, no Chile, no Mxico, noBrasil, nos subrbios de Paris (Frana) e na Grcia so expresses do

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    fazer e poder poltico juvenil hoje, como demonstra os trabalhos deFeixa (2006), Groppo (2006) e Sousa (2002). Por esse motivo, essas

    expresses no podem ser comparadas simplesmente por seu grau deecincia aos eventos protagonizados por geraes anteriores.

    Margulis e Urresti (2000) menciona que cada poca histrica de-ne seus conitos de maneira diferente, no interior de suas linhas defora, e se posiciona atravs de uma perspectiva geracional particular.Em uma situao em que se vivencia a experincia social de formadistinta, mais que comparar geraes, h de se comparar sociedadesonde convivem diferentes geraes. Nesse caso, conforme o autor, fa-

    lar que a gerao dos anos 1970 era mais politizada e que os jovens,hoje, so apticos, no perceber as diferentes formas de ser jovemhoje, alm de transportar modelos de ao do passado de forma mec-nica para contemplar uma viso idealizada de como as coisas devemser feitas, salvaguardando muitas vezes os modelos tradicionais deao poltica esquerdista de crticas.

    Conforme Sousa (2002), as novas sociabilidades polticas sorespostas facticidade do mundo da vida, ou seja, tem como basecondies histricas concretas, comum a todas as pessoas e que soatravessadas por uma srie de variveis socialmente e culturalmenteconstrudas, situadas espacial e temporalmente, ainda que exveis.

    Neste captulo, o objetivo compreender e analisar a participa-o poltica juvenil nas aes coletivas atravessadas por um conceitoamplo de poltica que tem como matria-prima a proteo e criao decomunidades (NEGT; KLUGE, 1999), lembrando que a incidncia de

    variveis socioculturais nos sugere falar de juventudes, no plural, eno de juventude como algo homogneo.

    As juventudes

    Para Margulis e Urresti (2000), a juventude uma categoria su-jeita incidncia de uma srie de variveis de condies materiais,histricas, sociais e subjetivas, que no se reduz a um signo e nem

    aos atributos juvenis de uma classe. Alm disso, apresentam diferentesmodalidades de ser jovem:

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    [...] la juventud es una condicin que se articula social yculturalmente en funcin de la edad como crdito ener-gtico y moratoria vital, o como distancia frente a la muer-te con la generacin a la que se pertenece en tanto me-moria social incorporada, experiencia de vida diferencial

    con la clase social de origen como moratoria social yperodo de retardo con el gnero segn las urgenciastemporales que se pesan sobre el varn o la mujer y conla ubicacin en la familia que es el marco institucionalen que todas las otras variables se articulan [...] (MARGU-LIS; URRESTI, 2000, p. 28).

    A partir dessa direo que os jovens protagonizam as suasaes e participao na poltica, de acordo com as suas possibilidadese recursos em determinadas condies materiais e histricas. Tambmo fazem de acordo com o que Margulis e Urresti (2000) chamam demoratria social e moratria vital.

    A moratria social est relacionada ao perodo especial, atribudopela famlia sociedade, como uma postergao das responsabilida-

    des perante o mundo adulto. Esse tempo associado fase em que ojovem se prepara para vida, gozando de tempo para estudar, se capa-citar para o trabalho e ter tempo livre para o lazer. Nesse perodo, o

    jovem pode contar com maior condescendncia da famlia para expe-rimentar, para tentar e errar, j que a fase de seu amadurecimento.

    Essa moratria social, por sua natureza, no algo homogneo,varia de acordo com a classe social e setores sociais. Nos setores po-

    pulares bem mais restrita pelas condies sociais, polticas e econ-micas a que esto submetidas. Ao mesmo tempo, nas camadas mdiase altas esse tempo se prolonga por meio de um maior perodo de es-colarizao e postergao das responsabilidades com o mundo adulto. atravs da moratria social que podemos identicar e diferenciar osgrupos sociais e culturais que exibem os signos da juventude e outrosque no conseguem faz-lo.

    A moratria vital consiste no que apresentado como comum

    ao jovem, no relacionada, necessariamente, situao de gnero eclasse. Est associada vitalidade e energia corporal, um sentimento

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    de que seu tempo no esvai dia a dia, que ele possui uma reserva vitalexcedente, enquanto a velhice e a sensao da morte so algo distante.

    A suposta negao da materialidade dessa proposio no lhe reservasegurana sobre a vida da qual acredita dispor (MARGULIS; URRES-TI, 2000, p. 30).Aspectos como a energia corporal [...] mostram-sequanto materialidade da condio juvenil, sempre imbricadas as for-mas de ser jovem, aos signos que expressam essa condio em cadasegmento social (SILVA, 2006, p. 61).

    A moratria social expressa nos signos, nos valores e na cul-tura, e a memria vital na matria, na cronologia, na vida em si do

    jovem. Isso explica a existncia de jovens no juvenis e no jovensjuvenis. Os jovens no juvenis so aqueles que no tm acesso con-dio juvenil por falta de uma moratria social. Os no jovens juvenisso aqueles que mesmo tendo ultrapassado seu crdito vital possuemcondies socioeconmicas para permanecer utilizando os signos ju-venis em vrios aspectos.

    Referem-se esses autores memria social incorporada, quediz respeito ao recorte histrico, abordagem das estruturas sociaise da inuncia destas nos processos de sociabilizao. Segundo Silva(2006), deve ser analisada a condio de pertencimento a uma geraono reduzida a um aspecto cronolgico, que por si s careceria demaior sentido, mas ao momento histrico, aos fatos a vericados,que forjam uma identidade entre os membros de uma gerao, origi-nando um parentesco na cultura e na histria.

    Essa condio possui certa independncia frente s classes. Co-

    mo apontou Silva (2006), o tempo e o curso cada vez mais udo im-primem, de modo transversal, diferenas no mundo em que se vive acada poca. Como veremos mais adiante neste captulo, o tempo um dos fatores essenciais para reetir a condio juvenil nas socieda-des complexas. Mais do que isso, a acelerao do tempo causa umaangstia aos jovens, um dos setores da sociedade mais bombardeados

    pelos uxos informacionais (MELUCCI, 1999).

    A condio de gnero tambm um fator que delimita o enten-

    dimento sobre a juventude. Independentemente da insero social,homens e mulheres jovens possuem juventudes diferentes. Para Silva

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    (2006), o desenvolvimento biolgico o fator mais evidente. O pre-coce desenvolvimento das mulheres em relao aos homens a mens-

    truao, a gravidez, a menopausa, so os sinais mais visveis que de-marcam a diferena nos tempos cronolgicos de homens e mulheres.

    O gnero vai delimitar questes referentes ao tempo livre, li-berdade sexual, mobilidade e associao entre os pares e sanes eresponsabilidades recebidas. As diferenas entre homens e mulheresem relao s regras de comportamento penalizam ainda muito maisas mulheres jovens, pois os construtos acordados entre instituiesque se colocam como tarefa lidar com a juventude so incompatveis

    com a realidade feminina (SILVA, 2006, p. 62).O lugar das instituies tambm uma das variveis apontadas

    por Margulis e Urresti ao compreender a juventude, considerando quea famlia a instituio principal na qual se dene e representa acondio de jovem, varivel onde todas as outras se denem (MAR-GULIS; URRESTI, 2000, p. 29). Os jovens esto inseridos em umamplo mbito de relaes sociais e no ambiente familiar que se re-elabora a viso sobre a vida, onde se formam as opinies e atitudes,onde h inuncia dos membros na formao da estrutura psicossociale nas denies de papis que sero desempenhados.

    Outras instituies tambm inuenciam na formao, pois go-zam de enorme importncia e estruturam os papis, o lugar dos atorese demarcam as normas e as sanes vinculadas s faixas etrias. Ocontexto institucional tambm gera expectativas em relao aos jo-vens que inuenciam nas suas expresses no tecido social.

