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Rafael Chirbes PARIS-AUSTERLITZ -...

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Rafael Chirbes PARIS-AUSTERLITZ ASSÍRIO & ALVIM
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Rafael ChirbesPARIS-AUSTERLITZ

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Rafael ChirbesPARIS-AUSTERLITZ

O narrador desta história, um jovem pintor de Madrid, comunista de família opulenta e acomodada, rememora, em tom de confissão urgente, os passos que conduziram ao final da sua relação com Michel, um homem maduro, de cin-quenta e tal anos, operário especializado, com a solidez de um corpo de agricul-tor normando; o homem que o acolheu na sua casa, na sua cama, na sua vida, quando o jovem pintor se encontrou sem casa em Paris; Michel, cuja entrega a toda a prova lhe devolveu o orgulho e o livrou do desamparo, agoniza agora no hospital de Saint-Louis, apanhado pela praga, a doença temida e vergonho-sa. No princípio foram os dias felizes, os passeios pelas ruas de Paris, os copos enquanto o dinheiro não acabava, o álcool e o desejo, o prazer de se amarem sem outra ambição que a de se saberem amados. Porém, pouco depois, as telas abandonadas no modesto apartamento de Michel assinalam ao jovem que as suas aspirações estão muito distantes desse quarto sem luz. E a partir daí a re-lação entre os dois começa a deteriorar-se, à medida que se acentuam os efeitos das proveniências distintas, das diferenças de classe, de idade e de formação. Diferenças que Michel combate com convicção, contrapondo-lhes um amor eterno e indestrutível… embora também possessivo e asfixiante.

Rafael Chirbes deu este livro por terminado em maio de 2015, meses antes da sua morte e depois de vinte anos de escrita, sempre abandonada e retomada. Devemos a esse rigoroso e exigente empenho uma história que indaga as razões do coração, por vezes tão espúrias como irrenunciáveis, sem assumir como certa a natureza consoladora do amor ou a sua força redentora, enfrentando com valentia a possibilidade de que, ainda que isso nos pese, o amor não vença tudo.

«Rafael Chirbes é um dos melhores escritores espanhóis, um dos grandes autores europeus do nosso tempo.»

Le Monde

«Chega “outro” Chirbes. Magnífico… O infer-no e o paraíso do amor, os restos do seu nau-frágio, as ilusões dos primeiros momentos, o desencanto… Páginas intensas, diretas, sem concessões… Nunca como agora Chirbes ti-nha entrado deste modo na selva da paixão. No livro, o mais autobiográfico, tudo está contido e tudo transborda… Uma mudança completa relativamente a romances como Na Margem… E deixou-nos em silêncio. Assombrados. Com vontade de mais. Com o propósito de o voltar a ler. Como se não nos importasse outra coisa.»

El Mundo

«Um breve romance soberbo, digno do talen-to e do ofício do seu autor… Rafael Chirbes mostra-se-nos em estado de graça no controlo do quê e do como. É direto e profundo, valen-te e certeiro. Não se trata de concisão mas de algo que tem muito mais que ver com a preci-são, com a lucidez, com a verdade poética de levantar a tela, ver o oculto, voltar a baixá-la e tratar de esquecer o que foi visto. Não sais igual depois de entrares nesta estação de Paris Aus-terlitz… Não existe comparação na narrativa da carnificina que é amar… A dissecção dessa doença que é o amor, operada por Rafael Chir-bes, é certeira, selvagem e valente e, de certo modo, racionalmente incontestável.»

El País ASSÍRIO & ALVIM

ISBN 978-972-37-1922-2

79454.10

Rafael Chirbes nasceu em Tavernes de Valldigna, Valência, em 1949. Estudou História Moderna e Contemporânea em Madrid e foi finalista do Prémio Herralde, em 1988, com o seu primeiro romance, Mimoun. Em 1996 foi galardoado com o Prémio SWR-Bestenliste, na Alemanha, com La Larga Marcha. É autor de uma obra singular que está publicada em diversos países e que tem vindo a ser premiada e elogiada pela crítica. Fale-ceu a 15 de agosto de 2015.

