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ICA

TÍTULO Atas Jornadas de Língua Portuguesa Investigação e Ensino

ORGANIZAÇÃO CÁTEDRA EUGÉNIO TAVARES DE LÍNGUA PORTUGUESAUNIVERSIDADE DE CABO VERDE E CAMÕES, I.P.Diretora: Amália de Melo LopesVogal: Mariana Faria

COMISSÃO CIENTÍFICA

Amália de Melo LopesElvira ReisGildaris PandimJosé Esteves ReiMaria de Fátima Fernandes

REVISÃO LINGUÍSTICA

Claudete GonçalvesDjamilsa LopesKatelene SilvaTamar Lopes

COORDENAÇÃO EDITORIAL DSDE – Elizabeth Coutinho

EDIÇÕES UNICV Praça Dr. António Lereno, Caixa Postal 379-C Praia, Santiago, Cabo Verde Tel (+238) 334 0441 – Fax (+238) 261 2660 Email: [email protected]

COPYRIGHT Autores / Organização

ISBN 978-989-8707-50-5

Praia, novembro de 2018

UNIVERSIDADE DE CABO VERDEScientia via estwww.unicv.edu.cv

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Iniciativa organizada porCÁTEDRA EUGÉNIO TAVARES DE LÍNGUA PORTUGUESA

Apoio

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6 nota de apresentação

Parte IEnsino de Português Língua Segunda/ Língua Estrangeira9 O português: uma língua e várias gramáticas

Maria Antónia Mota

22 Lusofonia ou luso-afonias em MoçambiquePerpétua Gonçalves

36 Os períodos pré-histórico e proto-histórico da língua portuguesaPaulo Osório

47 A criança bilingue e os mitos do bilinguismoJoão Costa

58 Estratégias para melhorar as competências em Língua Portuguesa em contextos bilingues - aprendizagem baseada em conteúdosAna Maria Martinho

71 Consciência metalinguística e educação em portuguêsMaria Helena Ançã

82 Cinco Estratégias educacionais para melhorar o ensino do português Amália de Melo Lopes

92 Fatores de aprendizagem do português língua segunda: o foco nas estratégias metodológicasElvira Reis

103 Comunicação multimodal em aulas de língua-culturaClara Ferrão Tavares

118 Materiais interativos para a aprendizagem da língua portuguesaRui Vaz

130 Literatura e ensinoJosé Esteves Rei

ÍND

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140 O ensino da literatura: contextos e lugares da prática no ensino da língua portuguesa em Cabo VerdeFátima Fernandes

154 A crise da literatura e as literaturas marginais ou marginalizadasArnaldo Saraiva

Parte IIEducação Bilingue167 Formação de professores, práticas de

educação plurilingue e contacto de línguasAna Isabel Andrade

183 O cabo-verdiano na educação: implicações no desenvolvimento da língua portuguesaDulce Pereira

203 RecomendaçõesCátedra Eugénio Tavares de Língua Portuguesa

Parte IIIMateriais didáticos para o ensino e a aprendizagem de português como língua segunda207 Tecnologias móveis para o ensino

e a aprendizagem de português língua materna e segundaAdelina Moura

220 Aprender a língua com o MoodleLuísa Inocêncio

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ÃO É com um grato prazer que levamos ao público as Atas das Jornadas

de Língua Portuguesa organizadas pela Cátedra Eugénio Tavares de Língua Portuguesa. Trata-se de uma atividade anual da Cátedra, reali-zada em novembro, que visa fazer a interação entre a investigação e as boas práticas no ensino do português em Cabo Verde.

Na verdade, tal como é afirmado no seu documento conceptual, pretendem ser um “Espaço de divulgação do conhecimento e de re-flexão em torno da língua portuguesa em Cabo Verde, da sua didática e ensino, e formação de professores, sobre temas e questões que preo-cupam os professores de Português e diretamente relacionadas com o trabalho de aplicação dos programas dos ensinos básico e secundário desta disciplina.

Os seus objetivos fundamentais são: divulgar as pesquisas feitas sobre a didática e o ensino da língua portuguesa; divulgar as boas práticas de ensino dessa língua em Cabo Verde; contribuir para dar resposta às necessidades de formação dos professores.”

As I Jornadas, realizadas de 9 a 19 de novembro e de 7 a 11 de dezembro 2015, foram multitemáticas, integrando as seguintes áreas científicas: Sociolinguística, política linguística e história da língua, Ensino da Língua Portuguesa, e Literatura e seu ensino. Tivemos, então, a oportunidade de ouvir comunicações de grande relevância científica de investigadores de diferentes universidades: Eduardo Mondlane, de Moçambique, de Lisboa, Nova de Lisboa, de Aveiro, do Porto, da Beira Interior, do Instituto Politécnico de Santarém, especialistas do Camões – Instituto da Cooperação e da Língua e da Universidade de Cabo Verde.

No total, foram realizadas seis conferências individuais, duas mesas redondas, uma na área de ensino da língua, com quatro especialistas e outra na área da literatura, com três especialistas, seis Seminários de Investigação, integrados nas linhas de investigação da Cátedra e des-tinados, sobretudo, aos mestrandos do Curso de Mestrado em Ensino do Português, Língua Segunda/Língua Estrangeira e três oficinas para os mesmos destinatários.

As II Jornadas decorreram nos dias 9 e 10 de dezembro de 2016. O foco incidiu sobre a educação bilingue em Cabo Verde. Pudemos

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contar com a participação de duas investigadoras de aprofundado conhe-cimento e vasta experiência na matéria, que levaram aos professores os resultados da sua investigação e reflexão, em conferências e comunicações do mais alto nível; e com a apresentação e discussão da experiência de edu-cação bilingue cabo-verdiana, por parte de professores nela participantes, ampliando os seus resultados aos investigadores e demais professores.

Do trabalho oficinal sobre o modelo de Educação Bilingue para Cabo Verde resultaram propostas concretas, consubstanciadas nas Recomendações das Jornadas que foram encaminhadas às autoridades educativas e divulga-das, de um modo geral.

As III Jornadas tiveram como eixo central a questão relevante da produ-ção de materiais didáticos para o ensino e a aprendizagem de Português como Língua Segunda, uma temática que se revelou pertinente no decurso das Jornadas anteriores. Nesse âmbito, o programa contemplou intervenções sobre os seguintes temas: Plano Nacional de Leitura; Tecnologias Móveis para o Ensino e a Aprendizagem de Português como Língua Segunda; A Leitura na Era Digital; Aprender a Língua Portuguesa com o Moodle; Materiais Didáticos e Aprendizagem Literária; Fundamentos teórico-meto-dológicos de avaliação de competência linguístico-comunicativa; Princípios e(m) práticas para avaliar competência linguístico-comunicativa; Produção de Materiais para o Ensino Bilingue. Como sempre, tivemos conferências e oficinas orientadas por reconhecidos especialistas.

Tal como concebidas, além de as Jornadas serem uma ação de divulga-ção científica sobre o Português, nas áreas de estudo da Cátedra Eugénio Tavares de Língua Portuguesa, permitem intervir noutra grande área de sua intervenção que é a formação contínua de professores.

Essa é a razão fundamental por que partilhamos os textos das comunica-ções selecionadas das Jornadas, augurando que sirvam para incentivar a troca de experiência e de informações entre especialistas e professores de portu-guês em Cabo Verde, para uma boa interação entre a investigação e o ensino.

Amália de Melo Lopes

Diretora da Cátedra Eugénio Tavares de Língua Portuguesa.

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PARTE IENSINO DE PORTUGUÊS LÍNGUA SEGUNDA/ LÍNGUA ESTRANGEIRA

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O PORTUGUÊS: UMA LÍNGUA E VÁRIAS GRAMÁTICAS1

Maria Antónia MotaUniversidade de Lisboa

“Strictly speaking (…), both dialect and language [in the sense of ‘a language’] are relative terms, based on grouping together speakers with broadly similar grammars” (Smith & Wilson, 1979)

Com vários centros de gravitação, o português é plural: repartido por dife-rentes zonas do mundo – numa configuração estelar que na Europa teve o seu centro primeiro –, o português não foi e não é, naturalmente, imune ao espaço e ao tempo. É, hoje, a súmula de todas as variedades que carregam na sua história a variedade inicial, que se recriou, nutrindo-se de outras línguas que encontrou em novos espaços ou que a ela vieram juntar-se.

As línguas que, como o português, o espanhol ou o inglês, saíram do seu local de formação e se tornaram línguas faladas como língua materna (L1) ou língua segunda (L2) noutras zonas diferenciaram-se em vários aspetos da sua matriz linguística; diferenciado, mas não desagregado, o português fa-lado na Europa, no Brasil ou em África mantém um núcleo de coidentidade, embora filtrado, peneirado, pela realidade linguisticamente multifacetada das sociedades onde é falado. O português de cada um dos territórios, de cada uma das sociedades que o acolheu como seu, é o português de quem

1 Este texto é uma adaptação da conferência proferida na Uni-CV, em março de 2016.

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ali o fala mas é também o português de todos, se se considerar “português/língua portuguesa” como um conceito abrangente.

O conceito de língua é, como reconhecido por linguistas de diferentes escolas, de difícil definição, já que subsume um vasto conjunto de (sub)va-riedades ou de gramáticas2 e de usos diferenciados:

“Os indivíduos desenvolvem gramáticas, entidades biológicas repre-sentadas no cérebro que caracterizam o seu conhecimento linguísti-co. (…) É verdade que não há dois indivíduos que falem exatamente do mesmo modo (…) [e] mesmo se aqueles que são criados na mesma comunidade de fala acabam frequentemente por falar de modo bas-tante aproximado, isso nem sempre acontece.” (Lightfoot, 1999)

“Visto que cada falante terá ouvido [ao longo da vida] uma multipli-cidade de enunciados diferenciados, não é surpreendente que venha a dispor de uma gramática um pouco diferente da das pessoas que o rodeiam [com experiências linguísticas diferentes]. No sentido estrito do termo, não podemos portanto falar da gramática do inglês, mas apenas das gramáticas dos falantes do inglês.” (Smith & Wilson 1979, t. n. e itálico nosso)

A ser possível atingir-se um nível ideal de descrição que contemple todas essas gramáticas e a sua variação interna, então será também possível dar um conteúdo sólido ao conceito de “português”. Contudo, e porque a mudan-ça é uma propriedade inerente a qualquer língua, despoletada por fatores internos e externos (e que, por vezes, se desenvolve e implanta num curto espaço de tempo), essa descrição estará sempre incompleta, em atraso, rela-tivamente aos dados empíricos.

Nos últimos anos, muitos investigadores se dedicam à descrição das va-riedades/ gramáticas do português: esse trabalho contribui para a definição de “português/língua portuguesa”, ao permitir aprofundar o conhecimento da gramática que, em cada território, é considerada típica da comunidade em causa, no seu conjunto; isto é, permite definir o que caracteriza o por-tuguês angolano, cabo-verdiano, europeu, etc., os parâmetros comuns e os particulares, na atual sincronia. Como resultado, pode chegar-se à definição das chamadas variedades nacionais do português, na terminologia particu-

2 De forma sintética: “gramáticas” são entendidas como construtos mentais individuais (mas maioritariamente idênticos aos dos outros falantes do mesmo grupo), decorrentes da capa-cidade da linguagem e das experiências linguísticas dos falantes.

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larmente associada à Sociolinguística. Mas, apesar de se tratar de um tra-balho primordial, para se atingir uma descrição englobante do português, é essencial comparar resultados, elaborar generalizações e validá-las. Acresce à magnitude desse trabalho o ser importante considerar as subvariedades internas a cada variedade nacional, isto é, as gramáticas parcialmente dis-tintas daquela que tipifica a comunidade como um todo, abstraindo-se de diferenças internas. Acresce, ainda, a necessidade de considerar os indícios de mudança linguística que vão surgindo na generalidade dos falantes ou em determinados grupos sociais. Para a Sociolinguística e disciplinas afins, a dimensão social da língua é um fator fundamental, a associar à descrição linguística estrita. Edwards (2009:462), referindo-se à “vida social das lín-guas”, afirma que “os indivíduos precisam de âncoras psicológicas”, que en-contram ao identificarem-se com a sua língua e com os grupos que a falam. Neste sentido, e de novo, surge um elemento de dificuldade na investigação e na procura de uma descrição globalizante do português, na sua unidade e multiplicidade: a atual maioria dos falantes do português tem esta língua como L1 inscrita em contexto multilingue (no passado, apenas, ou ainda contemporaneamente) ou como L2, em contexto também multilingue. Daí, a importância de considerar o contacto linguístico como um elemento matri-cial de grande parte das variedades nacionais do português.

Se dada sociedade, em dado território, for “monolingue” (i.e., se todos os indivíduos tiverem uma língua materna comum e não dispuserem de outra(s), de uso generalizado no território e considerada como L2), é já cla-ramente visível a existência de variação interna, a copresença de gramáticas que, partilhando um forte núcleo comum, apresentam parâmetros específi-cos em determinados domínios. Se a sociedade em questão for bi/multilin-gue, com mais intensidade se observa esse fenómeno: para além da variação e da deriva interna a cada uma das línguas em presença, é expectável a mú-tua influência entre elas, desencadeando fenómenos que, obviamente, não ocorrerão numa sociedade dita monolingue. O inesperado seria, assim, que o português falado em contexto de contacto com outra ou outras línguas ficasse imune a esse enquadramento.

Nenhuma língua falada em várias zonas do mundo, por diferentes co-munidades, como língua materna ou segunda, apresenta exatamente as mesmas características, em todas essas zonas – pense-se, por exemplo, no

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inglês britânico, americano, australiano ou indiano, no que os distingue3 e no impacto que as línguas aí faladas, quer apenas no passado quer ainda hoje, tiveram/têm na existência de diferenças que se constatam. A variação obser-vável nas produções de um falante individual (motivada, quanto mais não seja, pela adequação do registo ou do estilo a diferentes situações) remete para o facto de qualquer indivíduo poder lidar com alternativas gramaticais, que lhe chegam através da interação com (as gramáticas de) outros falantes; em última análise, esse conhecimento leva a que se admita que um mesmo indivíduo pode operar com mais do que uma gramática (Lightfoot, 1999).

Atualmente, a investigação aponta para o papel fundamental da aquisi-ção da língua pelas crianças de cada nova geração, para explicar a variação e sobretudo a mudança linguística e a sua propagação na sociedade, para a qual essas novas gerações contribuirão de forma decisiva. Essa aquisição, apesar de ser um processo mental individual, tem, como ponto de partida, os estímulos linguísticos que a criança recebe, os dados de input. Esses estí-mulos linguísticos são forçosamente variados, já que a criança é exposta, em situações normais de socialização, a produções de falantes com diferentes perfis linguísticos, mesmo em contexto monolingue (cf. Kroch 1989, Lightfoot 1999 e Roberts 2007, por exemplo). Em situações complexas de contacto linguístico, em particular, os estímulos de input podem ser deficitários, com consequências na aquisição. A consideração da interação entre construção da gramática individual e características extralinguísticas da comunidade é, assim, particularmente relevante, nesses contextos. Se o conhecimento lin-guístico dos falantes “emerge através de uma interação entre a herança lin-guística e o ambiente linguístico a que somos expostos” (Lightfoot 1991:52, t. n.), fatores linguísticos como a distância tipológica entre as línguas em contacto ou o tempo e a intensidade de exposição a cada uma das línguas são de crucial relevância. Outros fatores, como o nível de instrução, a faixa etária, os tipos de redes sociais dos falantes e, em particular, o tipo de trans-missão linguística (regular ou irregular; cf. Lucchesi et al. 2009) constituem um contributo importante para a previsão e a compreensão dos resultados do contacto. Em conjunto, fatores linguísticos e extralinguísticos ajudam, assim, a compreender a instabilidade linguística que, geralmente, se verifica

3 Sobre diferentes gramáticas do inglês britânico, ver Kroch (2005).

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em fases iniciais, antes da fase de nativização (Kachru 1986) de uma língua não de herança.