    Segundo Sousa e Silva (2006), muitos autores vm mostrandoque o relacionamento dos jovens com as instituies se congura co-mo uma no relao, um distanciamento sintomtico dos jovens, queno compreendido pelas geraes mais velhas. As instituies pbli-cas, cada vez menos, conseguem envolver e convencer os jovens oudar-lhes alternativas ou receber suas expresses autnticas de formacontinuada (SOUSA; SILVA, 2006, p. 17).

    Sousa e Durand (2002) nos mostram que a socializao dos jo-

    vens/alunos encontra seus limites na escola. Para elas,a escola teria

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    como papel mimtico e compromissado reproduzir o arbtrio culturaldominante, que passa, em condies muito restritas, por alternativas

    poltico-pedaggicas que geram autonomia juvenil no seu interior,tornando ausentes os cenrios vivos das interaes contemporneas(SOUSA; SILVA, 2006, p. 165).

    Essas autoras observam que, na maioria das vezes, as interven-es e limites da instituio escolar se do pela abordagem dos inte-resses e conitos juvenis, como problema sob o qual se aplicam me-didas integrativas consideradas sucientes na passagem para o mundoadulto. Essa medidas ignoram o jovem como um ser que vive em con-

    dies especiais em um ciclo da vida, a natureza de seus cdigos e sig-nos, seus questionamentos e a vulnerabilidade material, decorrentesdas mudanas das relaes produtivas e da sociedade em crise.

    A expectativa de muitos jovens de escolas pblicas, segundo asmesmas autoras, que a instituio cumpra seu papel, subsidiando--os, socioculturalmente, para evitar sua excluso social. No entanto,ao conviver com essa instituio, eles enfrentam outra realidade, tra-duzida como frustrao diante da promessa da sociedade em uma sriede projetos e conquistas que no dependem da escolarizao, mas decondies materiais objetivas, que no podem ser alcanadas via ins-tituio escolar (SOUSA; DURAND, 2002, p. 174).

    Juventude e consumo

    A identicao dos jovens com os meios de difuso de massa

    no uma imposio unilateral, ela se d no jogo de cumplicidades(MARTN-BARBERO, 2003). A indstria cultural e a escolarizao,fenmenos ligados necessidade das sociedades de formao de con-sumidores e ao surgimento da juventude como sujeito, vo ao mesmotempo ocultar as diferenas de classe, substituindo o projeto de eman-cipao da classe operria do sculo XIX pelo estatuto do cidado(LIBERATO, 2006), como tambm possibilitar a construo de umacultura juvenil autnoma, ainda que muitas vezes fetichizada.

    Liberato (2006) descreve a existncia de uma indstria cultural

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    difusa, surgida do deslocamento da competio do capitalismo mono-polista baseada na competio entre os preos da mercadoria para

    atrair o interesse do consumidor , para a competio que opera cadavez mais por sosticadas estratgias de marketing, publicidade e pro-moes de venda em geral. As campanhas de vendas no sculo XXcomearam a desempenhar um papel, quantitativa e qualitativamente,maior do que no sculo XIX, em que se deslocaria de uma categoriaum pouco mais importante no sistema para a centralidade decisiva(LIBERATO, 2006, p. 103).

    No capitalismo monopolista, a absoro do excedente atra-vs do estmulo se tornaria uma necessidade, sob pena deestagnao. Num sistema econmico impiedosamente com-

    petitivo, e com uma escassez de rivais que impediria a redu-o dos preos, a publicidade se tornaria, cada vez mais, aarma da luta competitiva (LIBERATO, 2006, p. 103).

    Segundo esse autor, no capitalismo monopolista h uma lgicade diferenciao que se estabelece no mbito do prprio sistema de

    produo, onde as megaempresas estariam em condies de inuen-ciar o mercado existente para sua produo, criando e mantendo a di-ferenciao de seus produtos e de seus concorrentes atravs da gestodas marcas, ou seja, atravs dos signos da comunicao que procuramfortalecer sua posio monopolista.

    Para esse mesmo autor, a publicidade, as marcas e as grandescorporaes esto imbricadas no desenvolvimento que Baudrillardir chamar de valor-signo e de passagem evidncia do valorde uso como mero libi. O que interessa para a economia no ca-

    pitalismo monopolista que os produtos no sejam comprados porseu valor utilitrio e nem com base na concorrncia de preos, mas

    por meio de seu valor construdo atravs da diferenciao construdapela publicidade.

    A marca, que antes signicava a identicao de um produtoentre tantos outros bens genricos com poucas diferenas entre si,

    que por dcadas lutava para demarcar territrio para seus produtos,exaltando suas supostas qualidades e a garantia de felicidade, hoje

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    possui imagens que transcendem o produto, projees de estilos devida e de estar em uma poca, que do vida e alma s megacorpora-

    es mundiais.As empresas produzem marcas, mais do que propriamente coi-

    sas. A Nike no produz tnis, mas vida saudvel e superdesportistas;voc no toma apenas um refrigerante, voc vive o lado Coca-Colada vida; a Benneton vende roupas e integrao entre as etnias (Uni-ted Colors). Como argumenta Liberato (2006), a publicidade tratade um investimento na marca, em um objeto-signo, com signicaode uma experincia, um conceito, uma atitude e uma cultura.A pu-

    blicidade se desloca da descrio do uso funcional para a descriode seu valor-signo.

    O branding invade o cotidiano das pessoas em todos os espa-os. No apenas a questo de agregar valor ao produto, mas tornara cultura posto avanado de comercializao. Como mostra NaomiKlein (2003), trata-se de inltrar ideias e iconograas culturais paraque as marcas possam reetir e projetar essas ideias e imagens na cul-tura como extenses suas.

    Liberato (2006) explica que, para Baudrillard, na sociedade deconsumo o ambiente seria uma rede de mensagens e signos, onde odesigne as disciplinas poderiam ser vistos como ramos da comuni-cao de massa. O conceito de ambiente diferente dos conceitos denatureza e de meio sociocultural do sculo XIX. Seria um espao--tempo de emisso e recepo de mensagens e de informao.

    Para Baudrillard, o designse generaliza para todas as relaes

    humanas a sexualidade, as necessidades, as aspiraes do corpo, em um universo que construiria o ambiente. Atravs do design, algica do signo-troca se expande para o cotidiano e a todos os nveis.A acelerada circulao de mensagens em uma sociedade midiatizadainstalaria, atrs de si, a hegemonia do cdigo. Proporcionando o es-quema emissor-mensagem-receptor, o cdigo se tornaria a nicainstncia que fala, que se troca por si prpria e se reproduz por meioda dissociao dos termos emissor-receptor e da no ambivalncia

    da mensagem.

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    Esse ambiente miditico segue a forma das mdias relacio-nadas indstria cultural. Segue, portanto, a forma e ummodelo comunicacional que destitui um processo dialgi-co, significando em certo sentido o fim da comunicao(LIBERATO, 2006, p. 108).

    Segundo a interpretao do mesmo autor, para Baudrillard atransformao das mdias em um verdadeiro meio de comunicaono seria um problema tcnico, j que [...] a ideologia das mdias estno nvel da forma, da separao que instituem, e uma diviso social(LIBERATO, 2006, apud BAUDRILLARD, 1995, p.173). Semelhan-

    te a Negri e Lazzarato, Baudrillard v na publicidade, no marketinge na psicologia social da empresa a produo de relaes sociais que

    procuram construir uma relao social e restitu-la quando essas rela-es sociais de produo so problemticas.

    O design, segundo Liberato (2006), citando Baudrillard, teria,no sistema atual, a tarefa de produzir comunicao entre os homensem um ambiente que existe apenas como instncia estrangeira (sem-

    pre como mercado). O designapareceria onde houvesse a separaoentre os homens e o ambiente, para restituir sentido de transparncia fora de informaes e mensagens, procurando recriar a comunicao fora dos signos. Baudrillard, ainda conforme Liberato (2006), irconcluir que a mass-mediatizao no um conjunto de tcnicasde difuso de imagens, mas sim uma imposio de modelos. Estariamais prxima de uma rede apertada de signicao, a que nenhumacontecimento lhe escapa, do que a qualquer outra coisa.