Foram publicados em Portugal os seus livros Os Disparos do Caçador, Crematório, Na Margem e, agora, Paris-Austerlitz.

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Rafael Chirbes

PARIS-AUSTERLITZ

traduçãoRui Pires Cabral

A S S Í R I O & A L V I M

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A cópia ilegal viola os direitos dos autores.Os prejudicados somos todos nós.

Assírio & Alvim é uma chancela da

Porto Editora

Reservados todos os direitos. Esta publicação não pode ser reproduzida, nem

transmitida, no todo ou em parte, por qualquer processo eletrónico, mecânico,

fotocópia, gravação ou outros, sem prévia autorização escrita da Editora.

Paris-AusterlitzRafael Chirbes

Publicado em Portugal porAssírio & Alvim (www.assirio.pt)

Título original: Paris-Austerlitz

© Herdeiros de Rafael Chirbes, 2016. Originalmente publicado em castelhano pela Editorial Anagrama S.A.© Porto Editora, 2016

1.ª edição: outubro de 2016

Execução gráfica Bloco Gráfico, Lda.Unidade Industrial da Maia.

DEP. LEGAL 413533/16 ISBN 978-972-37-1922-2

Distribuição Porto Editora

Rua da Restauração, 3654099-023 PortoPortugal

www.portoeditora.pt

Este livro respeita as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

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Brincava, metia-me com ele, ria-me enquanto caminhávamos pela vereda de gravilha. Prestava-se ao jogo. Colaborava, evocando episódios divertidos que tínhamos vivido juntos. Animavam-se-lhe as curtas passadas de velho. Nessas tardes em que ia visitá-lo ao Hôpital Saint-Louis tinha a impressão de que a ferida causada pelos nossos desencontros começava a cicatrizar (maintenant, on s’aime comme des bons amis) e que o próprio curso da doença se suspendia. Um halo inócuo flutuava entre os raios de sol invernal que saboreávamos, sen-tados num dos bancos do jardim. Mas, no momento da despedida, estacava diante da porta e cravava no vazio aqueles olhos amarelados que se lhe enchiam de água, e sabíamos ambos que a trégua tinha terminado: nem o mal renunciava ao seu trabalho, nem as minhas visitas lhe proporcionavam qualquer consolo. Dizia-me a sua amiga Jeanine: sofre quando te vê, trazes-lhe recordações, deitas sal na fe-rida. Saía dali sem olhar para trás e parava num dos bares da Républi-que para beber dois ou três calvados.

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I

À noite, já tarde, passava pelo bar dos marroquinos. Tinha-o frequentado com ele. Agora, porém, Michel já não se encontrava entre os poucos clientes que ainda bebiam àquelas horas. Tinha-se mudado para uma cidade paralela. Da minha cozinha via o pátio mal iluminado e, ao fundo, mergulhada nas sombras, a janela do quarto que tínhamos partilhado. Procurava não pensar nele, dei-tado a essa hora no seu quarto de hospital, de cateter espetado nas costas da mão e máscara de oxigénio a cobrir-lhe o rosto. Apesar dos sedativos que lhe davam — ou talvez por causa deles —, Michel tinha pesadelos. Dizia que o amarravam à cama e o obrigavam a ver coisas terríveis num ecrã que lhe instalavam no quarto durante a noite. Sofria alucinações. Que coisas lhe poderiam mostrar, se, ao mesmo tempo, ele se queixava de que já mal conseguia ver? Mas, quanto a ser amarrado à cama, sempre suspeitei de que houvesse al-guma verdade nas suas queixas. Imagino que — sobretudo no início — não terá sido fácil controlar os seus acessos de fúria; além disso, muitos enfermeiros tratam os doentes da peste com um misto de re-pugnância, crueldade e desprezo. O misterioso comportamento do mal, a sua ferocidade, perturba-nos a todos. Assusta-nos.