No caso dos territórios não europeus onde se fala português como L1 ou L2, ou já existiam línguas faladas pelas populações locais, antes de o portu-guês ser para aí levado, o que se verifica na maioria dos casos – e essas lín-guas ou subsistiram (como acontece com as línguas bantas em Moçambique e Angola), ou foram praticamente aniquiladas (como ocorreu no Brasil4) –, ou os territórios ocupados foram povoados com pessoas vindas de dife-rentes origens linguísticas (como no caso de Cabo Verde)5, que, por vezes, se somaram às pessoas já aí instaladas (como no Brasil, em particular). Relativamente a Cabo Verde, como sabido, foram levados escravos da costa ocidental de África, nomeadamente da Guiné, para a força de trabalho, ao serviço dos portugueses; estes também levaram consigo trabalhadores por-tugueses, alguns deles degredados e também (semi)escravizados (Orlando Ribeiro defende que a maioria deles viria do Algarve). Alguns historiadores falam da presença de outros europeus, de várias origens, e referem que, se-gundo notícia de um padre, haveria, nas ilhas de Santiago e Fogo, em 1582, 13.700 escravos, contra uma centena de europeus6. Neste contexto, surgiu a língua cabo-verdiana, mantendo-se a presença do português, muito reforça-da na fase de colónia.

O longo e regular contacto entre línguas proporciona, como mostram tantas situações comparáveis, a interpenetração de traços linguísticos, par-

4 Como descreve Lucchesi (2012), “o Brasil recebeu, entre 1550 e 1850, cerca de quatro mi-lhões de escravos africanos que falavam mais de uma centena de línguas que, em muitos casos, guardavam grandes diferenças tipológicas entre si. (…) nenhuma língua africana conseguiu subsistir no Brasil, em face da violência perpetrada no processo de escravidão”.

5 Este tipo de situações ocorreu também no caso arquipélago da Madeira, mas sem que as consequências linguísticas sejam idênticas à verificada em Cabo Verde. Tratava-se de um território não habitado e, no fim do séc. XV, a capital, Funchal, estava nos circuitos comer-ciais com o Mediterrânico e o Norte da Europa, devido ao cultivo extensivo da cana-de--açúcar e porque era uma placa giratória de comércio de escravos; foi maciça a presença de comerciantes europeus de muitas origens linguísticas, e de cerca de 2.000 escravos residentes, trazidos de África, sobretudo do N. de África, assim como de muitos guanches, das Canárias. A história do seu povoamento tem consequências linguísticas: configura uma situação de contacto linguístico intenso, na época da sua fundação e durante largo período, sendo o português muito provavelmente marcado por uma transmissão linguística irregu-lar, nessas fases iniciais. Estes factos estarão previsivelmente na origem de uma variedade bastante diferenciada da continental.

6 Ver http://www.barrosbrito.com/Ficheiros%20de%20blogs/Germano-ConceitoDescobrimento.pdf

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ticularmente fonéticos e fonológicos, mas também morfológicos e sintáticos (cf. Gonçalves 2013); nestas circunstâncias, a língua está sujeita, durante longo tempo, a uma variabilidade maior do que aquela que se constata em situações de monolinguismo (idem). Lucchesi (2012)7 defende que o proces-so de formação do português do Brasil, e em particular as chamadas varie-dades populares (que são faladas por quase dois terços da população, se-gundo o autor) é marcado por uma aquisição irregular do português, por uma transmissão linguística irregular (seguindo-se a nativização dessa variedade de L2 entre os descentes dos primeiros falantes). Considerando a história sociolinguística das sociedades que se formaram pelo contacto de popu-lações, linguística e culturalmente diversas, e o papel da aquisição, “trans-missão linguística irregular” opõe-se a “transmissão linguística regular”, em que existe uma única L1 de input para as crianças (apesar de as mesmas, se tiverem uma rede de socialização alargada e variada, estarem expostas a dados de subvariedades internas diferenciadas). O termo ‘regular’ indica que nada de particular, de imprevisível, caracteriza a transmissão linguística de geração para geração; ‘irregular’, por seu lado, remete para as fases iniciais da formação de uma L1 em contexto de contacto e com implicações diversas das que se verificam nos contextos ditos monolingues: porque a situação é muito mais complexa, vão surgir variedades/gramáticas do português, mais ou menos diferenciadas – diferenciadas das dos falantes que trouxeram essa língua, já que a quantidade, a frequência e a qualidade do modelo é es-cassa; diferenciadas entre si porque as línguas presentes no mesmo espaço e em contacto com o português são diferentes, de território para território. Contudo, a transmissão do português às novas gerações configura uma si-tuação de transmissão linguística irregular de grau leve, não comparável com aquela que caracteriza e origina a formação de um pidgin ou de uma nova língua, como um crioulo. Como refere Lucchesi (2012), nas fases iniciais,

“a língua do grupo dominante é imposta aos grupos dominados; a sua aquisição é defectiva, pois ocorre em condições adversas, por in-divíduos em sua maioria já adultos. E, por ser imposta, deve-se consi-derar a potencial resistência cultural que faz os indivíduos do grupo dominado não almejarem alcançar uma proficiência plena na língua de seus senhores.

7 Dante Lucchesi e Alan Baxter têm trabalhado, desde há vários anos, esse conceito, aplicado ao português do Brasil; cf., em Referências, no final deste texto, O Português Afro-Brasileiro.

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Portanto, a formação de uma variedade linguística numa situação de contato massivo e radical conjuga dois processos: por um lado, a erosão da estrutura gramatical da língua adquirida pelos grupos dominados (a língua alvo), e, por outro, a reestruturação gramatical dessa variedade linguística defectiva, na medida em que a situação de contato se sedimenta, ocorrendo [a sua complexificação], a sua socialização e nativização (…). A socialização (…) [dos] falantes (…) é crucial para (…) desencadear a reestruturação gramatical”8

Ressalvadas as diferenças entre contextos, quando o número de falantes de português L1 ou L2, em contexto de bi/multilinguismo, passa a ser elevado e o uso dessa língua se torna regular e expandido na sociedade, o tempo cria condições para que se efetive o processo de nativização da variedade/da gramática aí formada e para a transmissão linguística regular. A(s) gramáti-ca(s) do português assim formada(s) é/são marcada(s) por processos de rees-truturação mais ou menos longos e mais ou menos importantes, originando produtos diferenciados em grau variável. No decurso desse processo, tor-nam-se claras as “inovações relativamente ao padrão europeu” (Gonçalves 2013). Justamente, uma via produtiva de investigação é tomar diferentes tópicos linguísticos como objeto de estudo e comparar variedades nacionais mas, também, subvariedades geográficas e sociais, dentro das variedades nacionais. Ou seja, comparar as gramáticas que a língua portuguesa pode subsumir. A constituição de corpora orais e escritos é a tarefa básica para se cumprir esse objetivo; sem o recurso a dados realmente produzidos, não é possível nem descrever nem comparar gramáticas nem, sobretudo, elaborar generalizações. É, assim, uma necessidade imperiosa fazer recolhas orais de vastas dimensões, estratificadas, segundo os métodos da Sociolinguística, mas também constituir corpora do uso escrito do português. Muitos linguis-tas têm contribuído para este projeto transnacional mas, como sugerido aci-ma, a tarefa é imensa.

Em Lopes (2016), o mais recente e completo estudo sobre as línguas de Cabo Verde, é focado o aspeto das atitudes dos falantes face ao português, nas quais se inclui o sentirem-no como “we code” (identificando-o como seu, como da sua comunidade) ou como “they code” (não o reconhecendo como plena-

8 Lucchesi comenta ainda que, no caso do Brasil, “As variedades que hoje exibem um grau maior de variação são aquelas que historicamente foram afetadas mais diretamente pelo contato entre línguas”.

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mente seu, da sua comunidade) (Gumperz, 1982). Inclui-se também, relaciona-do com o aspeto anterior, o aspeto da dependência subjetiva à norma padrão do português europeu – frequentemente, os inquiridos consideram que falam um português pouco correto, desviante da norma idealizada; mesmo os falan-tes cultos têm essa inquietação, e talvez mais eles do que os restantes, por terem mais consciência das particularidades associadas a uma situação de bilinguismo e da função social da língua. O tempo é fundamental para que a sociedade, e cada comunidade dentro dela, assuma a sua diferença linguística, para que a dependência da matriz não tolha o percurso natural da apropriação da sua língua, de identidade, mesmo que não única: independentemente do tipo de acontecimentos que estão na origem da presença do português neste espaço, o português é de quem o fala, e as comparações com o português eu-ropeu só são interessantes se delas se quiser retirar mais conhecimento sobre as potencialidades desta língua. É também de grande importância considerar os “pilares de filiação a um grupo linguístico, que são subjetivos, intangíveis, não racionais e simbólicos mas (…) de longe [os] mais fortes e mais dura-douros”, sendo “fundamental o sentimento de ser distinto para que perdure o sentimento de pertença a um grupo e não a outro” (Edwards, 2009, p.9, t.n.).

Nesta perspetiva, os investigadores que trabalham sobre as varieda-des do português9 e os professores de português têm uma função social da maior relevância, contribuindo não só para a descrição do português de cada território (com base em corpora bem organizados e representativos) como para o seu reconhecimento pela comunidade e para o seu ensino. Certamente, uma das questões fundamentais é assumir a nativização do português (acompanhada de inovação, reanálise, restruturação) e a sua dis-tinção relativamente a outras variedades nacionais, incluindo a europeia. A propósito do português de Moçambique (PM) e de Angola (PA), veja-se o excerto de Gonçalves (2013:161), incluindo a nota 9:

“é necessário assinalar que uma consequência não trivial da situação de L2 do português é uma variabilidade maior dos traços gramaticais que caracterizam esta variedade do que aquela que se verifica em línguas faladas em contextos monolingues. Esta variabilidade eviden-cia-se quer na maneira pouco regular e sistemática com que estes

9 É interessante consultar http://www.catedraportugues.uem.mz/ , que contém um repositó-rio de textos sobre o português em África.

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traços se manifestam na produção linguística dos falantes angolanos e moçambicanos, quer na frequente falta de coerência entre as pro-duções dos falantes, orais ou escritas, e os juízos de gramaticalidade que estes emitem (…).

Assim, pode dizer-se que, no momento atual, o discurso dos falantes do PM e do PA é gerado não só por regras destas “novas” gramáticas, mas também da gramática do PE9”.

idem, nota 9 “No que se refere mais especificamente ao PM, diversos autores afirmaram já que este apresenta um amplo espetro de va-riação, que inclui desde as subvariedades populares (ou “baratas”) às subvariedades de falantes educados, mais próximas do padrão euro-peu (cf. Firmino, 2002; Dias, 2002)”.

É importante divulgar, junto das comunidades, informação que, baseada na reflexão sobre conceitos como os de “variedade nacional”, “standard”, “pa-drão”/“norma (padrão)”, possa ter um efeito positivo e desencadeador da consciência de que o português é plural.

O tempo é um fator fundamental para se ultrapassar a fase de instabi-lidade, de grande variabilidade dos traços gramaticais, apontada na citação acima. Mas é possível identificar e descrever o português dos falantes ins-truídos, em qualquer dos territórios: o standard10 cabo-verdiano, como acon-tece noutros espaços de África e como focado na citada nota 9, é sem dúvida próximo do europeu, mas com especificidades gramaticais que o identificam e distinguem dos restantes standards, mesmo que parcialmente. A realização desse trabalho de caracterização do português culto de Cabo Verde (pre-visto pela Cátedra Eugénio Tavares de Língua Portuguesa (Universidade de Cabo Verde e Camões, I.P.)) será determinante para a comunidade. Durante séculos, não se pôs a hipótese de considerar as variedades não europeias separadamente das europeias que, historicamente, participaram na sua origem, e muito menos de as descrever. O etnocentrismo usa a língua (a “unidade linguística”) como elemento de autojustificação, como sabido; em

10 Utiliza-se “standard” para designar a subvariedade associada aos falantes instruídos, em geral, a fim de separar este conceito do de “padrão”/“norma padrão”, associado a “purismo”, a convenções e a recomendações oficiais. Tradicionalmente, o padrão é associado a deter-minada zona, em geral aquela que corresponde aos centros de poder, embora haja funda-mentos linguísticos, também, para justificar essa escolha; no caso de Portugal, o português moderno desenvolveu-se no referido eixo, com Lisboa no centro, no séc. XVII, como nos dizem os historiadores da língua.

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Monteagudo (2012), um interessante artigo, é demonstrado que o modelo napoleónico ‘uma língua, uma nação, um estado’ vingou durante larguíssimo período. Embora o multilinguismo fosse a situação normal de toda a Europa, esse pensamento etnocentrista napoleónico invadiu-a no séc. XIX, a época justamente do reforço dos poderes coloniais. Os estados coloniais foram, com efeito, responsáveis pelo prolongamento desta ideologia – ou, melhor, desse programa político.

Hoje, como descrito, por exemplo, em De Varennes (2001), os direitos linguísticos são incluídos nos direitos humanos, ao nível da liberdade de expressão e da não discriminação. Contudo, as sociedades são atravessa-das pelo preconceito linguístico, sendo tranquilizador e necessário conhecer qual a bitola linguística (o standard), qual o modelo que ‘representa’ a sub-variedade de prestígio, que não acarretará estigmatização em nenhuma si-tuação. Esse modelo adquire maior importância quer no caso de sociedades muito hierarquizadas quer em espaços caracterizados pela referida instabi-lidade linguística. Mas é preciso não perder de vista que o standard inclui, ele próprio, variação interna. Por exemplo, em Portugal, a região central, no eixo Coimbra – Lisboa, é considerada a zona associada ao padrão europeu. Contudo, há traços que distinguem os falantes instruídos das subzonas des-se eixo; por outro lado, constata-se a existência de variantes generalizadas aos falantes cultos, atravessando todo o território (incluindo, portanto, os falantes do standard): veja-se, por exemplo, (a) vai haver várias manifestações e (b) vão haver várias manifestações; (c) houve várias manifestações e (d) hou-veram várias manifestações11. Os exemplos (a) e (c) são associados ao padrão, à norma (padrão); os exemplos (b) e (d) são rejeitados pela norma europeia mas ocorrem com cada vez mais frequência no discurso de falantes cultos (sobretudo, a variante (b)). Logo, português standard e português normativo não se sobrepõem forçosamente. A norma não reconhece nem acolhe as mudanças senão quando estas estão totalmente encaixadas, quando deixa de existir a variante precedente, de prestígio.