    Liberato (2006) alerta que a midiatizao no deve ser confundi-da com o que transmitido pelo rdio e pela televiso, assim como amercadoria no aquilo que produzido industrialmente, mas aquiloque mediatizado na abstrao do valor de troca. O autor argumentaque a mdia deve ser entendida como modo de existncia de relaessociais, como diviso social, e no como meio tcnico, como haviaapontado Baudrillard. Ele arma:

    O que se pode esperar de uma gerao contempornea deum ambiente que mdia, formado por ndices, por marcas

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    e pelo coolque respondem a uma pulso pela segurana epermanncia, que buscam uma relao perdida e satisfazerao mesmo tempo variadas fantasias e desejos? Talveza resposta seja: a revolta contra a marca, contra a forma-signo, quando uma revolta que produza marcas e signos aomesmo tempo em que esteja ligada de alguma forma porfascnio por eles a negao implica subsuno do negado(LIBERATO, 2006, p. 109).

    Para esse mesmo autor (2006), como tambm para Miles (1998),o consumo pode ser visto como a primeira maneira do jovem de en-

    contrar um meio para autoexpresso, no momento do capitalismo emque a mercadoria e a cultura se fundem, quando os meios de expres-so se tornam integrados, subsumidos no capital.

    Para Featherstone (1995), o mbito da cultura do consumo con-temporneo conota uma individualidade e uma conscincia estilizada.As preferncias no modo de vestir, de se divertir, por determinado tipode comida e bebida, carro e opo de frias so vistas como indicado-res de individualidade do senso de estilo do consumidor/proprietrioe de autenticidade.

    A condio juvenil, no caso, est imbricada de modelos e signosproduzidos por uma indstria cultural difusa. No a nica instnciade signicado da ao, mas, negando-a ou agindo com cumplicidade,sua presena pode ser, de fato, a imposio de modelos, onde os jovens

    podem encontrar sadas fetichizadas para suas angstias e frustraes.

    O consumo serve para pensar, como nos lembra Canclini (1995),

    pois envolve um conjunto de processos de apropriao e usos dos pro-dutos, ou seja, de apropriao de recursos simblicos que vo ter umvalor cognitivo, permitindo pensar e agir, dando o signicado neces-srio para nos diferenciarmos em relao aos outros e nos reconhecer-mos como adeptos da mesma subcultura. No consumo que os con-itos de classe, produtos da desigual distribuio na cadeia produtiva,vo ganhar continuidade atravs da distribuio e apropriao de bens,e esse consumo far parte da racionalidade integrativa e comunicativa

    da sociedade no sistema de produo.

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    A contracultura como estado nascente

    Aps a Segunda Guerra Mundial, o aumento de prosses queexigiam curso superior e tambm do nmero de universidades fez mi-lhares de jovens deixarem suas casas para morar nas cidades universi-trias grandes e isoladas, longe do controle dos pais e da comunidadena qual haviam nascido.

    Esse aumento da populao estudantil consolidou uma culturajuvenil sucientemente autnoma, para tornar os jovens atores his-tricos e sociais centrais da revoluo social em curso, j que uma

    parcela considervel dessa juventude tomaria conscincia de si e serearmaria atravs do pensamento radical de esquerda.

    Segundo Liberato (2006), a juventude, nessa poca, associada aum sentido intelectual e poltico ligado s universidades, aos estudan-tes e s lutas democrticas ou nacionais, sendo que na burguesia e nasclasses mdias o sentido tende a realizar-se inteiramente, omitindo asdiferenas sociais entre a categoria e permitindo um questionamentoda real existncia de uma juventude operria.

    Os jovens radicais dos anos 1960, segundo Sousa (2003), esta-vam reagindo racionalidade que se instaurou no ps-guerra, em umarecusa sociedade industrial moderna, em uma sincronia individual ecoletiva inspirada no anarquismo, no existencialismo, no marxismo eno surrealismo.

    No faltaram exemplos de rebeldia para a juventude dos anos1960. Eventos e ideologias so mltiplas, assim como as organizaes

    e prticas da contracultura e do movimento estudantil: Che Guevara,Camilo Cienfuegos (na Amrica Latina) e a revoluo vitoriosa dosjovens cubanos; Mao Ts-Tung (na China) e a revoluo cultural; astticas de ao direta no violenta de Gandhi (na sia); Malcon X eMartin Luther King (nos Estados Unidos), o comunismo de conselhose a revoluo hngara (na Europa).

    Para essa autora, foi a poca de retomada do debate sobre o hu-manismo, com uma supervalorizao das subjetividades em defesa do

    homem contra o sistema, onde o homem se d conta que apenas

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    pea da engrenagem, incapaz de discernir sobre sua prpria vida. Ademocracia, o socialismo, o capitalismo e o acesso aos direitos esta-

    vam sendo questionados por uma imensa massa de estudantes, negros,mulheres, homossexuais, grupos contraculturais e intelectuais.

    Nesse perodo, segundo Carminati (2006), os partidos comunis-tas estavam em perodo refratrio ascenso dos mais jovens na altahierarquia do partido. A poltica ocial de Moscou passava por durascrticas por no promover a revoluo e sim o socialismo dentro deum nico pas, a Unio Sovitica, agravadas depois do discurso de

    Nikita Khrushchov, em fevereiro de 1956, durante o XX Congresso do

    Partido Comunista Sovitico. No discurso, Khrushchov responsabili-zava Stalin pela morte de mais de 20 milhes de cidados soviticosdurante os grandes expurgos na dcada de 1930, criticando o culto

    personalidade que o cercava.

    O perodo foi marcado tambm por uma intensa agitao pol-tica, onde negros, mulheres e homossexuais adotaram formas maisradicais nas suas lutas, como os movimentos por direitos civis, os pan-teras negras nas periferias americanas, os veres quentes (1963-1967)em Nova York e os conitos de Stoneall, que do origem marchado orgulho gay. Algumas das marcas desse perodo so o movimentofeminista ps-sufragista, onde se destacam Simone de Beauvoir e seulivro O segundo sexo,que serve de base para o feminismo exigir aemancipao da mulher e direitos iguais entre os sexos, a criao da

    National Organization of Women, em outubro de 1966, e a criao deorganizaes semelhantes na Europa.

    Na viso da esquerda tradicional, a nova esquerda no tinha ati-tude poltica. A viso ortodoxa do marxismo sovitico s qualicavacomo revolucionrias as pessoas diretamente envolvidas nos proces-sos de trabalho. Na verdade, muitos dos expoentes da nova esquerdae os intelectuais ligados ela eram execrados pela esquerda ortodoxa

    por criticar a burocracia dos partidos e a censura estrutural.

    No era uma posio muito confortvel para muitas lideranassindicais e partidrias escutar que os sindicatos se haviam tornado

    apenas rgos de assistncia social ou que o culto personalidade

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    nos pases socialistas no passavam de espetculos concentrados (DE-BORD, 1998), a m de ocultar as verdadeiras relaes de produo e

    a misria ao qual os trabalhadores eram submetidos.Nesse perodo, a Guerra Fria que desloca os conitos armados

    para os pases do terceiro mundo , o anticomunismo, a crtica buro-cratizao dos partidos comunistas e a construo do imaginrio quemisturava fatos objetivos e uma pluralidade enorme de ideologias eexperimentaes , tambm do o contexto de onde nasce a contra-cultura. Pegaremos apenas alguns exemplos para ilustrar o fenmeno.

    A Guerra do Vietn, que desencadeou uma srie de protestos por

    todo o mundo nos anos 1960, pode ser compreendida, segundo HannahArendt em seu texto A mentira na poltica (1973), como produto daGuerra Fria e do anticomunismo ocidental. Ao analisar os documen-tos do Pentgono, em 1973, a autora constatou que o material estavarepleto de declaraes falsas, que eram vinculadas nos jornais com ointuito de encobrir as falhas no aparelho poltico administrativo.