Ninguém me dirigia a palavra, apesar dos meus esforços para meter conversa. Olhavam-me com desconfiança, talvez porque — e embora nas idas ao bar eu usasse sempre calças de ganga e blusão de cabedal ou anoraque — me vissem durante o dia a atravessar a rua

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depois do trabalho, ou na fila da padaria e da mercearia, enver-gando um impecável sobretudo de fazenda azul, blazer e gravata; não gostavam particularmente de ver entrar no bar um tipo que fa-lava um francês aprendido no Lycée Français de Madrid, com a ajuda de professores nativos, e aperfeiçoado em colégios de Bordéus e Lausana. Estavam convencidos de que era um polícia do departa-mento de estupefacientes, ou da brigada de imigração; um indis-creto que andava por ali a cheirar, à procura das porcarias que pu-dessem ter escondido; na melhor das hipóteses, um jornalista ou coisa do género, um tipo que nada tinha que ver com o mundo deles, ou — pior ainda — que pertencia a um mundo em conflito com o deles. Naquele bar discreto e pouco acolhedor, que passava despercebido à maioria dos moradores do bairro porque ficava numa estreita viela lateral, traficava-se, consumia-se, comprava-se e vendia-se cocaína e haxixe, carne humana de todos os sexos e idades e mão de obra ilegal para todo o tipo de serviços. Era, pois, forçoso que se perguntassem o que fazia eu ali, naqueles sombrios labirintos onde Michel costumava perder-se alguns meses antes. O rapaz bem vestido que namora com Michel, o operário bêbado. O rapaz que Michel fode. E ao qual paga pelo serviço, certamente, pois é um desses ricaços viciosos que se excitam com os marginais. Há tipos assim. Vagueiam pelos túneis do metro, pelos molhes do rio. Boa parte do santoral católico alimenta-se desse tipo de pervertidos. Excitam-se com a pobreza alheia, procuram um vestígio da energia subjacente em que se consumou a derrota e querem sorvê-lo, apro-priar-se desse fulgor: uma caridade corrompida. Embora imagine que os clientes do bar encontrassem uma explicação bastante mais simples para o caso: eu era apenas o chibo que se colara a Michel para os espiar.

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Tinham presenciado as ocasiões em que eu o agarrava pelo braço e o levava mais ou menos de rastos porque caía e dizia impertinências aos clientes e aos empregados. Contudo, a ele nunca o olhavam com desconfiança, toleravam-lhe as bebedeiras, respondiam às suas impre-cações com dichotes e tiradas de duplo sentido: que se passa, Michel, precisas de companhia esta noite? Anda daí comigo, conheço um certo bombeiro, anda, apresento-to, e Michel ria-se, dava uma pal-mada no cachaço do zombeteiro, beijava-o na cara, e saíam juntos para qualquer lado. Outras vezes o patrão do bar, ou os empregados, deixavam-no ficar de cotovelos fincados no tampo da mesa depois da hora do fecho, bêbado ou já a dormir, e os últimos clientes acorda-vam-no, convidavam-no a ir com eles beber mais uns copos — ou fazer fosse o que fosse — noutro sítio, a perder-se entre as sombras do Bois, ou em casa de algum deles. Julgo que no mundo da noite há um respeito — ou mesmo uma certa admiração — pelo homem maduro que faz noitadas e engates, que se droga e embebeda como se ainda tivesse vinte anos. Toleravam a Michel tudo o que, vindo de qualquer outro, os irritaria e levaria a reagir com dureza ou mesmo violência. Quem não o conhecesse podia ser levado a pensar que fazia parte do grupo dos gorilas; que era um desses que ganhavam uns copos extra para agarrarem pelos ombros e arrastarem até à porta de saída qual-quer imbecil que arranjasse problemas com o empregado ou o cliente da mesa vizinha. Apesar da idade, mantinha uma corpulência que transmitia uma impressão de força, mais do que de decadência.