Descrever a gramática standard de uma variedade nacional é sem dúvida fundamental, enquanto contributo para o conhecimento do português, como um todo; mas, sobretudo e antes de mais (pelo efeito social que acarreta),

11 A propósito deste tipo de questões, ver Peres e Móia (1995).

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para a apropriação e a afirmação da identidade de cada variedade nacional. Chegar à definição de um padrão/uma norma padrão nacional será uma de-corrência do trabalho anterior. Considere-se o exemplo do Brasil: o Projeto Norma Urbana Culta (NURC) fez uma opção adequada à imensidão geográfica e à fortíssima diversidade linguística interna: não utiliza o conceito de “(nor-ma) padrão”, mas sim de “norma culta”, equivalente ao que neste texto se tem vindo a chamar “standard”, tomando, para a definir, o português dos falantes instruídos de cinco capitais:

“Este Projeto visa ao estudo da fala culta, média, habitual, através de uma documentação sonora capaz de fornecer dados precisos so-bre a nossa língua, respeitadas as diferenças culturais de cada região. Procurou-se, desde o início, deixar claro que não se tratava de estudar uma norma imposta segundo critérios externos de correção e de valora-ção subjetiva, mas sim de estudar uma pluralidade de normas objetiva-mente comprovadas no uso oral - entendendo-se norma no sentido do que se disse e tradicionalmente se diz na comunidade considerada, admitindo variações sociais ou regionais, e internas, combinatórias e distribucionais” (http://www.portuguesegramatica.com.br/help-gra-matical/projeto-nurc-ufrj.html , itálico nosso)

Retomando as considerações iniciais deste texto: se ser uma língua pluri-cêntrica, como o português, significa acolher diferentes variedades nacio-nais, com as suas subvariedades, e se cada subvariedade equivale a uma gra-mática, própria de dada comunidade, quantas gramáticas há do português? Muitas, com um núcleo central comum, com grande parte das suas proprie-dades partilhadas mas com alguns parâmetros diferenciados e próprios a cada (sub)variedade. Mateus (2003) intitula o seu capítulo “Português eu-ropeu e português brasileiro: duas variedades nacionais da língua portugue-sa” e Lucchesi vai mais longe, intitulando uma das secções de um artigo de 2012 “O português brasileiro e o português europeu: uma língua e duas gramáticas” (itálicos nossos). Generalizando, poder-se-á então falar de uma língua (o português), com um dado número de variedades nacionais, cada uma caracterizada por uma gramática ‘nacional’ – com forte representação na sociedade – e integrando um número variável de subvariedades (entre as quais, as standard e, entre elas, uma considerada padrão e associada à nor-ma). Por seu lado, Mattos e Silva, grande historiadora da língua portuguesa, discutindo a distância entre o português imposto pelo ensino da língua ma-

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terna, no Brasil, e as subvariedades que se cruzam na escola, de acordo com o conhecimento prévio dos alunos, com diferentes perfis sociolinguísticos, dá como título a uma obra de 2004 O Português são dois: novas fronteiras, ve-lhos problemas12. Chama à discussão “a questão das variedades do português que estão ainda em constituição nas últimas fronteiras da expansão do por-tuguês, iniciada há cinco séculos”, criticando a manutenção de um modelo aplicado ao ensino que perpetua a falsa tradição da unidade linguística e que é fortemente influenciado pelo padrão europeu13.

O português de Portugal mudou, desde a época em que foi levado para outros territórios; em Portugal e noutros espaços, o português recebeu con-tributos de outras línguas. Inscrito no tempo e na história, apropriado por todas as diferentes comunidades que o falam, o português, como qualquer língua pluricêntrica, acolhe múltiplas faces, sem perder o núcleo comum, que o identifica e distingue das restantes línguas. Assumir a existência de um português plural, da pluralidade de gramáticas, é assumir que, em tantos e tão particulares territórios e sociedades, ‘o português são muitos’, afirma-ção talvez polémica mas, acreditamos, com fundamento linguístico.

12 Inspirando-se no poema de Drummond de Andrade, “Aula de português”: A linguagem/na ponta da língua/tão fácil de falar/e de entender./A linguagem/na superfície estrelada de letras,/sabe lá o que ela quer dizer?/Professor Carlos Góis, ele é quem sabe,/e vai desma-tando/o amazonas de minha ignorância./Figuras de gramática, equipáticas,/atropelam-me, aturdem-me, sequestram-me./Já esquecia língua em que comia,/em que pedia para ir lá fora,/em que levava e dava pontapé,/a língua,/breve língua entrecortada/do namoro com a prima./O português são dois; o outro, mistério.

13 É plausível perguntarmo-nos se os materiais de ensino usados no Brasil têm na base um conhecimento rigoroso do padrão europeu, ou se os seus autores se pautam por uma nor-ma imaginária, mítica.Ver Varejão (2009), sobre este tipo de questões.

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LUSOFONIA OU LUSO-AFONIAS EM MOÇAMBIQUE

Perpétua GonçalvesUniversidade Eduardo Mondlane

[email protected]

Resumo

Nos países africanos, em que o português foi escolhido como língua oficial, a sua classificação como “lusófonos” é, até hoje, considerada pouco adequada à sua situação linguística, uma vez que deixa entender que o português é a língua materna maioritária das suas populações e, por conseguinte, é tam-bém a sua língua de cultura e de identidade a nível nacional.

Neste artigo, apresentam-se, em primeiro lugar, evidências de uma abor-dagem crítica da lusofonia por intelectuais e académicos (secção 1). Em se-guida, fornece-se uma breve informação sobre a política linguística e edu-cacional adotada em Moçambique desde a época colonial, que explica, pelo menos parcialmente, a dinâmica socio-histórica do português e das línguas locais bantu neste país (secção 2). Na secção 3, apresentam-se dados estatís-ticos sobre a evolução da situação linguística de Moçambique nos últimos 30 anos, em que se destaca a tendência a uma “mudança de língua” para o português, com consequente abandono das línguas maternas bantu. Em seguida, abordam-se questões de natureza qualitativa, relacionadas com a(s) competência(s)/proficiência(s) dos falantes de português e línguas bantu, com os domínios em que estas últimas são utilizadas, e ainda com lacunas

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de investigação sobre as línguas bantu moçambicanas (secção 4). A finalizar o artigo, apresentam-se evidências de alguma viragem, a ocorrer mais re-centemente, no cenário linguístico de Moçambique, em favor da valorização das línguas locais bantu (secção 5).

Palavras-chave: lusofonia, glotofagia, português, línguas bantu

Abstract

In African countries, where Portuguese has been adopted as the oficial lan-guage, their classification as “lusophone” is considered inappropriate to their linguistic situation, since it suggests that Portuguese is the majority mother tongue of their communities and, therefore, it is also their language of culture and national identity.

In this article, first, I present evidence of critical approaches to lusophony by intellectuals and scholars (section 1). In section 2, I provide information on the linguistic and educational policy adopted in Mozambique since the colonial times, which explains, at least partially, the sociohistorical dyna-mics of Portuguese and Bantu local languages in this country. In section 3, I present statistical data on the evolution of the language situation in Mozambique in the last 30 years, which shows a tendency to language shift to Portuguese, with the consequent loss of Bantu mother tongues. In the following section, I address qualitative issues, related to the competence(s)/proficiency(ies) in Portuguese and Bantu languages, and the domains of use of the latter, and I also mention gaps of the research on Mozambican Bantu languages (section 4). To conclude the article, I present evidence of some recent changes in the linguistic scenario of Mozambique towards a enhan-cement of the local Bantu languages (section 5).

Key words: lusophony, linguicide, Portuguese, Bantu languages

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1. O discurso da lusofonia

Nos países africanos, em que o português foi escolhido como língua ofi-cial, a sua classificação como “lusófonos” é, até hoje, um “terreno polémico e nada consensual” (Rosário, 2007). Obviamente, não é o termo em si que contém ambiguidades e suscita o debate. Em sentido literal, lusofonia pode ser definida como o “conjunto daqueles que falam o português como língua materna ou não”, ou como o “conjunto de países que têm o português como língua oficial ou dominante” (Houaiss et al., 2004). A falta de consenso re-lativamente à lusofonia é de natureza político-ideológica e parece resultar do “défice epistemólogico que não cobre as zonas cinzentas que os espíritos inquietos querem ver esclarecidos.” (Rosário, 2007, meu destacado).

O intelectual moçambicano Luís Bernardo Honwana (comunicação pes-soal (cp), 2004) considera que “o  conceito de lusofonia não  corresponde a nenhuma realidade sociológica ou política e não tem qualquer validade científica”, e defende que surgiu como “forma atabalhoada para resgatar o espaço do império cuja desaparição relegou Portugal a uma situação de subalternidade no palco europeu e mundial”. Esta é também a perspetiva de Ngomane (2012), ao interrogar: “Lusófonos, é? Só se for no quadro do ve-lho sonho imperial português do além-mar, ‘do Minho a Timor’. Felizmente, e que se saiba, tal sonho ruiu, desmoronando-se completamente com as independências das ex-colónias portuguesas, há 36 anos”. Numa postura também crítica relativamente ao discurso da lusofonia de alguns teóricos da colonização portuguesa, Margarido (2000) defende que, após 1974-1975, “Portugal passou a ser um país pequeno, mas dispondo de um agente espe-cífico, a língua portuguesa, que lhe permite recuperar a sua “grandeza”. Trata-se de uma prótese singular, mas que começa a revelar-se eficaz, permitindo recuperar – de maneira quase glotofágica – as culturas dos Outros.” (p. 28). (Para uma retrospetiva histórica da lusofonia, solidamente documentada, veja-se Faraco (2016)).

Uma das razões que torna mais discutível o uso do termo “lusófono” para designar os países africanos de língua oficial portuguesa é que ele faz tá-bua rasa da sua realidade linguística. Ao usar este termo “homogeneizante” (Faraco, 2011), apagam-se do mapa linguístico as outras línguas faladas por vastas comunidades de todos estes países, deixando entender que o portu-

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guês é a língua materna maioritária das suas populações e, por conseguinte, é também a sua língua de cultura e de identidade a nível nacional. Cito mais uma vez Honwana (2004, cp), segundo o qual “fazer da chamada lusofonia a nossa principal apelação – em detrimento da nossa definição nacional ou da nossa pertença à África – é obliterar ou, pelo menos, diferir a afirmação da nossa multiculturalidade”.

Antes de desenvolver o tema deste artigo – e para prevenir eventuais mal-entendidos – importa destacar que, ao abordar criticamente o trata-mento, como lusófonos, dos países africanos, não se está a pôr em causa a escolha do português como língua oficial, tanto mais que, pelo menos no quadro histórico atual, este desempenha funções que as línguas locais (ainda) não parecem poder desempenhar. Com efeito, sem excluir a impor-tância do uso de outras línguas internacionais, como o inglês, nestes países, o português assegura maior mobilidade social e permite, entre outros, a comunicação a nível internacional, o acesso ao ensino médio e superior, a consulta de literatura científica e de ficção, etc.

Não se trata, portanto, de conceber para estes países um cenário em que o português esteja ausente, até porque, pelo menos no que se refere aos países africanos multilingues, como assinala Firmino (2002), referindo-se ao caso específico de Moçambique, “o português poderá ser actualmente o úni-co símbolo conhecido pelos moçambicanos através do qual a ideia de uma nação é imaginada e experimentada, especificamente entre os moçambica-nos urbanizados” (p. 240). O que está em causa é o recurso, relativamente abusivo, à lusofonia, para identificar genericamente o conjunto dos países de língua oficial portuguesa, e até para engrossar as estatísticas, quando se trata de colocar a língua portuguesa entre as mais faladas do mundo. Para além do efeito “homogeneizante” já aqui mencionado, a escolha do portu-guês como língua oficial tem estado a desencadear processos glotofágicos (cf. Calvet, 1974), do ponto de vista quantitativo e, sobretudo, qualitativo. Dito de outra maneira, nestes países, a lusofonia pode ser “luso-afonias” (Mia Couto, 2010, meu destacado).

Neste artigo, depois de uma breve informação sobre a política linguística e educacional adotada desde a época colonial em Moçambique (secção 2), apresentam-se dados estatísticos sobre a evolução da sua situação linguís-tica depois da independência (secção 3) e abordam-se questões qualitativas,

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que revelam dimensões desta situação, não detetáveis apenas com base em informação quantitativa (secção 4). A finalizar o artigo, apresentam-se evi-dências que dão indicações de alguma viragem no cenário sociolinguístico de Moçambique, em favor da valorização das línguas bantu.

2. Política linguística e educacional em Moçambique: dados históricos

Para se compreender o processo de “ganhos e perdas” de falantes e domínios de utilização das várias línguas de Moçambique, é importante fazer um bre-ve recuo para a época colonial e para os primeiros anos do pós-independên-cia, observando o que se passou a nível da política linguística e educacional.

Durante o regime colonial português – e em contraste com a política de tolerância linguística seguida pela Grã-Bretanha ou a Bélgica – as lín-guas locais eram vistas como um obstáculo aos objetivos de assimilação linguística e cultural das populações colonizadas. Por essa razão, o seu uso era proibido em domínios oficiais e, a nível educacional, apenas podiam ser usadas na instrução religiosa. Como refere Chimbutane (2015), França e Portugal, “ao mesmo tempo que impunham o uso das suas línguas nacio-nais (Francês e Português) como veículos de ensino formal, interditavam completamente o uso de línguas locais neste mesmo domínio.” (p. 42). É interessante assinalar que “o uso de línguas locais como meio de instrução e a sua função nos serviços religiosos tiveram o efeito “colateral” de contribuir para a preservação destas línguas (Skutnabb-Kangas 2008), bem como para lhes conferir valor social e simbólico como veículos de participação na vida política (Stroud 2007)”. (Chimbutane, 2015, p. 48).

A marginalização das línguas locais bantu manteve-se nos primeiros anos do pós-independência, embora num quadro político-ideológico dife-rente. Como recorda Ba Ka Khosa (2011), a política linguística e cultural de-finida pelos novos governantes não veio alterar o cenário de “uniformização cultural e ideológica”, em que o português era considerado uma condição indispensável para a preservação da chamada ‘Unidade Nacional’. De facto, tal como aconteceu na maior parte dos países africanos, a atribuição do estatuto de língua oficial às línguas ex-coloniais decorreu do facto de se

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considerar que estas eram “politicamente neutras, porque não eram línguas de nenhum dos grupos étnicos locais, e também se assumiam como o ga-rante da modernização e integração internacional (Chimbutane, 2015, p. 50). Ficaram assim goradas as expetativas iniciais de que, depois da indepen-dência, a língua portuguesa partilharia “o seu espaço hegemónico na edu-cação, na informação, nos espaços públicos e privados, com outras línguas” (Ba Ka Khosa, 2011).

A política linguística monolítica dos primeiros anos de independência começou a ser corrigida cerca de dez anos depois, como mostra o relatório do Comité Central da Frelimo (1983), citado por Ba Ka Khosa (2011):

“Hoje, liberto o país, devemos lutar contra a tendência simplista de re-cusar a diversidade como forma de realizar a unidade. Fazer isso é conside-rar, erradamente, que a diversidade é um elemento negativo da criação da unidade nacional; é pensar, erradamente, que a unidade nacional significa uniformidade.”

Esta mudança na abordagem da relação entre o português e as línguas bantu locais manifestou-se sobretudo a partir dos anos 90, como parte do enquadramento do país no contexto global e regional, caracterizado por uma viragem político-ideológica, em que se valoriza o espírito multipartidá-rio, multilingue e multicultural (Chimbutane, 2011, p. 45). Entre outras medi-das, destaca-se a introdução de uma nova Constituição onde, pela primeira vez na história de Moçambique independente, o Estado promove o uso das línguas locais na vida pública, incluindo na educação.

Como se verá adiante, apesar da sua importância, estas alterações no plano legislativo não desencadearam automaticamente mudanças de relevo nas atitudes e perceções dos falantes face ao português e às línguas locais.

3. Situação linguística de Moçambique: dados estatísticos

Em Moçambique, para além do português, língua oficial, são faladas mais de vinte línguas bantu (Sitoe & Ngunga, 2000). De acordo com os resultados do último Censo Populacional, realizado em 2007, o português é falado sobretudo

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pela população urbana (26,3% vs 3,5% em meio rural) (cf. Chimbutane, 2012).

De que maneira a política linguística adotada na época colonial, que se prolonga no Moçambique independente, se reflete na sua situação lin-guística atual?

Os dados dos Censos Populacionais realizados ao longo de quase 30 anos (1980, 1997 e 2007), sobre a percentagem de falantes de português e de línguas bantu como língua materna (L1), podem ajudar a responder a esta questão (cf. Tabela 1). Estes dados parecem indicar a tendência a uma “mudança de língua” (‘language shift’) para o português, com consequente abandono das L1 bantu.