    Essa autora defende que as estratgias de uso da mdia passaram

    por vrias etapas. A primeira estratgia dos militares, iniciada logo noincio da guerra, foi a de cantar vitria para convencer os seus com-patriotas que era uma guerra ganha, contra um inimigo fraco. Depoisampliaram essa estratgia para tentar convencer o inimigo de sua der-rota. Em um segundo momento, o governo procura sair da guerra semter que admitir a humilhante derrota para a opinio pblica americanae mundial, querendo manter sua imagem de grande potncia e a ideiade fora de combate ao comunismo.

    As estratgias de propaganda americana foram mal sucedidas,inicialmente porque depois de alguns meses de confronto percebeu-seque o exrcito inimigo, apesar de belicamente mais fraco, possua umvasto conhecimento sobre o terreno, o que possibilitava aes de guer-rilha fora dos padres convencionais conhecidos pelos militares ame-ricanos. As presses internas e externas dos movimentos pela paz e asdenncias de atrocidades contra a populao civil vietnamita desgas-tavam a credibilidade do governo. Esse quadro tornou-se ainda mais

    latente quando quatro estudantes da Universidade de Kent, em Ohio,

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    foram mortos pela Fora Nacional enquanto protestavam contra a in-vaso do Camboja, em 1970, e com o caso dos papis do Pentgono.

    Em 1971, o jornal The New York Times publica uma srie dedocumentos ultrassecretos, que mostravam a fabricao de razes pa-ra os Estados Unidos entrarem na guerra, o que gerou um calorosodebate na opinio pblica americana, no s acerca do contedo dos

    papis, mas tambm sobre a liberdade de imprensa frente s polticasestratgicas do governo. Alm disso, durante a guerra, os jovens queiam para o outro lado do mundo cumprir o papel que a sociedade havialhe destinado, estavam voltando para casa mutilados, viciados e des-

    trudos na sua condio de pessoa e em sacos pretos nada honrosos.Um preo alto demais para se pagar pelo cidado comum.

    Hannah Arendt (1973) oferece uma perspectiva bastante interes-sante em relao ao governo, mdia e sociedade durante a Guer-ra Fria. No entanto, a necessidade do governo censurar os contedose informaes tidas como subversivas ou que revelam suas falhas ecrimes no exclusividade americana e do macarthismo. Durante o

    processo de independncia argelina, por exemplo, os assassinatos etorturas contra argelinos por militares franceses foram amplamenteobscurecidos, graas ao bloqueio informativo que hostilizou, torturoue prendeu jornalistas que tentavam narrar os acontecimentos fora daverso ocial do governo francs, sob a acusao de traio. S o

    jornalFrance-Observateurteve um prejuzo orado em 20 milhes defrancos, em um ano, com as edies apreendidas1.

    Oscar Negt e Alexander Kluge (1999) propem que a censura,

    na modernidade, seja chamada de censura estrutural, to intrnsecaa uma ordem social que as pessoas atingidas muitas vezes no per-cebem que so vtimas de censura. A censura atual funciona comomeio de complementar a legitimao; como proibio do realismo,como excluso e como proibio da linguagem e de smbolos. Esses1 As estratgias criadas por militares franceses para combater a resistncia argelina retratada no lme A batalha de Argel, de 1966, dirigida por Gillo Pontecorvo. Olme mostra com riqueza de detalhes a tortura, os esquadres da morte e as operaesde inteligncia militar usados para treinar militares dos Estados Unidos, que

    posteriormente viriam para a Amrica Latina capacitar militares no Brasil, Argentinae Chile em tais prticas desumanas.

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    quatro mecanismos de censura, combinados, servem para uma com-pacta denio da realidade e tem como objetivo paralisar estratgias

    de mudana social, retirando da esfera pblica as manifestaes, aslinguagens e os smbolos de resistncia que possam gerar o debate e,assim, mantm a lealdade dos cidados para com o sistema e para umconsenso de toda a sociedade.

    Remetendo-nos aos anos 1960, encontramos dois grandes blo-cos de censura que possuem natureza parecida: o bloco sovitico e ocapitalista. Estes se caracterizam pela propaganda e o controle, que

    pensam nos meios de comunicao ora como satnicos, ora como

    veculos ideolgicos de classe, onde a liberdade de expresso su-focada em detrimento a ordem e manuteno do poder. A referncia

    justicadora a segurana nacional, como diria Martins (1979),um termo onde cabe tudo e tambm estranho ao vocabulrio e aosinteresses da sociedade.

    A censura, aliada a outros agentes, como as prticas cotidianasde violncia policial, a arrogncia burocrtica, o desrespeito aos di-reitos individuais e a ocultao dos processos decisrios, servem parasubstituir a ideologia explicitamente autoritria por uma difusa cul-tura autoritria, que passa a condicionar a existncia dos indivduos,

    pois penetra e ordena os mais variados domnios da vida cotidiana(MARTINS, 1979).

    Sob as condies onde a cultura autoritria se apresenta de formadifusa, comea a emergir, segundo Martins (1979), a contracultura,tambm de forma difusa. Grupos sociais mais ou menos restritos pro-

    curam preservar, sob pautas individuais, o que lhe negado: a condi-o de ser sujeito de sua existncia (MARTINS, 1979, p. 17).

    A contracultura

    O termo contracultura dene as experincias de uma cultura ju-venil subversiva de negao das regras de comportamento vigentes,sejam elas polticas, empresariais, religiosas, escolares, familiares emesmo como formas de organizao e de estratgia da esquerda nos

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    anos 1960. uma traduo literal, do ingls para o portugus, do ter-mo counter culture, originalmente criado por jornalistas dos Estados

    Unidos. O melhor seria denomin-la cultura marginal ou nova cul-tura, como arma o escritor Luiz Antonio Villena, afastando o termoda ideia de que o movimento contracultural movimento contra a cul-tura, como brbaros saqueando de novo uma cidade romana.

    A contracultura dos anos 1960 so aes constituintes de novosvalores, manifestos na forma de vestir-se, na liberao sexual, no co-munitarismo, no nomadismo, no hedonismo e nas novas formas desocializao poltica, que remetem a uma categoria pouco explorada,

    a rebeldia. Essa rebeldia que caracteriza a contracultura aparece en-trelaada multiplicidade de formatos, experimentao e centralizadana subjetividade, que nega a ideia de um ente revolucionrio guiado

    pela lgica da conquista e manuteno do poder, como na denio deTimothy Leary2:

    O meio de ao privilegiado de uma contracultura o poderdas ideias, das imagens e da expresso artstica, e no a ob-

    teno de poderes pessoais ou polticos. Consequentemente,grupos minoritrios, alternativos ou partidos polticos radi-cais no so contraculturais. Se certo que os movimentoscontraculturais tem implicaes polticas, a verdade que atomada do poder e o fato da sua conservao exigir a adesoa estruturas muito rgidas fazem que tal se torne incompat-vel com a inovao e a criao que esto na base e a razode ser da contracultura (LEARY, 1969).

    Para Leary (1969), diferente da prxis revolucionria, a prxiscontracultural rebelde e no est ligada poltica como conquista do

    poder e nem adere disciplina, seja ela burguesa ou revolucionria.Nesse sentido, a disciplina, na sua denio, aparece como a morte dacriatividade, da inovao, da possibilidade de experimentar a quebrados padres de comportamento, to importantes para a construo danova cultura, onde o equilbrio subjetividade do indivduo e coletivo

    2 O psiclogo e escritor cou conhecido no perodo por suas experincias com drogasalucingenas.

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    se destaca como alternativa ao esvaziamento da identidade pelo pro-jeto coletivo3.