Mas Michel não fazia parte do grupo dos gorilas. Desprezava--os. Movia-se à margem, cumprimentavam-no com um certo res-peito, mas passava pelo meio deles como aquela personagem do ci-nema francês dos anos 50, Garou-Garou, que atravessava paredes. Nem sequer gozava de um estatuto especial — de carne poderosa,

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temida ou desejada, ou coisa assim —, como a dada altura cheguei a pensar, suponho que espicaçado pelos ciúmes. Simplesmente, Mi-chel não era rico, nem cúmplice da polícia, nem jornalista: era ape-nas um deles. Todos aqui se conhecem uns aos outros, todos sabem o ramo de atividade uns dos outros, disse-me ele numa das primei-ras vezes em que me levou ao bar, pouco depois de nos conhecer-mos. A ti o ambiente parece-te pouco elegante, e até perigoso, sim, assusta-te, chamas-lhe louche. E ria-se: Monsieur ne les trouve pas à la hauteur, mas é o meu mundo. Daqueles que são como tu nada tens a temer, e também não lhes fazes mal, sabes proteger-te deles e, de certa forma, protege-los também: fodes com eles e pronto.

E, contudo, ninguém me perguntou por ele quando deixou de frequentar o bar. Bebia connosco e deixou de aparecer: numa frase deste estilo podia resumir-se a ideia (digamos assim) daqueles indi-ferentes bebedores. Vincennes é, na aparência, um tranquilo bairro de operários remediados, vizinhos de terceira ou quarta geração, re-formados que vivem do que descontaram ao longo de décadas de trabalho; e, no topo da pirâmide, uma burguesia que se supõe bem instalada e cujos elegantes membros — o rotundo cavalheiro de chapéu de feltro e lacinho, a imponente matrona ou a petite vieille recroquevillée, de vestido Dior e maquilhagem Chanel (ou vice--versa) — cumprimentam pomposamente padeiros, merceeiros, queijeiros e empregados bancários. Porém, quando se conhece o bairro como eu cheguei a conhecê-lo durante estes últimos meses, descobrem-se, discretamente ocultas, não poucas zonas de sombra: bolsas de miséria concentradas em águas-furtadas e pátios que ou-

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trora foram armazéns, currais e oficinas, e cujo espaço foi duvidosa-mente dividido em compartimentos onde se acotovelam famílias asiáticas ou norte-africanas, reformados falidos que se veem aflitos para pagar a conta da luz, gente que vive no fio da navalha e acaba por ser engolida pelas sombras sem que ninguém lhe sinta a falta. Michel: Paris c’est comme ça, chacun pour soi. As pessoas em fuga para cima constituem a exceção: refiro-me aos que ascendem na pirâmide social e se mudam para zonas mais valorizadas da cidade, condomínios da zona oeste, apartamentos remodelados no centro. Alguns haverá, não digo que não (estive a pontos de ser um deles), mas a maioria dos desaparecidos são tipos em queda livre, despeja-dos de quartos sem janelas ou com uma única janela que dá para um saguão e com casa de banho comum no patamar, gente que depois se perde em lugares miseráveis da banlieue, ou nos corredo-res do metro. Assim — com uma só janela virada para o húmido pátio interior e casa de banho comum no patamar — era o aparta-mento de Michel. Não, exagero um pouco, o apartamento não era assim tão mau: a casa de banho ficava, é certo, ao cimo das escadas, no patamar, mas era de uso individual e as escadas não conduziam a nenhum outro apartamento: acima dessa espécie de anexo traseiro ficava apenas o telhado, no inverno frigorífico e fornalha no verão. À noite, das traseiras da minha casa, podia ver — sombra negra, olho vazado — a janela do seu quarto. Antes de dar entrada no hos-pital a título definitivo (houve três ou quatro internamentos pré-vios, para o tratarem de uma pneumonia), Michel confiou-me as chaves de casa e, durante as suas primeiras semanas de interna-mento, eu ia lá de vez em quando para regar as plantas, buscar al-guma peça de roupa que ele me pedisse e recolher a correspondên-cia: recibos, publicidade, extratos bancários.