Tabela 1 – Moçambique: Distribuição percentual das L1 em 1980, 1997 e 2007

Língua Materna % de Falantes 1980

% de Falantes 1997

% de Falantes 2007

Línguas Bantu 98,8 93,0 85,2

Português 1,2 6,0 10,7

Fonte: Chimbutane (2012)

Os dados da Tabela 1 mostram que, em 1980, poucos anos depois da in-dependência (1975), era ínfima a percentagem de falantes de português como L1, sendo as línguas bantu as L1 da quase totalidade da população. Do ponto de vista quantitativo, por conseguinte, pode dizer-se que a política as-similacionista do regime colonial não alterou significativamente a situação linguística do país, não tendo desencadeado um processo glotofágico das línguas locais. Entre outros aspetos, é possível que a fraca implantação dos colonos no território moçambicano e, como foi já aqui referido, a exclusão da população nativa da instrução oficial tenham contribuído para explicar esta situação minoritária do português, em contraste com as línguas bantu. Entre 1980 e 2007, contudo, este quadro começa a alterar-se: neste período, a percentagem de falantes de L1 bantu diminui em cerca de 13% e, pelo contrário, neste mesmo período, a percentagem de falantes de português L1 quase decuplicou.

Se se combinar esta informação com os dados sobre os falantes de por-tuguês como língua segunda (L2) (cf. Tabela 2), verifica-se igualmente a ten-

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dência a um aumento considerável do número de falantes de português L2 que, entre 1980 e 2007, subiu 16,5%. Atualmente, por conseguinte, cerca de 40% da população moçambicana é bilingue, e, no seu conjunto, os falantes de português L1 e L2 representam mais de metade da população.

Tabela 2 – Moçambique: Evolução da percentagem de falantes de português L1 e L2 (1980 2007)

Português % de Falantesem 1980

% de Falantesem 1997

% de Falantesem 2007

L2 23,2 33,0 39,7

L1 e L2 24,4 39,5 50,4

Fonte: Chimbutane (2012)

Em suma, e retomando as palavras de Mia Couto (2010), “fala-se hoje mais português em Moçambique do que na época colonial. O governo moçambi-cano fez mais pela língua portuguesa do que os 500 anos de colonização.” (p. 30). Note-se, contudo, que, como também afirma o escritor, este contributo para o aumento do universo de falantes de português não decorre de um projeto chamado lusofonia: o governo moçambicano fê-lo “no seu próprio interesse nacional, em defesa da sua coesão interna, pela construção da sua própria interioridade” (Mia Couto, 2010, p. 31).

4. Situação linguística de Moçambique: informação qualitativa

Apesar da relevância dos dados fornecidos pelos Censos Populacionais, é incontestável que estes apenas permitem ter uma uma visão muito simpli-ficada da sua situação linguística e do perfil linguístico da população mo-çambicana. Por exemplo, quando se diz que, em 2007, 85,2% da população tem línguas bantu como L1, parece estar-se a assumir que os indivíduos in-cluídos neste grupo têm a mesma competência/proficiência nessas línguas. Na verdade, as respostas à pergunta do Censo “Em que língua aprendeu a falar?” apenas permitem estabelecer, com alguma segurança, quais são as L1 dos falantes, mas não dão informação sobre a sua competência/proficiência

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nas suas L1. Por seu turno, as respostas à pergunta “Sabe falar Português?” também têm de ser interpretadas com algum cuidado. Esta é uma pergunta muito vaga, que não oferece aos indivíduos recenseados opções sobre o seu domínio desta língua (por exemplo, “muito bem”, “bem”, “razoável”, “pouco”). Neste caso, são os próprios recenseados que se autoavaliam relativamente ao seu conhecimento desta língua, com base em critérios pouco rigorosos e, muito provavelmente, não uniformes. É, pois, importante cruzar os dados quantitativos com informação qualitativa, que pode revelar outras dimen-sões da situação linguística de Moçambique.

No que se refere mais particularmente ao domínio das línguas bantu pelos falantes nativos, a situação é mais complexa do que seria talvez esperável. Embora não tenha ainda sido realizada uma pesquisa orientada especifica-mente para a caracterização da sua competência/proficiência nestas línguas, é possível afirmar – com base em observação empírica e em declarações re-colhidas em contactos informais – que existe um continuum de variação re-lativamente amplo, que os dados estatísticos não permitem captar. Num dos extremos desse continuum, poderão estar os falantes que adquirem as línguas bantu através de um processo de transmissão regular, geralmente em con-texto rural (quase) monolingue, e que alcançam uma competência plena nas suas L1. No outro extremo desse continuum, estarão os falantes bilingues com português como L2 – sobretudo os mais escolarizados e que vivem em meio urbano – cuja competência/proficiência em línguas bantu dá evidência de al-guma ‘erosão’ ou de perda linguística parcial. Alguns destes falantes apenas compreendem os enunciados (orais) nas suas L1, mas têm dificuldades a nível da produção. De uma forma geral, este fenómeno de ‘erosão’ decorre de uma exposição restrita às suas L1 em contexto familiar apenas na primeira infân-cia, sendo que, a partir da entrada para a escola, o português passa a ser a sua língua de comunicação dominante ou mesmo exclusiva. Esta é uma dimensão glotofágica do português que está para além dos números, e que não foi, até hoje, explorada nos estudos sobre a situação linguística de Moçambique. De uma forma geral, quando se menciona a percentagem de falantes de línguas bantu, assume-se que, pelo facto de estas serem as suas L1, todos têm uma competência/proficiência plena e idêntica nestas línguas, o que está longe de corresponder à realidade linguística moçambicana.

Por sua vez, os dados quantitativos fornecidos pelos Censos Populacionais

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também não dão conta do facto de que, no que se refere à competência/proficiência dos falantes de português (L1 ou L2), existe igualmente um es-petro de variação relativamente amplo, que inclui desde as subvariedades ‘basiletais’ até às subvariedades ‘educadas’, mais próximas do padrão europeu. Embora as primeiras não tenham sido, até hoje, estudadas de forma sistemá-tica, sabe-se que há falantes - sobretudo os que não foram escolarizados ou têm um baixo nível de escolaridade - que têm um vocabulário muito reduzido de português e um conhecimento restrito das suas propriedades gramaticais. Desconhece-se, entretanto, quantos dos falantes destas subvariedades basi-letais terão respondido afirmativamente à pergunta dos Censos “Sabe falar Português?”. Em suma, quando se afirma que mais de 50 % dos moçambi-canos falam português, está-se a fazer referência a um grupo heterogéneo cujos membros se distribuem ao longo de um continuum de diferentes níveis de competência/proficiência. Só com base em informação mais sofisticada e rigorosa, seria possível avaliar o grau de lusofonia ou de “luso-afonia” da po-pulação que declarou saber falar português nos Censos Populacionais.

Uma outra dimensão qualitativa da situação linguística moçambicana, que os dados estatísticos não permitem captar, diz respeito aos domínios de utilização do português e das línguas bantu. Deste ponto de vista, pode dizer-se que, ao longo de mais de 30 anos de independência, o cenário da época colonial pouco se alterou. Até hoje, o português, a língua oficial, é não só a língua usada nas instituições públicas e na imprensa escrita, (ainda) é a língua dominante na instrução formal, e (ainda) funciona como o principal veículo de acesso ao emprego formal e aos benefícios socioeconómicos daí decorrentes. Por conseguinte, apesar de as línguas bantu serem as mais fala-das em Moçambique, de uma forma geral, elas não são ainda usadas nos do-mínios mais prestigiados da comunicação. Honwana (2015) recorda também que estas línguas quase não são usadas em programas de entretenimento, e também não “ressoam no espaço nobre das assembleias” (p. 19), mesmo em casos em que os seus membros não têm a necessária fluência em português, prejudicando assim “o contributo de qualidade que efectivamente poderiam prestar, se utilizassem a sua língua mãe”.

Até muito recentemente, as línguas bantu apenas eram usadas em áreas restritas dos domínios “altos”, nomeadamente atividades religiosas, trans-missões radiofónicas (e, mais timidamente, televisivas) e momentos pon-

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tuais da vida pública (por exemplo, campanhas de mobilização política). Em suma, as línguas bantu – que alguns consideram ser as únicas ‘verdadeiras’ línguas moçambicanas – não são ainda reconhecidas, de facto, como uma mais-valia, tanto do ponto de vista individual como social.

Para Ba Ka Khosa (2011), como resultado de uma política linguística que valorizou exageradamente o português, “esmagámos as notas da diversida-de, silenciámos as vozes que vinham das furnas do tempo e, movidos por pretensões ideológicas de difícil sustentação, tentamos erigir um corpo, per-mitam-me o empréstimo, sem ADN, incaracterístico, insosso, descolorido, de voz monótona, desenraizada, totalmente à deriva.”

Por fim, não se pode deixar de referir aqui de que maneira, apesar dos progressos registados no estudo das línguas bantu após a independência de Moçambique, estas línguas ainda se ressentem da discriminação ne-gativa de que foram alvo durante longos anos. Até hoje, por exemplo, não é possível afirmar, com precisão, quantas são as línguas bantu faladas em Moçambique e, passados mais de 20 anos desde o primeiro Seminário so-bre a sua ortografia, realizado em 1989 (cf. Núcleo de Estudo das Línguas Moçambicanas, 1989), ainda não foi aprovada oficialmente uma ortografia para as línguas bantu.

5. Sinais de viragem

Apesar de, atualmente, as línguas bantu ainda terem uma posição relativa-mente periférica, quando comparada com o prestígio do português, existem já algumas evidências que mostram que estas começam a ser usadas não apenas nos chamados domínios “baixos”, isto é, na comunicação familiar ou entre pessoas da mesma origem étnica.

Para Chimbutane (2015), “o clima político actualmente vivido em Moçambique é favorável à promoção e valorização das línguas e culturas locais. O reconhecimento oficial do poder e medicina tradicionais, o envol-vimento público de representantes do Estado em cerimónias tradicionais diversas, e a introdução do currículo local nos programas de ensino bá-sico são exemplos deste reencontro entre o tradicional e o moderno em Moçambique” (p. 58). Chimbutane (2011), por seu lado, destaca a introdução

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do ensino bilingue (2003), considerando que este teve um impacto subs-tancial na valorização e legitimação das línguas e culturas locais, na pre-servação e desenvolvimento dessas línguas, e também na integração de comunidades e saberes locais na vida escolar. Este autor considera assim que “o ensino bilingue está a contribuir para uma mudança, em termos de perceções dos cidadãos, sobre as línguas e práticas culturais locais, uma vez que, a acrescentar ao seu papel tradicional como símbolos de identidade e autenticidade, as línguas locais tendem agora a ser também percebidas como recursos válidos a usar nos domínios da educação e desenvolvimento” (Chimbutane, 2011, p. 162).

Nesta mesma linha, Gonçalves & Chimbutane (2015) consideram que o uso das línguas bantu “no contexto escolar está a determinar que elas sejam descritas, sistematizadas e enriquecidas de modo a servirem de legítimos veículos da ciência e técnica. Neste sentido, o uso das línguas bantu no ensino pode ser – como a prática internacional o tem demonstrado – uma das melhores formas de as preservar, e de legitimar e elevar o seu estatuto social.” (p. 161-162).

Atualmente, portanto, há, sinais de viragem na dinâmica glotofágica das línguas locais, que a adoção do português como língua oficial no pós-inde-pendência parecia estar a instaurar em Moçambique. Estes sinais parecem constituir um eco do desafio que Honwana (2015) nos coloca: “Uma vez que as soluções correntes não se mostram adequadas, temos nós próprios de procurar fórmulas inovadoras que garantam a um tempo o exercício da ple-na cidadania a todos os moçambicanos e a integração, no projecto nacional, da diversidade que nos caracteriza.

Nesta busca, valha-nos a certeza de que a coesão que queremos cons-truir será mais forte à medida que, sem forçarmos a obliteração das particu-laridades de origem, cultura ou etnicidade, for crescendo em cada indivíduo, em cada comunidade, a importância e a extensão daquilo que temos por referências nacionais – valores, crenças, percepções, narrativas, mitos, aspi-rações, criações do espírito, realizações colectivas – tudo aquilo que, sendo o produto da história e da socialização, a todos se imponha como património comum, independentemente da zona do país em que se tenham produzido e da língua em que são propostos e do grupo que primeiro os perfilhou.” (p. 21).

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Neste artigo, tomou-se como base a comunicação “Lusofonia em Moçambique: com ou sem glotofagia?”, apresentada em 2012, no II Congresso Internacional de Linguística Histórica – Homenagem a Ataliba Teixeira de Castilho. São Paulo, 07-10/02/2012.

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OS PERÍODOS PRÉ-HISTÓRICO E PROTO-HISTÓRICO DA LÍNGUA PORTUGUESA

Paulo OsórioUniversidade da Beira Interior (Covilhã, Portugal)

[email protected]

Resumo

O período que vai de 218 a.C. (ocupação militar da Península Ibérica por Roma) até aos primeiros textos escritos em português é, na verdade, um período muito longo. Torna-se, por isso, necessário introduzir algumas subdi-visões, pelo que este artigo discutirá as principais transformações ocorridas na fase pré-histórica e proto-histórica da língua portuguesa.

Palavras-chave: Mudanças linguísticas, fase pré-histórica; fase proto-histórica

Resumen

El periodo que discurre entre el 218 a.C. (ocupación militar de la Península Ibérica por Roma) hasta los primeros textos escritos en portugués es, cierta-mente, un periodo muy largo. Por eso es conveniente introducir algunas sub-divisiones, dado que este artículo examinará las principales transformaciones ocurridas en la fase prehistórica y protohistórica de la lengua portuguesa.

Palabras-clave: Cambios lingüísticos, fase prehistórica; fase proto-histórica

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1. Introdução

Esta fase começa com o primeiro encontro entre Lusitanos e Romanos, em 194 a.C. e vai até 882, data do documento mais antigo, em Latim tardio, onde já se podem encontrar palavras portuguesas. É a esta passagem paulatina do Latim hispânico, lusitano e galaico, para os romances que viriam a dar origem ao Galego-Português (no Norte) e aos dialetos lusitano-moçárabes (no Sul) que Leite de Vasconcelos e Silva Neto (Mattos e Silva, 1991) cha-mam o período pré-histórico, em que as palavras latinas sofrem determi-nadas mudanças fonéticas, na sua evolução para estes romances, que irão contribuir, posteriormente, para a individualidade da língua portuguesa, no contexto dos idiomas ibero-românicos e que são atribuídos, em geral, aos substratos pré-romanos e às circunstâncias do processo de romanização1.

Há, na verdade, a destacar fenómenos extralinguísticos que condiciona-ram, verdadeiramente, o desenvolvimento e dinâmica linguísticas. O desem-barque de tropas romanas neste extremo da Europa, submetida, naquela al-tura, à influência de Cartago, é uma consequência da Segunda Guerra Púnica, durante a qual o general cartaginês, Aníbal Barca, organizou um poderoso exército, no Sul da atual Espanha, com o qual foi, com 50.000 soldados de infantaria, 9.000 cavaleiros e 37 elefantes de guerra, através do meio-dia da França de hoje, e dos Alpes, para um ataque a Roma, que correu sérios riscos, depois da histórica derrota que lhe foi infligida pelos Púnios na batalha de Canas (216 a. c.).

Na faixa ocidental da Península Ibérica, hoje ocupada pela Galiza e por Portugal, podem distinguir-se, aquando da chegada dos Romanos, quatro regiões, com características próprias: uma, que ia desde a Cantábria até ao rio Douro, habitada por Galaicos (fortemente celtizados) e por Ástures; ou-tra, a Mesopotâmia entre o Douro e o Tejo, que era a pátria dos Lusitanos, povo igualmente sob forte influência cultural dos Celtas e talvez, também, de origem indo-europeia; uma região interamnense, delimitada agora pelo Tejo e pelo Guadiana, povoada por Celtici (ou seja, povos celtizados) e por Túrdulos, provenientes da Bética (atual Andaluzia) e, finalmente, a zona que, atualmente, constitui o Algarve, onde viviam os Cónios, provavelmente de

1 Cf., por exemplo, Metzeltin (1973: 15).

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origem não indo-europeia. A primeira divisão administrativa romana (197 a. c.) incluiu o Ocidente ibérico na Hispania Ulterior, de romanização profunda e antiga, com características diferentes da que se processou na Hispania Citerior – mais superficial e, tardiamente, romanizada –, cujo extremo seten-trional, a Gallaecia, só em 61 a.C. foi ocupada por Júlio César2.