    A rebeldia no aparece apenas como parte do discurso da con-tracultura, ela assume feies de uma categoria poltica, desaando odeterminismo de leis gerais da histria e da sociedade, que colocamo progresso e as transformaes sociais como produtos dessas leis; o determinismo contido na ideia de revoluo, apresentada pelos

    partidos e sindicatos de esquerda tradicional. Como observou LuizCarlos Maciel (1978), a contracultura no possuiu uma ideologia, masideologias. A rebeldia a base que torna possvel a ao humana em

    detrimento do poder da estrutura, pois o poder no se conquista, elese exerce e se dissipa e retomado na ao, ideia que se aproximado anarquismo, ainda que difuso e distante das ideias do movimentooperrio libertrio4.

    A relao dos grupos de contracultura e da nova esquerda dosanos 1960 no pode ser vista como uma coisa homognea. Muitos doslderes da nova esquerda eram bastante crticos contracultura, por sedesenvolverem como organizaes sem comando ou por seu oposto,

    por realizarem culto a personalidades, ainda que na ao de massaconstrussem certa unidade (GROPPO, 2005).

    A denio de Leary (1969) de contracultura revela tambm areproduo da concepo de que existe um nico modo de mudar asociedade, algo que, de certa forma, acaba por negligenciar a rebeldiae a importante colaborao dos grupos polticos de sua poca, que seorganizaram de forma mais rgida, adotando uma disciplina militar

    3 Liberato (2006) alerta que as transformaes impostas pelo capital minaram o poderdo operrio prossional e levaram extino do poder correspondente do movimentooperrio e que, no caso da rebeldia juvenil, a represso se deu pela ativao daexistncia de uma rebeldia fetichizada, direcionada ao esvaziamento de seu contedoradical em detrimento do consumo em massa dessa rebeldia. Essa armao do autorrevela no s a rebeldia como consumo, mas explica porque muitas das experinciascontraculturais so abandonadas por seus agentes, que passam a neg-las, agendandonovas experincias transitrias.4 Segundo Liberato (2006) e Rugai (1996), o anarquismo, como ideologia, permaneceu

    vivo depois que perdeu sua inuncia no movimento operrio, graas aos estilos devida contracultural e aes do movimento anarcopunk.

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    para garantirem sua integridade fsica frente violncia e censurainstitucional estabelecidas pelo Estado.

    A morte prematura da contracultura daquele perodo, engolidapela indstria cultural que pasteurizou sua esttica, retirando-lhesseu contedo contestador, e pelas consequncias do consumo abusivode drogas, que levou muitos jovens para a morte ou para o escapismo

    psicanaltico das terapias , no pode ser tida como a morte da contra-cultura e de seus elementos rebeldes e experimentais em um sentidomais amplo. A juventude contracultural vai reelaborar suas rupturas econtinuidades procurando, nos anos seguintes, outros estilos de vida

    que correspondam a seus questionamentos e frustraes em relao aomundo moderno e suas instituies.

    A contracultura do movimento punk

    O surgimento do movimento punk na Inglaterra e nos EstadoUnidos tem raiz na crtica situao social das classes marginalizadas

    das grandes metrpoles. difcil saber qual a sua origem ou atri-buir sua origem ao surgimento de uma banda. Para existirem ban-das punks era necessrio que existissem indivduos punk (RUGAI,1996). A msica, o comportamento e a atitude, no punk, no se encon-tram dissociadas, pois so elementos prprios dessa contracultura, quese entrelaam como reposta situao econmica e histrica.

    Na Inglaterra, o punk surge em meio crise e ao desemprego,no incio da Era Thatcher e de suas polticas neoliberais. O faa voc

    mesmo torna-se uma mxima, que estimula no s os consignat-rios a produzirem seus prprios visuais, como tambm a produzireme distriburem msicas, publicaes e vdeos de forma independente,contrariando a lgica capitalista.

    Para Rugai (1996), a origem social do punk demarca um tipode atitude bastante diferenciada da dos hippies, que comumente as-sumiam posturas de fuga do urbano, em uma negao do mundo tec-nocrtico em busca de comunidades e do contato com a natureza. Os

    punks, como provenientes da periferia, convergiam e provocavam ten-

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    so nos grandes centros, onde a urbanidade incorporada e mostradano seu exagero em seu lado mais podre.Ao contrrio da frugalidade

    e do pacismo dos hippies, os punks assumiam uma postura que en-volvia enfrentamento direto, muitas vezes violento.

    Para Steart Home (1999), o punk original uma contraculturaque surge sem que seus membros estejam muito conscientes de suasorigens, apesar de reciclar vrias inuncias, como o dadasmo e ofuturismo, e de artistas mail-art, do Fluxos. A ignorncia quanto a es-sa origem no impediu que a garotada nas ruas entendessem o punkcomo um expresso simultnea de frustrao e desejo de mudana5

    (HOME,1999).O anarquismo tambm congurou uma vertente importante pa-

    ra o movimento e, segundo Liberato (2006), foi uma troca recproca,porque a contracultura punk manteve vivo o anarquismo como estilode vida e ideologia poltica, quando j no tinha mais inuncia nomovimento operrio6. Os anarcopunks, como so conhecidos os indi-vduos, grupos e bandas que adotam os princpios anarquistas em suasaes, no necessariamente liados a uma nica corrente anarquista,so coletivos que se organizam por grupo de anidade com as mais di-versas causas, como pacismo, liberao animal, antifascismo, femi-nismo, anticonsumismo e para produo de materiais audiovisuais e

    publicaes. Muitos anarcopunks tm atuao em organizaes anar-quistas, como a Confederao Nacional do Trabalho (CNT) espanho-la, e em grupos de apoio a movimentos que consideram ter princpioslibertrios, como os insurgentes zapatistas mexicanos.

    5 Para o autor, se fssemos procurar uma inuncia mais conhecida pelos punksda poca, deveramos recorrer inuncia do escritor Richard Allen, no inciodos anos 1970. Suas estrias descreviam aes violentas de trabalhadores brancosmarginalizados. Os livros circulavam no meio escolar s escondidas, longe dos olhosdos professores e pais, e traduzia muito do que seria a sensibilidade punk.6 preciso lembrar que a primeira onda punk ertou com a ideologia tanto de direitacomo de esquerda. Bandas como The Clash e Sex Pistols ertavam com o esquerdismoe outras, como Chelsea e The Bashees, com a direita. Posteriormente, surgem bandascomo Crisis, onde seus membros pertencem a organizaes de esquerda, como oPartido dos Trabalhadores Socialistas, realizando eventos benecentes, como o Rock

    Contra o Racismo, e campanhas pelo direito ao trabalho. Muitas bandas tornavam-seengajadas e demarcavam vrias tendncias que o movimento assumiu nos anos 1980.

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    No Brasil, o punk surgiu no m dos anos 1970, em grandes me-trpoles como So Paulo e regio do ABC paulista, Salvador, Recife,

    Braslia, Belo Horizonte e Rio de Janeiro. Conforme Rugai (1996),historiador e anarcopunk na poca, enquanto se falava de uma aber-tura poltica do regime militar, as bombas no Rio Centro em abril de1981 e os atentados contra bancas de revistas que vendiam publica-es de esquerda mostravam que a redemocratizao do pas aindademoraria a vir7.

    Os punks no Brasil no podem ser entendidos, segundo o autor,como mera adaptao de parte da juventude a uma moda, mas como

    produto do descontentamento dessa juventude violncia a que erasubmetida no cotidiano. A atitude de enfrentamento dos punks e suaimagem foram e ainda so usadas pela mdia como algo extico, semcontedo ou mensagem, mesmo com as transformaes que o movi-mento sofreu ao longo dos anos.

    A assimilao do punk pelo anarquismo rendeu muitas diver-gncias no movimento paulista, pois os punks provenientes da cityeda zona do ABC discordavam quanto aos rumos do movimento. Os

    punks da city, inuenciados pelo anarquismo, queriam uma posturamais engajada, orientando suas prticas para difuso do anarquismo e luta concreta contra o capitalismo.