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Por essa altura, eu tinha começado a sofrer de insónias. Sentia formigueiros nos braços e nas pernas, picadas, e certa noite, ao des-pir-me para me deitar, descobri que tinha o peito e os braços cober-tos de manchas rosadas. Ocorreu-me que Michel me tivesse trans-mitido a doença. Era-me especialmente angustiante o momento antes de dormir, quando, sozinho no quarto, as manchas na pele se tornavam visíveis à medida que me despia. Diante do espelho da casa de banho, fitava as manchas que me pintalgavam o peito e de-pois torcia o tronco, num esforço para ver as que me marcavam as costas. Não me atrevia a consultar um médico e não sabia a quem perguntar, sem levantar suspeitas, se haveria algum laboratório onde pudesse fazer análises anonimamente. Não confiava — nem confio — na discrição do sistema de saúde e no sigilo médico. Ouve-se dizer que os doentes da peste ficam inscritos em determinadas lis-tas. As manchas rosadas enchiam-se de pequenas pústulas que re-bentavam em pegajosas gotículas de pus.

Durante esses dias nem sequer fui visitá-lo. Não quis saber dele. No meu estado obsessivo, parecia-me ouvi-lo dizer, de lábios torci-dos num sorriso irónico: apanhei-te, e, na minha imaginação, essa boca tornava-se palpável, carnuda, real, transformava-se, à noite, numa imagem de terror. Levo-te comigo, repetia-me, em sonhos, a boca de Michel. Depois ele enterrava-me os dedos nos ombros, agarrava-me com força, e eu acordava lavado em suor, esbracejando para afugentar aquele fantasma. Je t’ai. Tenho-te. Sentia-me furioso ao recordar as palavras com as quais, depois de nos separarmos, se gabava de não tomar quaisquer precauções. Ria-se de mim. Dizia que não se importava de correr riscos, já que pouco tinha a perder (je m’en fous, je n’ai à perdre que de la merde, je suis un ouvrier, le passé sur mon dos, peu de gaietés, toi, tu as ton futur à toi), e acusava-me de

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nunca me ter entregado verdadeiramente a ele. Sempre com pre-cauções, com suspeitas, tu não sabes o que é amar alguém, censu-rava-me. Falava com uma mescla de altivez e mendicidade senti-mental. Mas tinha razão: eu protejo-me, ainda não cheguei aos trinta anos e, além disso, naquela altura, parecia-me que começava a ver os frutos do meu trabalho, a vislumbrar o momento em que seria recompensado por todos os meus esforços. Tinha arranjado emprego como desenhador na Cormal, uma empresa de móveis e artigos de decoração. Não era nada de grandioso, mas, ainda assim, estava convencido de que um novo caminho se abria à minha frente. E, acima de tudo, preparava a minha exposição de pintura.

Em momento algum me ocorreu que pudesse ter sido eu a in-fetá-lo. Na verdade, via a doença de Michel como o resultado da sua atitude em relação às coisas. Pensava: o mal arrasta-te se te deixares levar, se te entregares. Era o que eu pensava. E irritava-me a mansi-dão com que ele se deixara apanhar, as facilidades que permitira à doença. Michel não tinha oposto resistência: e, ao dizer isto, não me refiro apenas a usar meios físicos de proteção, preservativos e coisas assim. Naquele tempo não conseguia tirar da cabeça a ideia de que, no fundo, o mal era a expressão de uma falta de ambição, ou até de uma ausência de orgulho. Julgava Michel com severidade: um homem que nunca mudara de emprego e cuja única aspiração era chegar à idade da reforma; satisfeito desde que o salário durasse até ao fim do mês e lhe permitisse passear com o amigo aos fins de semana, cirandar pela cidade a pretexto de encontrar um qualquer utensílio necessário, deambular pelos parques, ou até (um sábado ou domingo de dois em dois ou de três em três meses) viajar de comboio até um desses lugares da costa não muito distantes de Paris para tomar mais uns copos, mudar de ares; ir ao cinema, a algum