Em 27 a.C., Augusto dividiu a Hispania Ulterior em Baetica e Lusitania, estando já a primeira profundamente latinizada, enquanto, na segunda, este processo, organizado a partir da Bética, se revelava mais lento. Após a sub-missão a Roma de Cântabros e Ástures, em 19 a.C., vindo pôr, praticamente, termo a um processo de conquista de quase toda a Península (excetuando a região montanhosa habitada pelos Bascos), que durou dois séculos, o terri-tório astúrico é incorporado na Lusitania, ao passo que os Cântabros passam a fazer parte da Tarraconensis (a antiga Hispania Citerior), mas já entre os anos 7 e 2 a.C., a parte da Lusitânia situada a Norte do Douro, ou seja, a Galécia, volta a ser incluída na Tarraconense, sob a designação de Gallaecia et Asturica3, indício de diferenças étnicas entre Galaicos e Lusitanos. Residem, aqui, as motivações de um fenómeno antiquíssimo, ainda, atualmente, ob-servável em Portugal: a clivagem entre o Norte, galaico, e o Sul, lusitano, posteriormente agravada pelas circunstâncias da Reconquista.

A romanização da Galécia foi, ainda, mais tardia do que a da Lusitânia, tendo sido, em grande parte, levada a cabo a partir desta última província e da Bética e com um atraso de dois séculos em relação à da futura Andaluzia. Enquanto a romanização da Lusitânia ocorre durante o período do latim clássico, a da Galécia é contemporânea ao tempo do latim imperial, pare-cendo não ter sido tão profunda como a da primeira (o que irá explicar as inovações do galego-português). Entre os Lusitanos, distinguiu-se Viriato, um dos seus chefes mais conhecidos, na luta contra o invasor romano. No entanto, por maiores que fossem os méritos militares do guerrilheiro lusi-tano, ao projeto civilizacional de Roma, Viriato nada tinha a contrapor, como alternativa credível.

2 A tese de Harri Meier acerca das duas grandes correntes originárias da romanização da Península Ibérica foi retomada, criticamente, por Metzeltin (1979: 128-129). Vide, ainda, Meier (1996).

3 No entanto, só em 216 é que o imperador Caracalla instituiu a Gallaecia como província ro-mana autónoma, situação que prevaleceu até à chegada dos povos germânicos à Península Ibérica, no início do século V.

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Aos dois séculos de conquista da Península Ibérica seguiram-se quatro de pax romana, que terminaria, abruptamente, com a chegada de povos ger-mânicos, nos inícios do séc. V. Tal facto, significa, então, que a evolução do latim ibérico foi afetada por estes acontecimentos, na medida em que se acentuaram as tendências centrífugas, favoráveis ao desenvolvimento de particularismos regionais que, aliás, já iam notando desde o tempo da deca-dência do Império Romano do Ocidente.

Nestas circunstâncias, dividir-se-á, assim, esta fase pré-histórica em dois subperíodos: o da romanização, que vai até 409, ano da chegada de Suevos, Alanos e Vândalos à Hispânia romana (tendo os Suevos preferido o Noroeste peninsular, onde fundaram um reino) e, posteriormente, um período de lenta passagem do latim imperial para o proto-romance e os dialetos romances, favorecida pela transição da época romana para a época romano-visigótica. Com efeito, em 585, os Visigodos, ao conquistarem o Reino Suevo (situado no Noroeste peninsular, no Norte de Portugal e na atual Galiza), conseguiram unificar toda a Península sob a sua hegemonia, embora o papel de Toledo, como capital da Hispânia visigótica, em termos linguísticos, não possa ser comparado, ao que viria, mais tarde, a ser desempenhado pela região de Paris, em França, na evolução do francês. Também neste segundo subpe-ríodo, que se segue ao dos quatrocentos anos de paz romana, terá de se sublinhar o papel de Bracara (a atual Braga), não só capital do Reino dos Suevos mas, também, sede de toda a Galécia, tendo ficado célebre, no séc. VI, a ação pastoral de S. Martinho de Dume. Depois das devastações e da de-sorganização provocadas pela conquista muçulmana da quase totalidade da Península Ibérica, no séc. VIII, passa para Santiago de Compostela, a partir do séc. IX, com os começos do culto das relíquias, associado à lenda do citado apóstolo, residindo, aqui, em nossa opinião, uma das causas profundas da rivalidade entre Braga e aquela cidade, que irá favorecer a futura secessão da parte da Galiza a sul do Minho.

2. Caracterização do sistema linguístico da fase pré-histórica

Em termos de funcionamento do sistema linguístico durante o período a que nos reportamos, nomeadamente acerca das características gerais do la-

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tim hispânico, tornam-se muitíssimo esclarecedoras as palavras de Vázquez Cuesta e Mendes da Luz (1971, tomo I: 176).

Convém distinguir-se, também, a fase de evolução do latim clássico (que vigorava no início da conquista romana da Península Ibérica) para a do latim imperial (que começou a ser usado dois séculos mais tarde, por altura do termo dessa conquista, ou seja, aproximadamente, no princípio da era cristã) e, depois, a fase que vai do latim imperial até aos falares românicos.

No âmbito fonológico, o latim imperial tinha perdido, no subsistema vo-cálico, as oposições de quantidade do latim clássico, mantendo apenas as de timbre. Digno de registo que, tanto no galego-português medieval, como depois, em posição tónica, continua a ser este, fundamentalmente, o sistema fonológico das vogais orais do português, até à atualidade4. Relativamente ao subsistema consonântico, algumas inovações do latim imperial (como a palatalização dos grupos <CI>, <GI>, <TI>, de <CE>, <GE> e outras) irão ter consequências importantes, que originarão, indubitavelmente, no galego--português medieval, seis novos fonemas românicos, isto é, desconhecidos do latim (por exemplo: cidade, de CIUITATE, prezar, de PRETIARE, gente, de GENTE, roxo, de RUSSEU, filho, de FILIU e senhor, de SENIORE5). Estamos em crer que se tenha, também, iniciado, neste primeiro subperíodo da fase pré-histórica, o processo de abrandamento que levou à sonorização das oclu-sivas não vozeadas intervocálicas (por exemplo: CAPUT > cabo, AMATU > amado, AMICU > amigo), aliás fenómeno característico das restantes línguas românicas ocidentais.

O Satyricon de Petrónio, com vários passos em latim vulgar ou latim coloquial tardio, é uma obra que “parece ser uma versão do português em latim”, como afirma Silveira Bueno (1958: 39) e, de onde, retiramos, casualmente, os seguintes exemplos, colhidos do referido Satyricon: “amas bonam mentem, non fraudabo te arte secreta; Si scires quae mihi acciderant!; Hic debes habitare; non perdamus noctem; Nec adhuc omnia erant facta; be-

4 Cf. Teyssier (1993: 8), escolhendo como exemplos comprovativos palavras latinas, ainda, hoje usadas em português, onde se pode, também, observar a mudança do latim clássico para o imperial, que conserva apenas as diferenças de timbre, mas já não tem as de quanti-dade: figo, sede, rede, terra, lado, amado, porta, amor, boca, puro, derivados, respetivamente, de FĪCUM, SĬTIM, RĒTE, TĔRRA, LĂTUS, AMĀTUM, PŎRTA, AMŌREM, BŬCCA, PŪRUM). Exce-tua-se o /a/.

5 Cf. Teyssier (1993: 11).

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lissima occasio est; Praeterea grande armarium in angulo vidi; Medici illum perdiderunt; tanquam unus de nobis”.

Carolina Michaëlis de Vasconcelos, nas suas Lições de Português Arcaico, recomenda a leitura do relato de uma viagem à Terra Santa, feito por uma monja ibérica, de nome Egéria, por volta do ano 400 da nossa era, tendo fica-do conhecido como Itinerarium (ou Peregrinatio) Egeriae6. O interesse desta obra reside no facto de ela estar escrita num latim muito simples, próximo do que deveria ser o latim falado, nos fins do século IV, na Península Ibérica, portanto pouco antes da chegada dos povos germânicos, chegada esta que inicia uma nova fase histórica. A título ilustrativo, um exemplo retirado de Väänänen (1985: 314-315):

Vallis autem ipsa ingens est valde, iacens subter latus montis Dei, quae habet forsitan, quantum potuimus videntes estimare aut ipsi dicebant, in longo milia passos forsitan sedecim, in lato autem quattuor milia esse appellabant. Ipsam ergo vallem nos trauersare habebamus, ut possimus montem ingredi. 2. Haec est autem vallis ingens et planissima, in qua filii Israhel commorati sunt his diebus, quod sanctus Moyses ascendit in montem Domini et fuit ibi quadraginta diebus et quadraginta noctibus. Haec est autem vallis, in qua factus est vitulus, qui locus usque in hodie ostenditur; nam lapis grandis ibi fixus stat in ipso loco. Haec ergo vallis ipsa est, in cuius capite ille locus est, ubi sanctus Moyses, cum pasceret pecora soceri sui, iterum locutus est ei Deus de rubo in igne. 3. Et quo-niam nobis ita erat iter, ut prius montem Dei ascenderemus, quia hac parte, unde veniebamus, melior ascensus erat, et illinc denuo ad illud caput vallis descenderemus, id est ubi rubus erat, quia melior descensus montis Dei erat inde: itaque ergo hoc placuit, ut visis omnibus, quae de-siderabamus, descendentes a monte Dei, ubi est rubus, veniremus, et inde totum per mediam vallem ipsam, qua iacet in longo, rediremus ad iter cum hominibus Dei, qui nobis singula loca, quae scripta sunt, per ipsam vallem ostendebant, sicut et factum est. 4. Nobis ergo euntibus ab eo loco, ubi venientes a Faran feceramus orationem, iter sic fuit, ut per medium transversaremus caput ipsius vallis et sic plecaremus nos ad montem Dei. 5. Mons autem ipse per giro quidem unus esset videtur; intus autem quod ingrederis, plures sunt, sed totum mons Dei appellatur; specialis autem ille, in cuius summitate est hic locus, ubi descendit maiestas Dei, sicut scriptum est, in medio illorum omnium est. 6. Et, cum hi omnes, qui per girum sunt, tam excelsi sint quam numquam me puto vidisse, tamen ipse

6 Michaëlis de Vasconcelos ([1913/1977]: 238).

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ille medianus, in quo descendit maiestas Dei, tanto altior est omnibus illis, ut, cum subissemus in illo, prorsus toti illi montes, quos excelsos videramus, ita infra nos essent, ac si colliculi permodici essent. 7. Illud sane satis admirabile est et sine Dei gratia puto illud non esse, ut, cum omnibus altior sit ille medianus, qui specialis Syna dicitur, id est in quo descendit maiestas Domini, tamen videri non possit, nisi ad propriam radicem illius veneris, ante tamen quam eum subeas; nam posteaquam completo desiderio descenderis inde, et de contra illum vides, quod, an-tequam subeas, facere non potest. Hoc autem, antequam perveniremus ad montem Dei, iam referentibus fratribus cognoveram, et postquam ibi perveni, ita esse manifeste cognovi.

O texto transcrito deixa transparecer a ordem direta das partes da ora-ção (sujeito + verbo + complementos), típica do latim vulgar e realce-se a seguinte frase, bem representativa da afirmação atrás efetuada: “Haec est autem vallis ingens et planissima, in qua filii Israhel commorati sunt his diebus, quod sanctus Moyses ascendit in montem Domini et fuit ibi quadraginta diebus et quadraginta noctibus” (“Este é o vale ingente e pla-níssimo, no qual os filhos de Israel permaneceram, naqueles dias, porque o santo Moisés subiu ao monte do Senhor e ficou lá quarenta dias e quaren-ta noites”). Tal estrutura é, igualmente, visível noutra parte do texto, aqui não reproduzido: “Nos ergo sabbato sera ingressi sumus montem” (“Nós, no sábado à tarde, subimos o monte”)7, ou em, “dederunt nobis (. . .) de pomis” (“deram-nos maçãs”)8.

No subperíodo situado entre 409 e 711 (ou 882), surge a fronteira que vai separar os falares ibero-românicos do Ocidente (de onde irá depois sair o galego-português) dos falares do Centro (que deram origem ao (ásturo-)leonês e ao castelhano). Assim, em <CL>, o <C> passa a iode (OC’LU > *oylo) em todos os falares românicos hispânicos, mas, posteriormente, em galego--português, este <yl> palataliza-se, ao passo que, em castelhano, se trans-forma na africada, grafada <j>, sendo o leonês uma zona de transição. No grupo <CT>, o <yt> daqui resultante mantém-se, ainda hoje no português

7 Apud Castro (1991: 122).8 Cf. Väänänen (1985: 316). Registe-se, como curiosidade, um dos usos mais antigos que se

conhecem do chamado artigo ou genitivo partitivo (“de pomis”) que, ainda, hoje ocorre no francês e no italiano e, também, está presente no português medieval. Ver exemplos em Huber (1933/1986: § 427). Ainda em Gil Vicente se pode ler: “E arrumar a caravella / e deitar do junco nella / se vier qualquer senhora” (Apud Silveira Bueno (1958: 211), onde o leitor encontrará mais “partitivos arcaicos”, como lhes chama o autor).

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(NOCTE > *noyte > noite), enquanto que, no castelhano, a evolução continuou, dando hoje a africada e grafando-se <ch> (noche).

A outra fronteira linguística importante que começa, também agora, a assumir contornos distintos, diz respeito à mudança fonética, no Centro da Península, das duas vogais abertas, provenientes do latim imperial e deri-vadas, por sua vez, das antigas vogais breves <E> e <O> do latim clássico: quando tónicas, ditongaram-se, em diversas posições (PĚTRA > cast. pie-dra, NVE > cast. nueve). O galego-português revela ser, também aqui, mais conservador, não ocorrendo esta ditongação e mantendo estas duas vogais abertas, isto é, preservando o sistema vocálico do latim imperial (TĚRRA > terra, PRTA > porta, e não tierra e puerta, como no castelhano).

2. Caracterização do sistema linguístico da fase proto-histórica

Cronologicamente, este período vai de 882 (data do primeiro documento ori-ginal hoje conhecido, em latim tardio, na região atualmente portuguesa) até à segunda metade do séc. XII e inícios do séc. XIII, quando se presume terem surgido os primeiros poemas da lírica galego-portuguesa, bem como o mais antigo texto remanescente, datado, em português, de acordo com o estado atual da investigação. A terminologia deste período e, por nós adotada, deve--se a Leite de Vasconcelos, tendo sido, igualmente, utilizada por Silva Neto9.

Relativamente a fatores externos à língua, do mesmo modo que no pe-ríodo precedente, destaca-se, agora, um facto histórico que acabaria por ter importantes consequências na história da língua: a conquista muçulmana da quase totalidade da Península Ibérica, iniciada em 711, durando cerca de uma dezena de anos, vindo, posteriormente, a provocar a reconquista cristã, a partir das Astúrias, no Norte, que está na origem da formação das atuais línguas ibero-românicas, sendo, afinal, as dos triunfadores setentrio-nais (vindos, em parte, de regiões de romanização mais tardia e mais su-perficial, como é sobretudo o caso do castelhano). Estes reconquistadores, invertendo a situação originária, aquando do processo de romanização, que

9 Cf. Mattos e Silva (1991: 19).

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era proveniente do Sul, foram impondo as suas línguas nortenhas, depois, com maior ou menor êxito, nas regiões meridionais de cultura moçárabe, que iam sendo retiradas ao Islam e que eram as que tinham sido mais pro-fundamente romanizadas. No que concerne ao galego-português, surgido entre os séculos IX a XII, foram fatores decisivos da sua especificidade, entre outros, o isolamento dos falares do Noroeste da Península, tanto em relação ao Leste (as zonas do leonês e do castelhano), como ao Sul, onde se usavam dialetos lusitano-moçárabes, falados para além de uma fronteira, difícil de delimitar, situada algures entre o Douro e o Mondego, talvez definida pelo vale do Vouga. As diferenças entre o Norte galego e o Sul moçárabe eram notáveis neste período.