    Os punks do ABC se fechariam mais nas identidades, adotandouma postura mais fechada na sua prpria cultura, dando origem aosCarecas de Subrbio e aos punks radicais conhecidos como punksOi!. No incio, ser Careca era apenas uma forma de se diferenciar dos

    cabeludos punks. Posteriormente, comeam a se interessar pelo movi-mento skinhead ingls e, aos poucos, foram se adaptando a este mo-vimento, motivados, principalmente, por se considerarem operrios.

    Os punks desaparecem aos poucos dos noticirios, a no serquando alguma gangue Oi! comete algum delito grave. A contracul-tura punk nunca esteve morta, como comenta Rugai (1996). O movi-mento punk e sua produo cultural sempre estiveram vivos atravs

    7 O autor est se referindo aos vrios atentados cometidos por militares radicais

    durante os anos de 1980 e 1981, das eleies indiretas de 1982, assim como da aopolicial contra a juventude punk, encarada como uma ameaa em potencial.

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    de fanzines, shows, coletivos,squatts8, cooperativas, encontros, e es-sas atividades concretas apenas no circulam na grande mdia, e sim

    nos meios alternativos.A contracultura atravessa os anos 1960, no apenas em forma

    sem contedo na indstria cultural. Os punks negaram, em parte, ocontedo pacista dos hippies, mas recuperaram vrios de seus ele-mentos, como o faa voc mesmo na produo cultural e distribui-o independente, a mdia impressa e, para alguns crticos, a estticasituacionista. O prprio punk se diversica em vrias tendncias, emuma enorme fragmentao de estilos de vida e posicionamento em

    relao ao ativismo.Um dos exemplos o Straight edge, uma contracultura provinda

    do punk, em que os participantes se abstm do uso de qualquer tipo dedroga lcita ou ilcita. Essa forma de expresso surgiu nos anos 1980,nos Estados Unidos, quando os jovens menores de idade no podiamingerir bebidas alcolicas nos shows de punk rock e eram marcadoscom um X na mo, smbolo que identica o grupo at hoje.

    A dinmica da contracultura, que se arma e se nega rapidamen-te em relao a outras esferas sociais, nos remete ideia de que acontracultura encontra-se emestado nascente (ALBERONI, 1991)e contnuo, que no chega a se estabelecer como nova ordem social:

    Uma experincia tanto individual como coletiva, que gerauma ao social de tipo novo, uma nova solidariedade, umaonda de choque sobre as estruturas estabelecidas e umavontade de renovao radical, uma explorao do possvel,

    procurando realizar alguma coisa daquilo que havia sidovislumbrado. Do ponto de vista sociolgico, um estadode transio que aparece quando determinadas foras queconstituem a solidariedade social vm a falhar. Ento, justa-mente ali onde o tecido social se dilacera, forma-se um novotipo de solidariedade, com propriedades completamente

    particulares. Em termos gerais, podemos dizer que o esta-

    8 Espao cultural e de moradia, ocupados e ligados contracultura anarcopunk, nos

    pases de lngua espanhola vo ser chamados de okupa, mesmo nome que veremosmais frente em um movimento mais amplo de luta por moradia na Europa.

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    do nascente um processo de destruio-construo de umaparte do tecido social. Criando uma solidariedade alternativa,junta protagonistas anteriormente separados e contrape-se ordem existente (ALBERONI, 1991, p. 37-38).

    Para Alberoni (1991), o grupo ou o indivduo em estado nas-cente abandona o estado de coisas que encontra no seu cotidiano

    para reelaborar uma renovao radical. Para continuar o seu desen-volvimento, precisa dar forma e estrutura para chegar a se tornar um

    projeto histrico concreto, que vai se chocar com a institucionali-dade existente. No caso de um movimento social, o estado nascente uma transio entre um arranjo social e outro que se congura naconstruo de uma nova cotidianidade e institucionalizao.

    A contracultura no apresenta xidez como no movimento so-cial e emerge de um segmento social tambm em transitoriedade,que goza de certo grau de autonomia em relao s instituies eao mercado, podendo assumir, ou no, um contedo de ruptura. Seu

    poder, segundo Liberato (2006), est na capacidade de potencializar

    sua condio transitria e poder constituinte da juventude e pro-vm, da, sua fonte de autonomia. A juventude forjar seu projeto naprtica, a partir da autonomia vivida, e correspondente moratriasocial e vitalda juventude.

    A contracultura como expresso da revolta da juventude, segun-do Liberato (2006), uma forma de conito entre o poder constituintee o poder constitudo, o conito entre o capital e a autovalorizao.A autovalorizao nomeada como contracultura estimulada pela in-

    dependncia econmica e da famlia e, portanto, a subjetividade dacontracultura se coloca como oposta da disciplina da fbrica, su-

    bordinao do trabalho e tecnocracia.

    O autor se refere s categorias utilizadas por Antonio Negri(2002), em que o poder constituinte fonte produtora das normasconstitucionais e faz engrenar novos arranjos jurdicos, regulando asrelaes em uma nova comunidade. A disseminao da fora do dese-

    jo coletivo impulsiona a emergncia ontolgica e a inovao social. O

    antagonismo entre as duas foras do poder constituinte, representado

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    pela juventude e suas aes, tem o sentido revolucionrio de forademocrtica e o poder estabelecido das instituies formais (como a

    famlia, o Estado e o partido) e da autoridade central.

    Sociedades complexas e juventudes

    As resistncias juvenis contemporneas que procuramos com-preender e analisar esto imbricadas nos uxos da alta densidade deinformao, que denem, segundo Melucci (1999), as sociedadescomplexas por trs elementos fundamentais: a diferenciao, a varia-

    bilidade do sistema e o excesso cultural. Aqui a informao umadas condies fundamentais para a sobrevivncia e o desenvolvimentodessas sociedades.

    A diferenciao est signicada no mbito das experincias indi-viduais e sociais, que se multiplicam em cada uma delas, organizadasconforme as lgicas, formas de relao, culturas e regras diferentesumas das outras. Do ponto de vista dos atores sociais, signica dizer

    que a diferenciao se expressa pelos mltiplos cdigos e regras exis-tentes na vida cotidiana e pela necessidade de se dominar essa multi-plicidade de cdigos para circular nas diversas esferas.

    Para esse autor, no se pode apenas transferir um modelo de ao,de forma automtica, de um mbito para outro. Cada vez que encon-tramos um novo mbito, em um grupo diferente do sistema, devemosadotar modelos de ao, de regras e de linguagem que sejam prpriosdesse sistema (MELUCCI, 1999, p. 85).

    A variabilidade se refere velocidade e frequncia dasmudanas. Um sistema complexo se ele se modica, o quer dizerque a transio de um tempo para outro nos impossibilita transferir ummodelo de ao, porque os sistemas tambm se modicam. SegundoMelucci (1999), podemos dizer que a primeira noo se refere dife-renciao do espao, no mbito da experincia, e a segunda se refereaos tempos da experincia.

    O excesso cultural se refere s informaes e conhecimentoscolocados disposio dos atores sociais. Um sistema complexo

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    porque pe uma quantidade de possibilidades disposio dos atores,um potencial de aes possveis que sempre mais amplo do que a

    capacidade efetiva de ao de tais sujeitos (MELUCCI, 1999, p. 86).Nas sociedades com alta densidade de informao, a produo

    diz respeito no s aos recursos econmicos, mas tambm aos inves-timentos nas relaes sociais, smbolos, identidades e necessidadesindividuais.

    [...] produzir no signica mais transformar os recursos na-turais e humanos em mercadorias para troca, organizando

    as formas da produo, dividindo o trabalho e o integran-do-o no complexo tcnico humano da fbrica. Signica, aocontrrio, controlar os sistemas complexos de informao,de smbolos e de relaes sociais. O funcionamento e aecincia dos mecanismos econmicos propriamente ditose dos aparatos tecnolgicos so conados gesto e aocontrole do sistema no qual as dimenses culturais se tor-nam preponderantes no que se refere s variveis tcnicas(MELUCCI, 1996, p. 80).