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bar de alterne, jantar em casa de Jeanine ou do seu amigo M.; e, um mês por ano (este verão não pode ser, mas iremos no próximo), esca-par para algum local supostamente exótico (México, Indonésia, Peru), como fazia Jeanine, que trabalhava numa agência de viagens e podia arranjar-nos pacotes turísticos a preço de saldo; e bebermos juntos — durante esse mês e os onze seguintes — todo o ricard ou (fora de Paris) todo o pisco e toda a tequila que o corpo admitisse; beber entre gargalhadas, apalpões e declarações de amor cada vez mais acesas à medida que aumenta o nível de álcool no sangue, ou, depois de umas linhas de coca, voltar para casa e foder horas inteiras, ou, mais provavelmente, adormecer ao fim de umas cambalhotas na cama, porque os corpos intoxicados já não conseguem dar mais.

O pior era que Michel me arrastara para essa rotina sem pro-pósito, esse mero revoltear de um em torno do outro, enquanto nos devorávamos com cada vez menos apetite. Durante vários me-ses cheguei a acreditar que o meu ideal de vida coincidia com o dele: envelhecer juntos, chapinhando no pequeno tanque dos há-bitos; digamos que ele envelheceria vinte e tal anos e vários milha-res de copos mais cedo do que eu, o que pressupunha que, no nosso pacto, eu me declarava disposto a cuidar dele até ao seu úl-timo fôlego. Juro que aceitei esse pacto, e que usufrui dele, embora não negue que, com o passar dos meses, o meu ponto de vista so-bre o seu mundo — ou, mais bem dito, a minha perspetiva sobre a nossa relação e o nosso mundo — se modificou substancialmente: comecei a ver Michel como um ser encurralado que pretendia re-ter-me com ele na sua gaiola. Quando, deitado na cama do hospi-tal, estendia a mão para me tocar e me olhava com ânsia, eu jul-gava divisar nesse gesto a disparatada aspiração que lemos nos contos de terror, nos romances do Romantismo e nas fantasmago-

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rias que tanto agradavam aos surrealistas: um desejo de amor que perdura para além da morte.

Deixei de o visitar durante alguns dias. Não me sentia com forças para dar ânimo a quem, bem vistas as coisas, já tinha percor-rido metade do calvário que eu próprio receava ter de iniciar assim que recebesse o resultado dos exames. Nos meus pesadelos, as man-chas cresciam, infetavam-se, transformavam-se em chagas que dei-xava de poder esconder dos meus colegas da Cormal; nas noites de insónia, a minha crescente magreza obcecava-me. Faltavam ainda alguns meses para a vernissage. Imaginava que, por essa altura, já não me fosse possível ocultar os sintomas do mal. Durante meses tinha visto em revistas imagens do sarcoma de Kaposi, e agora co-nhecia-o ao vivo: via-o em vários dos pacientes com quem me cru-zava nos corredores do hospital; no fantasmagórico pelotão de cor-pos estendidos nas camas dos quartos contíguos ao de Michel, ou mesmo nas outras duas do seu próprio quarto, que tinham mudado de ocupantes três ou quatro vezes em poucas semanas (aquele que conheceste da última vez que cá estiveste teve sorte, foi apanhado por um vírus muito diligente que o liquidou em quinze dias, dizia Michel. Falava dos vírus como os torturados numa esquadra falam de polícias bons e polícias maus). Eu não queria pertencer ao exér-cito das vítimas, nem mesmo como acompanhante (as soldaderas de Pancho Villa transportadas em desengonçados vagões de mercado-rias, ou Marlene Dietrich atravessando o deserto atrás do seu legio-nário de cravo atrás da orelha, em Marrocos). Olhava com um certo desdém o amigo do último doente que partilhara o quarto com Michel, um rapaz muito novo que, pelos vistos, passava as noites a apertar a mão de um desgraçado esquelético que mal conseguia res-pirar. Estava sempre a beijá-lo nos lábios, a acariciá-lo, e quando o