Quanto aos fatores linguísticos e tendo por base os textos que, ainda, hoje conservamos, em latim tardio, provenientes da região que veio a ser Portugal e escritos a partir do séc. IX, é possível assinalar as seguintes três inovações fonéticas típicas, aliás, do galego-português, e que não ocorrem nem a leste, nem no Sul, na zona lusitano-moçárabe: a evolução das con-soantes latinas <PL>, <CL> e <FL>, em posição inicial ou medial de palavra, para a africada grafada <ch> (PLUVIA > chuva, CLAVE > chave, FLAMMA > chama); a queda da líquida <-L-> latina intervocálica: COLORE > coor > cor), que também irá explicar o motivo por que o português é a única das línguas românicas, com literatura, em que o artigo definido não tem o <L> etimoló-gico que ocorre nas restantes; a queda da nasal <-N-> intervocálica (LUNA > lũa > lua; MANU > mão), originando, em muitos casos, a formação de ditongos nasais que tornam o português completamente diferente do castelhano. A primeira destas três inovações deve ter ocorrido já nos séculos VI e VII, en-quanto as duas últimas são dos séculos VIII e IX.

Na morfossintaxe, verifica-se a mesma evolução tipológica de uma lín-gua sintética (o latim) para um diassistema analítico (o galego-português), fenómeno observável em toda a România, em especial no castelhano. Na declinação nominal sobrevivem, apenas, duas formas: uma para o singu-lar e outra para o plural, ambas derivadas do acusativo latino. As funções sintáticas passam a ser desempenhadas por preposições e pela colocação das palavras, que se torna muito mais rígida do que no latim. Os géneros reduzem-se a dois.

A complexa morfologia verbal latina simplifica-se muito, multiplicando-se

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as construções perifrásticas (nomeadamente, o futuro simples AMARE HABEO > amar hei > amarei acaba por suplantar o futuro sintético AMABO). Do demons-trativo ILLE deriva o artigo definido, a partir das quatro formas do acusativo: ILLUM > lo > o, ILLAM > la > a, ILLOS > los > os, ILLAS > las > as, devido à aférese10

causada pelo uso proclítico e, também, devido ao facto de muitas palavras terminarem em vogal, colocando o <L> etimológico do artigo em contexto intervocálico (vejo lo cavalo, vende la casa). Na verdade, a queda deste <L> intervocálico é uma das inovações peculiares do galego-português. Ainda respeitante ao subsistema morfossintático há uma outra idiossincrasia des-tes dois idiomas do Noroeste peninsular ibérico que, entre as demais línguas românicas e até indo-europeias, só está documentada para dialetos napoli-tanos do séc. XV, e para o leonês medieval: o infinitivo com flexões pessoais.

Conclusão

Esta fase extremamente longa será, na verdade, determinante para a cons-tituição dos romances hispânicos e, posteriormente, para o próprio gale-go-português. No que respeita ao período proto-histórico, convém realçar que o termo grego proto, que significa “primeiro” ou “anterior”, sugere pre-cisamente que, do séc. IX ao séc. XII, deste romance do Noroeste ibérico foi emergindo, aos poucos, o galego-português. Alguns documentos, em latim tardio, antes chamado “latim bárbaro”, permitem já entrevê-lo: em formas como, por exemplo, abelia < APIC’LA, conelium < CUNIC’LUM, ovelia < OVIC’LA, encontradas nesses textos. Pode constatar-se como os seus autores se esfor-çavam por inventar uma grafia adequada, neste caso, ao novo fonema palatal românico, inexistente no latim, não sendo difícil adivinhar, sob esta roupa-gem, palavras bem portuguesas como abelha, coelho, ovelha, respetivamente. A solução definitiva, com a introdução do dígrafo <lh>, só seria encontrada na segunda metade do séc. XIII, segundo modelo importado de França.

Conhecer a história da língua portuguesa implica, necessariamente, re-cuarmos ao estudo destes períodos pré-históricos da própria língua.

10 Isto é, queda do <I-> inicial.

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Referências

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Meier, Harri (1996). Lateinisch vs. Romanisch. Le latin et le roman. In LRL, II,1, (pp. 62-72). Berlim: De Gruyter.

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A CRIANÇA BILINGUE E OS MITOS DO BILINGUISMO

João CostaFCSH/Universidade Nova de Lisboa

A tomada de decisão sobre políticas de ensino da língua implica um conhe-cimento robusto sobre os contextos em que se aprende, como se aprende, como a língua se desenvolve. Infelizmente, em muitos contextos, as opções assumidas são mais condicionadas por preconceitos e ideias sem funda-mento científico do que por equilíbrios entre benefícios sociais das políticas públicas, devidamente contextualizadas, e o fundamento e embalizamento científico que podem sustentar o desenho dessas políticas.

O ensino bilingue ou as opções sobre ensino em contextos multilingues são, por vezes, um infeliz exemplo de como ideias pré-concebidas sobre bi-linguismo podem ser impeditivas da implementação de políticas mais efe-tivas para uma boa aprendizagem das línguas.

Neste breve artigo, pretendo coligir alguma da informação disponível sobre bilinguismo e desmontar alguns dos mitos que, apesar da evidência, ainda prevalecem.

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1. Linguística e ciência cognitiva

Estudar a língua é estudar a mente humana. Enquanto capacidade estrita-mente humana, a linguagem é uma janela sobre o funcionamento da cogni-ção. Na esteira do pensamento de Chomsky, nunca é demasiado relembrar que a linguagem se constitui como uma faculdade autónoma, manifestando propriedades próprias, que não decorrem de outras componentes da cogni-ção. Refira-se, como exemplo, o conjunto de restrições de subjacência, que nos permitem identificar os contextos sintáticos em que é possível estabe-lecer relações de dependências entre constituintes. Por exemplo, em (1a), é possível extrair o constituinte quem de uma oração completiva, mas a mesma operação de extração é impossível a partir de uma oração adverbial, conforme exemplificado em (1b):

(1) a. Quem é que tu disseste que a Maria chamou __?b. *Quem é que tu te surpreendeste quando a Maria chamou __?

Se é verdade que há propriedades da língua que são estritamente linguís-ticas, também é verdade que há interações óbvias com outros domínios da cognição e dos dispositivos que suportam o uso da língua, tais como o apa-rato conceptual e os dispositivos sensório-motores, que asseguram que a língua é pronunciada, interpretada e compreendida. Quando nos debruça-mos sobre estes dispositivos, tornam-se mais evidentes, as áreas de interfa-ce com áreas como a memória, o raciocínio e outras componentes cognitivas que, claramente, não são estritamente linguísticas.

Conforme enunciado por Sprouse e Lau (2013), compreender a linguagem humana é entender a interação entre três níveis, simultaneamente autóno-mos e interdependentes. O nível computacional corresponde ao que Hauser, Chomsky e Fitsch (2002) designam de Faculdade da Linguagem em Sentido Estrito (FLN), isto é, o conjunto de propriedades estritamente linguísticas, que nos permitem explicar adequadamente o funcionamento da língua. O nível algorítmico permite-nos entender como é usada a linguagem, isto é, qual o conjunto de procedimentos mobilizados para uma efetiva compreen-são e uso da língua. O nível implementacional corresponde à forma como a linguagem está, efetivamente, representada no cérebro humano. Se não é possível estudar neurolinguística sem saber linguística, também é pouco

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viável desenhar modelos de representação sobre o funcionamento da lín-gua sem sabermos se estes têm exequibilidade no nível implementacional.

Estas são pontes que se têm vindo a estabelecer nas últimas duas dé-cadas de forma mais interessante e abrindo vias de investigação muito es-timulantes, embora haja ainda um mundo a explorar. Neste quadro, e exa-tamente porque estas novas questões têm emergido, têm vindo a ganhar muita atenção os contextos “especiais” de uso e desenvolvimento das lín-guas. Incluo nestes contextos especiais os estudos sobre aquisição da língua materna, aquisição da língua estrangeiras, sobre perturbações da linguagem (sejam de desenvolvimento, sejam adquiridas), o bilinguismo, entre outros.

Estes contextos são particularmente interessantes, porque neles conver-gem fatores estritamente linguísticos, fatores de desenvolvimento, contextos em que é possível isolar outras variáveis da cognição (por exemplo, numa patologia adquirida em que a linguagem é afetada, mas não a memória, é pos-sível detetar comportamentos em que se distingue o que, no uso da língua, é estritamente linguístico ou condicionado pela memória). Digamos, então, que estes contextos nos abrem janelas sobre a faculdade da linguagem e, sobretu-do, entre esta e as interfaces com outras componentes da cognição.

Por este motivo, a competência bilingue/multilingue tem vindo a ser amplamente estudada na linguística contemporânea. Este estudo intenso tem permitido que saibamos mais sobre a criança e o adulto bilingue, sobre o desenvolvimento linguístico em contextos multilingues e, através deste conhecimento mais profundo, descartar alguns mitos e preconceitos sobre o multilinguismo.

2. A competência multilingue: as vantagens e os mitos

A primeira consideração que importa tecer sobre multilinguismo é a afir-mação da sua normalidade. É importante que reconheçamos que o multi-linguismo é a norma nos indivíduos e nas comunidades. Não será ousado supor que a maior parte das pessoas é bilingue e que, na maior parte das comunidades do mundo, o bilinguismo é a norma. Ainda que não oficialmen-te, o contacto linguístico é frequentíssimo e é interessante observar como, fruto dos mais recentes fluxos migratórios, a superdiversidade linguística

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é a situação mais frequente, sobretudo nos grandes centros urbanos. Nas maiores cidades do mundo, torna-se hoje difícil investir em programas de ensino bilingues, porque as comunidades são cada vez mais multilingues e menos bilingues. Num mesmo bairro, numa mesma escola, convivem, por vezes, várias dezenas de línguas maternas. Esta superdiversidade coloca, na-turalmente, novos desafios às comunidades, em particular no que concerne o desenho de políticas de educação.

Alguns recusam o respeito pela diversidade linguística, recusando-se a ver vantagens e alimentando alguns mitos sobre o multilinguismo. Nas subsecções seguintes, demonstrarei algumas das vantagens do bilinguismo/multilinguismo e como a investigação não suporta os mitos mais frequen-temente enunciados.

2.1. Vantagens do multilinguismo

As vantagens do multilinguismo são inúmeras, quer a nível individual, quer a nível coletivo.

Em primeiro lugar, importa salientar as vantagens concorrenciais. Os in-divíduos e grupos que são bilingues, em algumas comunidades, são bastante mais competitivos. Tomemos o caso de cidades como Genebra ou Montréal, para citar apenas dois casos evidentes de convivência entre línguas diferen-tes nos setores administrativo e comercial. O profissional bilingue é mais capaz e mais competitivo, porque se move entre as várias línguas com natu-ralidade e maestria superiores.

Há também vantagens identitárias. O reconhecimento das línguas nati-vas de comunidades, como tem vindo a ser feito em vários países da América Latina, dá credibilidade e reconhecimento a diferentes comunidades, permi-te uma mais efetiva inclusão, porque elimina vias de segregação linguística, e permite a preservação de um património muito mais rico e a afirmação da riqueza da convivência de várias formas de ser e comunicar.

Finalmente, no contexto de globalização em que vivemos, o bilinguismo ou multilinguismo constituem preciosos trunfos para a mobilidade, em par-ticular em regiões que são oficialmente plurilingues. A União Europeia será um dos casos mais flagrantes de mobilidade facilitada em que o multilin-guismo é vantajoso e instrumental.

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Bialystock (2001) enuncia um conjunto de vantagens associadas ao mul-tilinguismo ao nível da cognição. Estudando o desempenho de adultos e crianças bilingues, com uso efetivo das diferentes línguas, e comparando-o com o de correlatos monolingues, Bialystock demonstra a vantagem dos bilingues em tarefas de atenção seletiva na resolução de problemas e em tarefas de controlo executivo. É crucial referir que a vantagem só se verifica quando as línguas são efetivamente usadas.

2.2. Mitos do multilinguismo

Conforme bem sintetizado em Genesee (2015), há ainda receios que se ma-nifestam aquando da tomada de decisão sobre questões que envolvem o bilinguismo, seja a nível familiar, quando pais tomam decisões sobre que línguas falar com os seus filhos, seja a nível político, quando é necessário tomar decisões sobre programas de ensino bilingues ou multilingues. Estes mitos podem agrupar-se nas seguintes categorias:

a) Mito do cérebro monolingue;b) Mito quanto mais novo melhor;c) Mito do tempo;d) Mito das perturbações de desenvolvimento.

Vejamos em que consiste cada um destes mitos e como a investigação cien-tífica não os sustenta.

a) Mito do cérebro monolingue

Este mito assenta no receio de que a criança nasça formatada para desen-volver apenas uma língua e que, por isso, quando exposta a mais do que uma, possa haver confusão, mistura dos dois sistemas e, consequentemente, atrasos no desenvolvimento linguístico. A evidência disponível mostra que estamos perante falsos receios, tendo em conta dados que provêm do pró-prio desenvolvimento linguístico, dos contextos de uso das várias línguas e das restrições sobre interferências.

Vejamos, em primeiro lugar, alguns dados sobre desenvolvimento lin-guístico, provenientes de vários estudos, sistematizados em Genesee (2015).

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Oller et al. (1997) estudam padrões de balbucio, comparando crianças bilingues espanhol-inglês e crianças monolingues expostas apenas a inglês. Concluem que não há qualquer diferença a registar, desmontando a ideia de que poderia haver um atraso.

Petitto et al. (2001) estudam crianças expostas a apenas a uma língua ou a uma língua oral e a língua gestual. Estudando os seus comportamentos linguísticos, concluem que não há evidência que sustente que as crianças expostas a duas línguas têm um desenvolvimento mais tardio.

Paradis, Nicoladis e Genesee (1995) estudam o comportamento sintático de crianças monolingues falantes de inglês e de crianças bilingues falantes de francês e inglês e não encontram, também, qualquer evidência robusta que sustente a ideia de que as crianças têm padrões de desenvolvimento diferente em função do monolinguismo ou do multilinguismo.

Assim, podemos concluir que não há evidência para sustentar a ideia de que há uma pré-formatação para uma aquisição monolingue e um qualquer tipo de atraso no desenvolvimento linguístico em contextos multilingues.

Não só não há atraso, como também não há confusão entre sistemas lin-guísticos. Meisel (1989), De Houwer (1990, 1995), entre muitos outros auto-res, mostram, de forma muito clara, que há argumentos para defender que as crianças bilingues adquirem as duas línguas a que são expostas como siste-mas separados. Refira-se, a título de exemplo, o comportamento de crianças a adquirir alemão – uma língua OV – e francês – uma língua VO. Conforme demonstrado pelos autores referidos, as crianças não se confundem e usam VO ou OV de forma alvo quando falam cada uma das línguas, não eviden-ciando, pois, qualquer tipo de confusão.

A ausência de confusão entre sistemas não nega a existência de alguns casos de interferência, que poderiam ser usados como argumento para a ideia de pré-formatação para aquisição de apenas um sistema linguístico. Contudo, conforme demonstrado no estudo quantitativo de Myers Scotton (1997), entre outros, os casos de interferência têm muito pouca significância estatística. Mais interessante é verificar que os casos de interferência são, na verdade, muito semelhantes aos descritos por Muysken (1997), em contextos de codeswitching, sendo que a mudança de uma língua para a outra está, ge-ralmente, ancorada em posições sintáticas específicas. A ser assim, estamos

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perante casos de mudança de língua e não de interferência de restrições da gramática de uma língua sobre a outra gramática. Concretizando a ideia de que os contextos especiais de aquisição são uma janela sobre a Faculdade da Linguagem, importa também referir a ideia de Antonella Sorace e co-laboradores, que argumentam que, em casos de multilinguismo, as zonas de interferência não são as propriedades nucleares da gramática de cada língua, mas sim a interface entre as componentes estritamente linguísticas e as áreas extragramaticais.