    At mesmo o mercado no diz respeito apenas circulao de mer-cadorias, mas a um lugar onde se intercambiam smbolos. Produzir econsumir ligam-se s condies de reconhecimento das identidades queos atores sociais constroem ou que lhe so impostos pela multiplicidadede pertencimentos sociais e pelos sistemas de regras que os governam.

    As consideraes de Melucci (1996) vo ao encontro dasconsideraes de Urresti (2005), quando o autor diz que no possvel

    comparar as geraes de jovens contestadores pelo grau de ecincia econsequncia de suas aes, pois os conitos esto delimitados dentrode variveis estruturais, histricas e culturais, que so especcas decada poca.

    EmAo coletiva, vida cotidiana e democracia,Melucci (1999)est convencido de que as pessoas no so simplesmente moldadas

    por condies materiais. Por esse motivo, suas aes coletivas no po-dem ser entendidas como um simples efeito de condies estruturais

    preestabelecidas ou de expresses culturais e crenas.

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    Os indivduos se adaptam e do novos sentidos s condies quedeterminam suas vidas, criando formas prprias de interao dentro

    do sistema. Sendo assim, hoje se luta tanto por questes materiais epor reformas polticas como tambm pela criao de cdigos e smbo-los culturais, resistindo e recriando seu fazer poltico diante dos uxosde informao gerados pelos sistemas complexos.

    Para Melucci (1999), os sistemas complexos em que vivemosconstituem redes de informao de alta densidade e tm que contarcom certo grau de autonomia de seus elementos. Sem o desenvol-vimento de certas capacidades formais, de aprender e agir, os indi-

    vduos e grupos no podem funcionar como terminais dessas redesde alta densidade, pois devem ser conveis e capazes de autorre-gulao. Ao mesmo tempo, h uma demanda de maior integrao eintensicao do controle, que se coloca como contedo para o cdigodo comportamento que serve de precondio da ao.

    Se por um lado existe o aumento da capacidade social de ao einterveno na ao, por outro, a produo de signicados est marca-da por uma maior necessidade de controle e regulao sistmica. Osconitos nascem, justamente, naquelas reas onde ocorrem os maioresinvestimentos simblicos e informacionais, ao mesmo tempo mais su-

    jeitas s presses por conformidade.

    A ao coletiva do tipo antagonista uma forma pela sua pr-pria essncia, com seus modelos prprios de expresso e organizao que transmite uma mensagem para o resto da sociedade. A emergn-cia dos fenmenos coletivos proveniente de tramas mergulhadas na

    vida cotidiana em que os objetivos da ao poltica se tornam pontuaise, em certa medida, substituveis. Os movimentos sociais, alm de lu-tar por bens materiais e por participao poltica no sistema, lutam por

    projetos culturais e simblicos, j que sua simples existncia pronta-mente se ope ao sistema poltico quando opta pela mobilizao po-

    pular para se expressar.

    Esse autor chama essa caracterstica de desao simblico, por-que afeta as instituies polticas, moderniza a cultura e as institui-

    es, inuencia na eleio de novas elites e, ao mesmo tempo, revela

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    questes obscurecidas pela lgica dominante da ecincia. Trata-se deuma lgica dos meios, em que os atores colocam cada vez mais na or-

    dem do dia os ns, o signicado e as redes conituosas que so formasde produo cultural, alm de sugerirem as pautas dos movimentos so-ciais e a construo de novas regras de comportamento e organizao.

    Para compreenso da construo do coletivo nas sociedades con-temporneas, o autor destaca a categoria identidade coletiva, deni-da como um processo de construo de um sistema de ao onde umator elabora expectativas e avalia as possibilidades e os limites de suaao, exige capacidade de denir-se a si mesmo e ao seu ambiente

    (MELUCCI, 1999, p. 66). No uma simples relao de custo-bene-fcio, mas uma troca de sistema de signicados, que muitas vezes seope s presses do mundo social dominante, permitindo a criao denovos valores e que as pessoas os pratiquem. Sem essa capacidade deidenticao dos atores, a injustia no poderia ser percebida.

    A denio analtica de movimento social de Melucci (1999) baseada nas seguintes dimenses: na solidariedade, como a capacida-de de os atores reconhecerem a si mesmos e de serem reconhecidoscomo membros de um mesmo sistema de relaes sociais; na presenade um conito, em que os adversrios se encontram em oposio aum objeto comum, em um campo disputado por ambos, e na rupturados limites do sistema em que os atores se referem, que signica quea ao ultrapassa a capacidade de tolerncia do sistema. As relaessociais podem ser muito variadas, mas importante que a sua capaci-dade de existncia de um comportamento ultrapasse as fronteiras dacompatibilidade, que force o sistema a modicar sua estrutura.

    Segundo Melucci (1999, p. 47), essas trs dimenses analticasdenem um movimento social e permitem analisar uma classe espe-cca do fenmeno em variadas modalidades de aes coletivas quese apresentam nas sociedades complexas. Nelas se pode encontrarconitos sem uma ruptura com o sistema e oposio entre os atores.Esses conitos se situam dentro dos limites de determinado sistema,que s existem quando h o reconhecimento mtuo e a aceitao das

    regras do jogo.

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    Pode-se encontrar, tambm, comportamentos que excedam acompatibilidade com o sistema sem conito, sem romper as regras,

    em que se situa a busca dos objetivos particularistas, o ato de rechao.Para o autor, torna-se importante para a anlise de qualquer formaemprica de ao coletiva que seja composta de variadas dimensesestabelecer que elas podem ser completamente distintas, dependendodo sistema de referncia. Um exemplo saber se o conito tem rela-o com o funcionamento da organizao ou com as regras do jogo deum sistema poltico.

    Melucci (1999), ao se referir aos modelos organizacionais das

    aes coletivas nas sociedades complexas, prefere falar em redes demovimentos e reas de movimentos, isto , rede de grupos compartin-do uma cultura de movimento e uma identidade coletiva. Essa noode rede sugere que os movimentos sociais esto em uma dinmicatroca das suas formas organizacionais e que esto se desenvolvendode forma completamente diferente das organizaes polticas tradi-cionais, ou seja, esto adquirindo autonomia crescente em relao aossistemas polticos tradicionais.

    Para Scherer-warren (2006), sempre existiram relaes sociaisque podem ser interpretadas a partir de suas conexes, mas, do pontode vista sociopoltico, das mobilizaes e aes coletivas, quandonos referimos s redes estamos nos referindo a indivduos, sujeitos,atores coletivos, organizaes, determinadas prticas sociais ou pro-

    jetos de mudana.

    Segundo essa mesma autora (2006), preciso fazer distino

    entre redes sociais, movimentos sociais, coletivos em rede e movi-mentos sociais em rede. Sem a distino entre coletivos em rede emovimentos sociais em rede, podemos facilmente confundir a ao decontrainformao e outros usos da rede tcnica com os processos deconstruo de identidades coletivas e individuais.

    Quando se fala em redes sociais, estamos partindo da denio deque uma comunidade de sentido, isto , com relaes mais ou me-nos continuadas, com anidades e identicao entre seus membros ou

    objetivos comuns, delimitada por espao de um grupo ou comunidade.So as redes de parentesco, de amizade e as redes comunitrias em geral.

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    Os movimentos sociais, segundo Scherer-warren (2006), soredes socais complexas, que transcendem organizaes empiricamente

    delimitadas e que conectam, de forma simblica, solidria ou comidenticaes comuns, denies de adversrios e de um projeto detransformao social. Os movimentos sociais podem possuir identi-dades e contedos especcos e tambm (trans)identitrios, como oecofeminismo e os movimentos por justia ambiental.