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outro recobrava os sentidos falava-lhe ininterruptamente e sem dei-xar de o acariciar. Não me era simpática a atitude do rapaz. Michel inspirava-me sobretudo sentimentos de animosidade. Creio que já o disse. Os doentes em diversos estádios de declínio ofereciam-me retratos sucessivos de mim mesmo, um pouco como essas séries fo-tográficas de Muybridge que desagregam os diferentes instantes de uma ação. Muito em breve, eu ver-me-ia transformado em qual-quer um deles — e em todos.

A minha relação com a cidade que até recentemente me pare-cera tão bela (ah, não havia no mundo outra cidade como Paris), e da qual tinha esperado tantas coisas, mudou. Como essas mensa-gens traçadas a tinta invisível que só se revelam por ação de um reagente, agora já não conseguia olhar Paris sem que me surgisse uma cidade paralela, impercetível para os turistas e para boa parte dos seus habitantes, um labirinto de esquadras, tribunais, institui-ções de caridade, hospitais públicos e morgues (sem contar com os hectares de cemitérios e com os quilómetros de esgotos e catacum-bas que atravessam o subsolo). Em toda a parte detetava os vestígios da dor e da miséria humanas. À noite era assaltado por um pesadelo recorrente, que envolvia a montra de uma loja de raticidas situada nas proximidades da rue de Saint-Martin, onde ficava o antigo mer-cado da carne. Sob um letreiro centenário onde se lia Animaux Nui-sibles, exibiam-se os cadáveres ressequidos de ratazanas caçadas no extinto mercado de Les Halles não sei se no início deste século ou final do anterior. Quando passávamos pelo local, Michel e eu costu-mávamos parar uns momentos para trocar umas piadas (ele sabia do profundo asco que as ratazanas me causam, e ria-se de mim), mas agora, se alguma vez me via obrigado a passar por ali, mudava de passeio, estugava o passo e virava a cara, temeroso, porque, no

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pesadelo que me infernizava as noites, aquela montra tinha deixado de ser um divertido monumento ao kitsch para se converter no anúncio do horror que me aguardava. Era uma das portas de acesso à sombria cidade paralela para a qual alguém me tinha arrastado. Acordava a esbracejar: as ratazanas secas cercavam-me, tinham co-meçado a mordiscar-me, e enlouqueciam-me com os seus guinchos e o ruído das suas patas. Eram aos milhares e estavam simultanea-mente vivas e mortas.

Habituei-me a tomar comprimidos para dormir, e engolia-os com álcool, sem conseguir, porém, que a mistura me atordoasse: assim que fechava os olhos, era acometido por imagens sinistras; revivia em especial uma cena a que tínhamos assistido juntos alguns meses antes e que agora me parecia uma premonição. Tínhamos ido jantar a casa dos seus colegas M. e F., que viviam perto da place Blanche (Michel e eu corteses, simpáticos, apesar da nossa recente separação, maintenant comme des bons amis). O apartamento ficava no quarto andar de um edifício decrépito. O administrador baixou--nos a renda porque somos os únicos franceses que restam no pré-dio, e isto impede que se desvalorize por completo, confidencia-ram-nos os nossos amigos. O elevador estava sempre avariado e era necessário subir penosamente as escadas íngremes que ligavam os andares de tetos altos. Chega-se cá acima sem nenhum apetite para jantar, costumava gracejar Michel.

Desse serão não recordo nada em particular — suponho que, como das outras vezes, M. e F. nos serviram aperitivos tropicais e couscous ou dim sum trazido de algum takeaway asiático —, mas não mais esqueci o que aconteceu assim que saímos do aparta-mento. Estranhámos logo o barulho que ecoava pelo vão das esca-das, vindo do átrio do prédio. Vozes ásperas, autoritárias, mistura-

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