Os contextos de uso das línguas atestam também que as crianças não são monolingues inatos. Há muita investigação que demonstra a capacida-de que as crianças têm de adequar a língua que escolhem ao interlocutor específico. Se estivéssemos perante casos de monolinguismo e confusão, as crianças não teriam esta capacidade de seleção e adequação.

b) Mito quanto mais novo melhor

Este segundo mito sustenta-se na ideia de que, como há um período crítico para a aquisição da linguagem, não vale a pena investir em ensino bilingue mais tarde. Por outras palavras, passada a janela temporal para a aquisição espontânea de línguas, é inútil a educação bilingue. Este mito é particular-mente relevante no desenho de políticas educativas, já que pode sustentar a decisão de investir apenas em educação monolingue.

Importa referir dois aspetos essenciais. Por um lado, é-nos hoje possí-vel levantar a hipótese de que o período crítico seja muito mais precoce do que se imagina. Friedmann e Sztermann (2009), a partir do estudo de desempenhos de crianças surdas em tarefas de compreensão, mostram que alguns aspetos do desenvolvimento linguístico requerem a presença de input durante o primeiro ano de vida sob pena de ficarem definitivamente comprometidos. Por outro lado, conforme defendido em Muñoz (2014), há adultos que, em contexto de aprendizagem de língua estrangeira por imer-são, conseguem atingir níveis de proficiência linguística semelhantes aos de falantes nativos. Este dado contradiz a ideia de que, a partir de uma certa idade, a educação bilingue não seja eficaz.

A partir de Muñoz (2014), podemos especular que, mais do que a idade, a metodologia de ensino tem um peso muito maior. Sendo assim, importa

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investir em investigação que compare métodos de ensino, programas de educação bilingue e contraste de forma sistemática o efeito do método, do contexto e da idade dos aprendentes.

De qualquer forma, é importante notar que não há grande base de sus-tentação para o mito da idade.

c) Mito do tempo

A crença que sustenta este mito é a de que o facto de a criança ter uma exposição partilhada entre duas línguas pode comprometer o seu desen-volvimento, dado que terá de “dividir” a sua atenção por dois inputs, o que resultará em piores performances em cada uma das línguas.

Em primeiro lugar, importa clarificar que não há evidência que relacione a quantidade de input com desempenhos, mesmo em contextos monolingues. Claro que a ausência de input é comprometedora, mas não sabemos de evi-dência que mostre que uma criança que ouça falar significativamente mais do que a exposição normal (seja ela qual for) atinja desempenhos superiores. Pelo contrário, já referimos toda a evidência que atesta que as crianças bilin-gues têm desempenhos semelhantes aos das crianças monolingues.

De novo, torna-se aqui relevante salientar que, de acordo com Lindholm-Leary e Borsato (2006), entre outros, quando se estuda o desenvolvimento de línguas segundas e estrangeiras, o tempo de instrução é menos relevante do que o método e o papel desempenhado pela imersão. Estes resultados mostram que o tempo de exposição é, muito provavelmente, uma variável menos importante e, por conseguinte, a divisão do tempo por mais do que uma língua não é um fator impeditivo de um desenvolvimento bem sucedido.

d) Mito das perturbações de desenvolvimento

Sabemos que uma percentagem significativas das crianças apresenta per-turbações de desenvolvimento linguístico. Há, em alguns contextos, a ideia de que a educação bilingue vai agravar as dificuldades destas crianças. Consequentemente, assistimos a práticas, em alguns contextos, em que pais de crianças com autismo, síndrome de Down ou Perturbações Específicas da Linguagem são aconselhadas a não investir numa educação bilingue.

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Para além de relembrar os dados das vantagens cognitivas do bilinguis-mo identificados por Bialystock (2001), importa aqui referir que há vários es-tudos que comparam quatro grupos de informantes: crianças monolingues sem perturbações da linguagem, crianças monolingues com perturbações da linguagem, crianças bilingues sem perturbações da linguagem e crian-ças bilingues com perturbações da linguagem. Paradis et al. (2003) mos-tram que não há evidências para desempenhos diferentes entre crianças monolingues e bilingues com perturbações de desenvolvimento linguístico. Assim, não encontramos evidência para sustentar a hipótese de que o bilin-guismo agrava dificuldades.

Pelo contrário, se assumirmos que a educação bilingue é vantajosa, ao negá-la a crianças com problemas de desenvolvimento, corremos o risco de estar a agravar a clivagem e diferença entre as crianças com dificulda-des e as restantes.

3. Conclusões

A evidência apresentada neste artigo, que sistematiza dados da investigação de vários autores, em particular o contributo de Genesee para contrariar algumas “crenças” sobre bilinguismo, permite-nos sustentar as seguintes conclusões:

- O bilinguismo é natural, sendo até a condição mais comum para gran-de parte dos indivíduos e comunidades, ainda que tal não seja, muitas vezes, oficialmente reconhecido.

- O bilinguismo não é prejudicial. Os mitos que sustentam a hipótese de que o bilinguismo induz atraso ou confusão não são suportados por nenhum tipo de evidência. Pelo contrário, encontram-se vanta-gens sociais e cognitivas para os cidadãos bilingues.

- O bilinguismo é teoricamente interessante, já que, a par de outros contextos de desenvolvimento e uso das línguas, nos oferece uma oportunidade interessante de aprofundamento do conhecimento so-bre a faculdade da linguagem.

Estas conclusões permitem-nos afirmar que há fundamentação científica para sustentar e apoiar projetos de educação bilingue. Contudo, estes pro-

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jetos não podem descartar a necessidade de estudar e investir fortemente em investigação sobre os contextos e as metodologias a desenvolver na implementação desses programas de educação bilingue.

Referências

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Sprouse, J & E. Lau (2003). Syntax and the Brain. In M. den Dikken (org.) The Handbook of Generative Syntax. 971-1005. Cambridge University Press

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ESTRATÉGIAS PARA MELHORAR AS COMPETÊNCIAS EM LÍNGUA PORTUGUESA

EM CONTEXTOS BILINGUES - APRENDIZAGEM BASEADA EM CONTEÚDOS

Ana Maria MartinhoCHAM - FCSH/NOVA - UAC

Introdução

Vivemos hoje uma condição pedagógica e estatutária em Didática que mui-tos autores vêm definindo como pós-metodológica. Somos, enquanto profes-sores e também enquanto formadores, chamados a considerar os limites do grande número de abordagens e métodos que se nos oferecem e a validar a sua relevância em contextos específicos. Não sendo unânime, como nunca poderia ser, o enquadramento desta possibilidade, é verdade que a esco-lha de um método único para o ensino da língua portuguesa como Língua Segunda (L2) ou Língua Estrangeira (LE) é indefensável. Contextos bilingues, nas suas particularidades de usos quotidianos e institucionais, apresentam--se como lugares privilegiados de experiência que convocam hipóteses no-vas de interrogação metodológica. Entendemos que a “Aprendizagem por conteúdos” (Content-Based Instrucion) pode oferecer algumas respostas à diversidade aqui pressuposta e ajudar a refletir sobre a oportunidade de diferentes práticas educativas.

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Bilinguismo e Educação Bilingue

A definição de “educação bilingue” é muito distinta da de bilinguismo, já que supõe o enquadramento de uma modalidade de instrução que não depende de situações específicas de fluência nativa ou de graus de proficiência de dois idiomas de referência e em contacto. Usar dois idiomas no ensino não coincide, naturalmente, com as circunstâncias de uso fora da escola e do espaço pedagógico, o que não significa que esta realidade não tenha que ser considerada para a seleção e adequação das práticas em aula.

Se partirmos da noção de “educação bilingue”, que pressupõe o uso de duas línguas como meio de instrução em parte ou na totalidade do currículo escolar (Cohen, 1975), teremos que olhar para as possibilidades variáveis das práticas daí decorrentes e para o seu ajustamento a circunstâncias específicas, como ocorre nomeadamente em Cabo Verde. Não sendo neste caso uma rea-lidade generalizada a existência de um currículo bilingue há, no entanto, que lembrar que estamos perante uma situação escolar de exposição a (e de uso de) duas línguas e que essa exposição e uso mudam de forma significativa em conformidade com variações regionais de matriz sociocultural.

Por outro lado, o facto de a instrução se fazer predominantemente em língua portuguesa não inibe a circunstância de a utilização da língua cabo--verdiana ocorrer no espaço da aula, fora dela, e em quase todos os contex-tos quotidianos. Esse dado autoriza a necessidade de reflexão sobre práticas educativas que atendam de forma clara a tal coexistência e que tenham em atenção também a dimensão bicultural desta realidade. Pode, neste caso, não ser validável um quadro de instrução bilingue em sentido estrito, mas temos que equacionar práticas que assegurem resposta às diferentes reali-dades linguísticas em contexto escolar.

Este texto procura convocar algumas reflexões e hipóteses sobre ques-tões didáticas e de implementação técnica neste âmbito, e não discutir o que deve ou pode ser feito na gestão de realidades nacionais bilingues. Essa matéria pertence ao trabalho de investigadores e políticos que se dedicam a esse campo e que nele se especializam.

Algumas experiências de educação bilingue, nomeadamente nos Estados Unidos (Moran, 2011), destacam como objetivo central o conseguir-se uma progressiva proficiência em L2, reservando à língua materna (L1) um lugar

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de dimensão cultural e, portanto, assim valorizando a natureza simbólica das heranças familiar e identitária de partida. O estatuto de L2 é, na maioria dos casos que temos visto descritos, de valorização política e de consoli-dação de acesso a uma sociedade de acolhimento. As grandes questões e dúvidas ocorrem, naturalmente, na definição de objetivos específicos e de políticas gerais de consenso.

Para Harmers e Blanc (2000:183ss) a educação bilingue deve ser consi-derada como qualquer outro sistema em que a instrução se faz a partir de e em função de duas línguas. Distinguem, e neste ponto aproximo-me da sua perspetiva, o uso de L2 como veículo de ensino e como matéria em si mesma. Propõem um modelo de organização de acordo com diferentes ca-tegorias: a instrução ocorre em ambas as línguas em simultâneo; a instrução começa por L1 até os alunos conseguirem usar L2 para fins académicos; a instrução é em parte conduzida em L2 e a L1 é introduzida posteriormente, como matéria específica e como meio de aprendizagem.

A educação bilingue não é substantivamente diferente de outras. Vivian Cook (2008; 2016) refere uma evidência: é atualmente praticamente impos-sível encontrar situações pedagógicas ou estudantes monolingues, já que a exposição a uma única língua, em contextos de incidência variável, não existe. Se é verdade que este facto não está diretamente relacionado com a especificidade de programas de educação bilingue, permite, no entanto, recordar que o ensino de uma L2, qualquer que ela seja, não pode ser alheio ao conhecimento linguístico prévio dos alunos. A aprendizagem de línguas faz-se, ou deve fazer-se, com um foco na valorização das experiências dos estudantes e na planificação baseada nas estratégias cognitivas, metacog-nitivas e socio-afetivas que eles seguem para adquirir e aprender um novo idioma. O conhecimento linguístico será sempre a consequência natural de processos cognitivos devidamente identificados e valorizados.

Não concordo com a perspetiva de alguns que veem nos usos de L1 em sala de aula apenas uma solução transitória para assegurar a rápida pas-sagem para a L2 e que pode assim ser descartada rapidamente. Tão pouco concordo com os que entendem que o que deve ser mantido como prio-ridade absoluta é usar a L2 para sustentar o conhecimento em L1. Sendo sistemas linguísticos diferentes não há como considerar que sejam comu-táveis ou substituíveis entre si. Têm funções diferentes, exigem respostas diferentes, sob métodos e abordagens que atendam às necessidades, essas sim transitórias e em constante mudança, dos alunos e do currículo.

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A utilização de duas línguas na escola, independentemente de se fazer de acordo com modalidades distintas, na oralidade e na escrita, é necessa-riamente um desafio positivo para o trabalho do professor e uma oportu-nidade para valorizar em simultâneo a importância socioafetiva, cultural e conceptual da L1 e a dimensão prática dos modos de aquisição de L2. Quando esta tem carácter transdisciplinar emerge um outro facto: todas as aulas, de todas as disciplinas, são aulas de L2. A esta circunstância só uma aprendizagem baseada em estratégias de aprendizagem e em conteúdos pode ser a resposta didática apropriada.

Uma era pós-metodológica?

Kumaravadivelu (2001; 2006) tem inspirado a discussão do significado de vivermos numa era pós-metodológica, nomeadamente a partir da premissa de que apenas podemos trabalhar com dimensões parciais da compreensão do aluno e das suas experiências e desde logo só partes das relações entre teoria e práticas possíveis estão disponíveis para os professores. Os métodos pré- es-truturados que tudo resolvem não têm relevância pedagógica significativa em ASL (Aquisição de Língua Segunda) ou ALE (Aquisição de Língua Estrangeira).

Uma outra perspetiva é a de que não devemos aceitar ser professores que colonizam conteúdos através da imposição de uma língua, que é veículo específico de experiências, à dos alunos. Uma L2 pode e deve ser utilizada para exprimir e veicular quaisquer conteúdos, preferencialmente os que se reportem a L1 ou a outros contextos linguísticos e culturais de proximidade. A L2 serve como meio de desenvolvimento de conhecimento e como língua global e isso só se alcança quando os professores a usarem para falar de ex-periências sem relação absoluta com uma perspetiva ideológica conforme ao conhecimento e cultura(s)-alvo.

Uma pedagogia pós-metodológica pressupõe assim saberes linguístico, sociocultural e político localizados, a competência e vontade por parte do professor para problematizar práticas e princípios teóricos e a valorização das identidades múltiplas do aluno.

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A identidade dos alunos tem sido pouco considerada como argumento explícito de aprendizagem, num quadro convencionado de prevalência do método em detrimento do próprio estudante.

Para fugirmos a esta realidade, que tem tido custos muito elevados, é imperativo que se desloque o foco para o aluno de acordo com o estilo do professor e no quadro de escolhas criteriosas a partir de metodologias di-versificadas de ensino de línguas (Richards & Rodgers: 2001, 3-17).

A multidimensionalidade que Kumaravadivelu tem a propor aos profes-sores de línguas baseia-se na preferência por atividades orientadas para o trabalho direto em classe e de valorização da ação dos professores como decisores em todo o processo. Acentua-se deste modo o papel do professor como teorizador e docente, não apenas como instrutor, transmissor de con-teúdos e de modelos de avaliação.

Partindo da experiência direta e observável dos professores, (Kumaravadivelu, 2003) constatou que quase todos os que dizem seguir de-terminado método na verdade não o fazem e que a esmagadora maioria segue práticas sem relação direta com métodos específicos. Este trabalho partiu da observação de práticas, e vinha sendo preparado pelo mesmo au-tor desde 1994. Para Kumaravadivelu (2003) as metodologias convencionais podem ser vistas em diversas perspetivas: escolástica, linguística e cultural. Todas elas apontam para uma valorização monocultural e de L2, em detri-mento do valor de L1.

Se os métodos são constructos idealizados de práticas, o pós-método e procedimentos e princípios respetivos deverão ser determinados pelos próprios professores. Em contexto específico de aula, a pensar nos alu-nos. Não se trata de o apresentar como um método em si mesmo, mas de como uma alternativa aos métodos convencionais. Não há dois alunos iguais, não há duas classes iguais. Não pode, portanto, haver duas práticas iguais. Todas as particularidades contextuais e individuais devem ser con-sideradas, o que não significa que haja um princípio de liberdade absoluta. Multidimensionalidade pedagógica e um modelo de intervenção macro-es-tratégico conferem ao professor o enquadramento de que precisa para vali-dar as suas escolhas micro-estratégicas e diferenciar sem ambiguidades os contextos de intervenção.