    Oscoletivos em rede referem-se s conexes de vrios atores eorganizaes, em uma primeira instncia comunicacional instrumen-talizadas atravs das redes tcnicas, que tem como objetivo a difuso

    de informaes, apoios solidrios ou de organizar estratgias comuns.Os movimentos em rede seriam redes sociais complexas, que trans-cendem organizaes empiricamente delimitadas e que conectam, deforma simblica e com laos de solidariedade, os sujeitos individuais ecoletivos cujas identidades so construdas em um processo dialgico.

    Ao longo dos seus trabalhos, Castells (1999) dene a sociedadecontempornea como uma sociedade em rede, ou seja, uma sociedadeem que as redes constituem a nova morfologia social, que impemdrasticamente uma reorganizao das relaes de poder e contribuem

    para modicar os processos de experincia, os produtivos, os de podere os de cultura.

    O que nos interessa nessas contribuies no tanto denir asociedade como uma complexa rede, visto que tanto Melucci (1999)como Scherer-warren (2006) j delimitaram bastante os campos aosquais estamos nos referindo. Sobretudo, queremos analisar como Cas-

    tells (1999) compreende o processo de construo da identidade e seusresultados, visto que o autor identica na resistncia comunal as iden-tidades que podem servir de base para uma mudana social.

    O autor dene a identidade como:

    [...] o processo de construo de signicado com base emum atributo cultural, ou ainda, um conjunto de atributosculturais inter-relacionados, o(s) qual(is) prevalecem sobreoutras fontes de signicado, para um determinado indivduoou ainda um ator coletivo [...] (CASTELLS, 1999, p. 22).

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    Para Castells (1999), podem haver identidades mltiplas, masessa pluralidade fonte de tenso e contradio tanto para autorrepre-

    sentao como na ao social. Por isso, o autor estabelece que pre-ciso denir o que identidade e o que os socilogos tradicionalmentechamam de papis. Os papis so denidos por normas estruturadas

    pelas instituies e organizaes sociais (o sindicalista, o fumante, ojogador de basquete).

    As identidades, assim como dene Melucci (1999), constituemfontes de signicados ordenadas e construdas por meio de um proces-so de individuao dos atores. Ainda que algumas identidades sejam

    construdas por instituies dominantes, somente assumem essa con-dio se internalizadas.

    Castells (1999) relata que as identidades valem-se de matria--prima fornecida pela histria, geograa, biologia, instituies produ-tivas e reprodutivas, pela memria coletiva e por fantasias pessoais,

    pelos aparatos de poder e por instituies religiosas. Porm, todo ma-terial processado pelos indivduos, grupos sociais e sociedades, queMartn-Barbero (2003) identica como as mltiplas mediaes quevo dar signicado ao, seja ela coletiva ou individual.

    Esse mesmo autor prope j que as identidades implicam umaconstruo social, as quais sempre ocorrem em determinados contex-tos e relaes de poder a distino entre trs formas, que so origensde construo de identidades que levam a resultados distintos no quetange constituio da sociedade.

    A identidade legitimadora introduzida pelas instituies, com

    a inteno de expandir e racionalizar sua dominao em relao aosatores sociais, essa identidade d origem a sociedade civil:

    [...] o conjunto de organizaes e instituies, assim comouma srie de atores sociais e organizados, que embora s vezesde modo conitante, reproduzem a identidade que racionalizaas fontes de dominao estrutural (CASTELLS, 1999, p. 24).

    A identidade de resistncia criada por atores que se encontramem posies desvalorizadas ou estigmatizadas pela lgica da domina-

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    o, que, para resistir e sobreviver, procuram princpios diferentes oumesmo opostos das instituies da sociedade. Esse tipo de identidade

    leva formao de comunas, ou comunidades, que so formas deresistncia coletiva diante de uma opresso, que ao contrrio, no seriasuportvel(CASTELLS, 1999, p. 24).

    Em geral, segundo o autor, as identidades so denidas com cla-reza pela histria, geograa ou biologia, a qual facilita a essenciali-zao dos limites da resistncia. Esse tipo de identidade est entre asmais importantes para nossa pesquisa e ser explorada mais frente,quando trataremos do referencial terico sobre o estatuto da poltica

    na modernidade, com o surgimento de movimentaes e aes quevisam a proteger e construir a comunidade para que a poltica ganheseu valor de uso.

    A identidade de projeto ocorre quando os atores sociais, utili-zando-se de qualquer material cultural ao seu alcance, constroem umanova identidade capaz de redenir seu papel na sociedade e, ao faz--lo, buscam uma transformao na estrutura social. A identidade de

    projeto, segundo Castells (1999), produz o que Alain Touraine chamade sujeitos,ou seja, a vontade do indivduo de construir sua prpriahistria atribuindo todo um signicado a todo um conjunto de experi-ncias da vida individual, que resulta na combinao necessria paraarmao dos indivduos contra as comunidades e contra o mercado.

    Castells (1999) lembra que as identidades de resistncia podemacabar resultando em identidades de projeto ou mesmo se tornaremdominantes nas instituies, como identidades legitimadoras. Do

    ponto de vista social, nenhuma identidade pode constituir uma essn-cia, nenhuma se encerra, per se, valor progressista ou retrgrado seestiver fora do seu contexto histrico (CASTELLS, 1999, p. 24).

    Para o autor, a sociedade em rede traz tona novas formas detransformao social, pois est fundamentada, para a maioria dos gru-

    pos socais, na disjuno sistmica entre o local e o global. Sob asnovas condies, as sociedades civis escolhem e so desarticuladas,

    porque no h mais continuidade entre a lgica da criao do poder na

    rede global e a lgica de associao e representao em sociedade e

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    culturas especcas. A busca de signicado acaba por ser denida poridentidades defensivas em torno de princpios comunais.

    Para Castells (1999), a maior parte das aes sociais se organizada oposio entre uxos no identicados e identidades segregadas.Sua hiptese de constituio dos sujeitos assevera que o cerne do pro-cesso da transformao social toma um rumo diferente do conhecido namodernidade, em seus primeiros anos e em seu perodo tardio. Enquan-to que na modernidade um projeto era construdo a partir da sociedadecivil, na sociedade em rede a identidade de um projeto que pode surgire se desenvolver com origem na identidade de resistncia comunal.

    Melucci (1999) sugere um modelo bipolar de latncia e visibi-lidade, que nos parece adequado para compreender o novo ciclo de

    protestos a partir da segunda metade dos anos 1990 e o movimento deresistncia ao capitalismo.

    A visibilidade tomada como um ponto onde os grupos publici-zam suas necessidades, propostas e vises de mundo toda a socieda-de, atravs de eventos, protestos, desobedincia civil, passeatas, aes

    diretas legais e ilegais e de propaganda pelos fatos. A latncia permiteque as pessoas gozem das experincias de troca de signicados quecriam novos cdigos culturais. Essa troca de sistema de signicadosmuitas vezes se opem s presses do mundo social dominante, per-mite a criao de novos valores e que as pessoas os pratiquem.

    H, portanto, uma correlao entre latncia e visibilidade. En-quanto a latncia alimenta a visibilidade de recursos de solidarieda-de, com uma estrutura cultural para a movimentao, a visibilidade

    proporciona a renovao da solidariedade ao atrair novos ativistas e acriao de novos grupos atrados pela movimentao pblica.

    O desafio simblico das juventudescontemporneas

    Assim como nos outros trabalhos citados, Melucci (2001) observa

    que a escolarizao permite aos jovens prolongarem seu tempo de notrabalho e obterem condies socioespaciais para agregao de uma

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    identidade coletiva denida por seu modo de vida e linguagem prpria.O mercado se entrelaou com essas necessidades, alimentando-as, mas

    tambm oferecendo aos seus smbolos uma consistncia autnoma. Acondio juvenil , por excelncia, uma fase de passagem e suspenso,se prolonga, se estabiliza, torna-se condio de massa, no mais ligadas condies biolgicas(MELUCCI, 2001, p. 101).

    Como resultado do prolongamento que se estabiliza e torna-secondio, ess


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