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Ao contrário de métodos como por exemplo o Comunicativo ou o Direto, esta abordagem não coloca restrições ao uso de L1 e pressupõe que é ne-cessária ou oportuna na aprendizagem de L2, devendo ser usada de acordo com os estádios de aprendizagem em que os alunos se encontram.

Neste sentido, é uma opção que claramente se adequa a contextos bilingues.

Método CALLA (Cognitive Academic Language Learning Approach) e Aprendizagem por Conteúdos (Content-Based Instruction) – Premissas e Exemplos

A língua portuguesa pode ser mais valorizada como idioma veicular de múl-tiplas experiências linguísticas, curriculares e culturais do que se vem ve-rificando em grande número de casos. Para explicitarmos o que queremos dizer, faremos a seguir referência a dois conceitos: multiliteracia e multi-competência (este já enunciado acima) e a um método, inspirado no modelo CALLA (Cognitive Academic Language Learning Approach), que consideramos ter grande potencialidade no ensino-aprendizagem de línguas, incluindo a língua portuguesa, nomeadamente em face das suas possibilidades de usos transdisciplinares. Sendo a língua portuguesa o instrumento central nas nossas escolas e principal veículo de transmissão e partilha de saberes, constitui um desafio para todos nós pensarmos em modalidades cada vez mais inovadoras e eficazes do seu uso em contexto educativo, dando assim resposta às exigências de um mundo em mudança e de comunidades lin-guísticas e educativas complexas em constante transição.

Para tanto, é-nos pedido, enquanto educadores, que sejamos capazes de abandonar de uma vez por todas os velhos métodos e que abracemos sem qualquer hesitação modelos que têm provado em inúmeros contextos um sucesso inquestionável nas aquisições linguísticas.

Comecemos então pelo conceito de multiliteracia. Os investigadores Choi e Ziegler (2015) publicaram recentemente na revista Multilingual Education uma reflexão e análise da problemática que este termo implica. Eles estu-daram diferentes países, com realidades multilingues e multiculturais dis-tintas, nomeadamente o Luxemburgo e o Canadá. Chegaram à conclusão de que em todos os casos é necessário que se desenvolvam mais e melhores

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estratégias conducentes por um lado à verificação dos conhecimentos lin-guísticos e do património cultural dos estudantes quando chegam às nossas aulas, independentemente da sua idade ou nível de conhecimento linguísti-co e, por outro lado, que se produzam instrumentos metodológicos mais efi-cazes. Ora estas premissas parecem de algum modo evidentes. No entanto, raramente são validadas de forma continuada e consequente em contexto escolar específico.

Um dos grandes equívocos das nossas práticas reside precisamente na dificuldade que muitas vezes encontramos em fazer diagnósticos que te-nham impacto relevante no modelo de aprendizagem a seguir. Na verdade, o diagnóstico linguístico segue na maior parte dos casos um padrão repetitivo e que aplicamos aos estudantes em geral, independentemente da diversida-de das suas formações formais ou informais.

Deve também dizer-se que quase sempre os testes de diagnóstico ex-cluem a dimensão cultural e o conhecimento disciplinar específico. Ignoram-se saberes que vão para além das questões estritamente metalinguísticas; o conhecimento histórico ou o antropológico, por exemplo, podem constituir uma mais-valia na sustentação da pesquisa de métodos orientados para a diversidade das formas de aprendizagem e correspondente modalização di-dática. Muitos estudantes usam no seu quotidiano, escolar ou público, léxico, conceitos e expressões que são referentes a áreas de conteúdo que nunca têm expressão direta nos modelos de aprendizagem linguística. Esse fenó-meno não faz, naturalmente, sentido, porque é em tudo alheio às realidades culturais e sociais concretas.

O projeto que os autores mencionados desenvolvem, designado MultiLiteracies, procura discutir como podem ser identificadas as necessi-dades dos diversos grupos de estudantes e promovidas as competências de escrita e leitura, nomeadamente no quadro de comunidades multilingues.

Este termo está relacionado com dois aspetos fundamentais no respei-tante aos usos linguísticos (vejam-se a este propósito por exemplo os do-cumentos inseridos no portal New Learning, da Universidade de Illinois). O primeiro tem que ver com as profundas e crescentes diferenças e variações culturais e sociais até dentro de um mesmo país. Não pode haver Escola sem o reconhecimento desta realidade e o Sistema Educativo de qualquer país tem necessariamente que acompanhar a perceção deste fenómeno sob

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pena de se tornar estranho às realidades nacionais e regionais que o deter-minam e em que se insere.

Ora isto quer ainda dizer que já não é suficiente quando ensinamos a ler, a escrever, a desenvolver estas competências de forma proficiente, que nos fixemos apenas nas regras e normas gramaticais; temos, isso sim, que promover a capacidade de transferência de formas de representação de sig-nificados, linguísticos, pragmáticos, culturais, entre sistemas, e educar para essa validação transversal.

Um outro aspeto tem que ver com as novas modalidades de informação através dos media e da comunicação de massas. Os significados são produ-zidos e disseminados de forma cada vez mais multimodal e distribuem-se por modelos hipertextuais e hipervisuais de toda a ordem.

Naturalmente, uma consequência deste facto é que a pedagogia, suas teorias, métodos e práticas, tem que saber ser sinestética e deixar para trás os modelos da alfabetização e, ou, de aprendizagem de regulação conven-cional. Assim como não podemos hoje legitimar o ensino da leitura através do método silábico, também não podemos desenvolver conhecimentos, seja qual for o nível de estudo, com base em convenções de conteúdo fechadas e determinadas por práticas unimodais.

Nenhuma destas preocupações é estranha à língua portuguesa e sua diversidade contextual. Todos os países em que é ensinada são multilingues ou têm uma realidade de imigração que exige práticas educativas dirigi-das para esse quadro. Portugal, por exemplo, tantas vezes referido como um país de idioma único, vê-se hoje confrontado com o imperativo crescente de dar mais destaque à língua mirandesa e de encontrar novas soluções para o ensino a imigrantes falantes de outras línguas e de muitas origens. Tal desafio, em nosso entender, pode e deve acomodar cada vez mais um ensino fortemente apoiado em conteúdos diversos, sendo que a aquisição dos conteúdos linguísticos tem muito a ganhar com essa possibilidade de abertura metodológica.

Estes pressupostos são validáveis também no quadro das consequências teóricas e práticas de um outro conceito, o de multicompetência. Cunhado pelo académico britânico Vivian Cook, o conceito de multicompetência tem conhecido grande desenvolvimento nos últimos anos e, não sendo consen-

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sual, como nunca são os termos de largo escopo, tem originado algumas das mais produtivas discussões em torno de aprendizagem linguística e de análise das capacidades diferenciadas de cada indivíduo para aprender.

Precisamente uma das realidades que este autor constata, e que tive oportunidade de referir acima, é que a esmagadora maioria dos falantes no mundo conhece e usa mais do que uma língua. Esta afirmação parece uma evidência, mas tem sérias e importantes consequências no modo como po-demos considerar a variação de usos linguísticos e a sua operacionalização educativa. Neste sentido, a multicompetência significa que todos nós vive-mos entre duas ou mais gramáticas (Cook tem o cuidado de referir que gra-mática neste caso inclui todo o tipo de conhecimento linguístico, em sentido chomskiano), e que fazemos uso e recorremos, mesmo sem o admitirmos necessariamente, a uma diversidade de recursos linguísticos que não se es-gota num único idioma. Isto quer dizer então que há consequências desta realidade nas aprendizagens: aprendemos sempre por confronto e compara-ção. Cook cita nomeadamente Canagarajah, que em 2007 referia que há uma interação constante entre grupos linguísticos, que se sobrepõem, interpe-netram e misturam de forma complexa. Como organismos vivos, as línguas respondem a essa porosidade que é social e histórica também.

Assim, para Cook a definição de multicompetência é resultado do conhe-cimento de mais de uma língua por parte de indivíduos ou na mesma co-munidade. Esta hipótese aplica-se perfeitamente à língua portuguesa, dado tratar-se de um idioma que tem uma grande diversidade de estatutos nos países de língua portuguesa e que se relaciona com outras línguas nesses mesmos contextos. Os falantes são chamados a desenvolver relações lin-guísticas dinâmicas e o sistema educativo tem necessariamente que dar resposta a tal realidade.

Investigação neste domínio de diversidade, conduzida nomeadamente por Lucy (1992), Levinson (1996), e Roberson (1999) permitiu chegar à con-clusão de que as pessoas que falam várias línguas pensam de forma diversa. E se virmos por exemplo o modo como usam vocabulário e fazem asso-ciações de palavras, um dos domínios reconhecidamente mais importantes no quadro destas aprendizagens hoje, têm resultados mais produtivos. Isto ficou provado em estudos de Kecskes & Papp, de 2000.

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Muitos teóricos (de que são exemplo Caramazza & Brones, 1980) acredi-tam aliás que detemos uma forma de super-léxico que guarda todo o nosso conhecimento combinado entre sistemas, sendo que palavras que são dis-tintas podem ainda assim ser guardadas em conjunto.

Por outro lado, se uma criança aprende uma ou várias línguas, indepen-dentemente do ambiente em que cresce, isso significa que há um modelo de aquisição suficientemente forte e as aprendizagens têm que ter isso em consideração. Assim, a multicompetência é potencialmente a norma para todos os seres humanos e oferece uma hipótese de revisão de paradigma no quadro das ideias sobre aquisição linguística e sobre métodos para desen-volver distintas competências.

Como podemos proceder então se quisermos fazer transitar estas hipó-teses para a sala de aula? Há alguns métodos que têm mostrado ser espe-cialmente produtivos e suscetíveis de adaptação fácil a contextos variados, com resultados positivos já amplamente testados. Alguns desses métodos são inspirados no modelo CALLA acima referido, sigla que pode ser traduzi-da como Abordagem Cognitiva Académica para Aprendizagem de Línguas. Este método foi desenvolvido por Anna Chamot e J. Michael O’Malley e tem sido amplamente divulgado por Jill Robbins. Da nossa parte, usamo-lo muito amiúde tanto em sessões de formação como em planos de aulas ou unida-des de aprendizagem.

Trata-se de um modelo instrucional que procura basear-se nos estudos de cognição e que integra linguagem académica de diversos níveis (com isto não queremos dizer académica de ensino superior), baseada em con-teúdos por áreas curriculares, e pressupondo estratégias de aprendizagem explícitas, isto tanto para a aquisição de conteúdos disciplinares específicos, como para os de língua ou metalinguísticos. Enunciamos alguns dos seus princípios e pressupostos metodológicos a seguir.

A aprendizagem orienta-se por finalidades. Na aprendizagem a informa-ção nova está ligada a informação anterior. A aprendizagem exige organiza-ção da aprendizagem. A aprendizagem é estratégica. A aprendizagem ocorre em fases recursivas. A aprendizagem é influenciada pelo desenvolvimento.

Todas as unidades de aprendizagem são iniciadas por uma fase de pla-nificação, seguida de processamento (integração, assimilação, modificação)

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e terminando em consolidação e extensão da nova informação. Em todas as fases o aluno pode voltar atrás e trabalhar de novo uma ou várias.

As diferenças entre alunos de diferentes idades e com diferentes com-petências devem-se em parte a diferenças no conhecimento adquirido anteriormente e no uso passado de estratégias de aprendizagem. Esses traços persistirão, a não ser que sejam tomadas medidas de retificação. Estes pressupostos podem e devem guiar a nossa planificação da instru-ção. Deste modo, o professor está assim permanentemente a verificar o que os alunos já sabem, o que precisam de saber e como lhes garantir uma aprendizagem de sucesso.

O docente, segundo este quadro de referência, é modelo de aprendiza-gem (demonstra processos e estratégias de aprendizagem ao pensar em voz alta sobre o trabalho com os alunos, por exemplo) e mediador (ajuda o aluno a usar estratégias para compreender e organizar a informação ao mostrar como se estrutura a autonomia).

Este método destina-se a quaisquer alunos, mas pode ser especialmente eficaz para aqueles que têm conhecimentos limitados em determinada lín-gua e que necessitam um rápido desenvolvimento linguístico para efeitos profissionais ou académicos.

Relaciona-se por outro lado com a evidência de que só um input com-preensível assegura uma aprendizagem eficaz. O que mais facilmente se consegue se a L2 se basear em conteúdos com sentido no conjunto global das aprendizagens e experiências.

A aprendizagem por conteúdos (CBI – Content-Based Instruction/ CLIL - Content and Language Integrated Learning) implica explicitação contextual, de regras de trabalho, de aprendizagem, e o recurso constante a modelos de elucidação variáveis, para o que se recomendam recursos com impacto visual apropriado. Permite ligações fáceis a métodos como a aprendizagem baseada em tarefas e exige o recurso a práticas derivadas da abordagem lexical também.

Em que consiste exatamente a CBI? O seu foco é sempre um conteúdo específico, concretizado em tarefas claras. Pode-se partir por exemplo de um texto ou tema de Ciências Sociais, História, Música, Cinema, recorrendo a diversas fontes e partindo fundamentalmente de materiais não adaptados.

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Os alunos usam a L2 para esse estudo e recorre-se à L1 sempre que neces-sário sobretudo na fase em que é preciso explicitar regras de trabalho ou de compreensão de premissas. O input compreensível só o é se efetivamente os alunos souberem sem margem para dúvidas o que deles se espera e o que podem por seu turno esperar da parte do professor e das atividades que ele lhes propõe. As competências linguísticas são desenvolvidas na língua-alvo e as metadiscursivas e metalinguísticas na L1.

Neste quadro, o trabalho colaborativo tem muita importância e é deter-minante para as concretizações individuais, sendo dada preferência a tare-fas bem determinadas.

Há algumas questões a acautelar, nomeadamente a regulação das si-tuações de uso de L1 e o modo de sistematizar as aquisições linguísticas, já que na aparência estas não são aulas de língua, mas de conteúdos es-pecíficos ou disciplinares.

O sucesso deste método está dependente de um conjunto diversificado de fatores, naturalmente. O contexto escolar, a motivação, pesam de forma determinante, bem como a vontade do professor de se envolver em tarefas de preparação que podem ser morosas. O seu sucesso é no entanto reconhecido.

Este método pode ver-se como especialmente apropriado para a educa-ção bilingue e tem tido bastante popularidade na Europa em contextos de imigração e trabalho junto de grupos minoritários (Dalton-Puffer, 2007). Os alunos aprendem uma L2/LE por meio de conteúdos pertinentes no quadro das suas necessidades e interesses académicos e pessoais, e o professor contribui para uma planificação com sentido e valor sociocultural. A rapidez das aquisições é também um fator apontado como decisivo.

Conclusões

Procurei neste texto avançar com um quadro de propostas que tem revelado grande eficácia em diferentes contextos em que situações de bilinguismo ou de multilinguismo obrigam a pensar em modalidades novas de resposta ao que os alunos sabem, ao património linguístico e cultural que trazem, com base num quadro de acolhimento de diversidade de estilos de aprendi-zagem e de competências sociais e culturais.

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CONSCIÊNCIA METALINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO EM PORTUGUÊS

Maria Helena AnçãCentro de Investigação Didática e Tecnologia na Formação de Formadores/

Universidade de Aveiro - Portugal [email protected]

Resumo

Neste texto pretendemos demonstrar a pertinência e produtividade do con-ceito de consciência metalinguística na educação em línguas, em particular na Educação em Português. Para o efeito, são convocados outros conceitos próximos, como os de competência metalinguística e consciência linguís-tica. Para contextualizar esta abordagem são apresentados quatro estudos académicos que analisaram em contexto escolar português e/ou cabo-ver-diano, produções escritas de crianças cabo-verdianas, assim como os seus comentários metalinguísticos às produções. Todos estes estudos acentuam a dificuldade de verbalização, sobretudo nos alunos em Cabo Verde.

Palavras-chave: Consciência Metalinguística, Educação em Português, Aprendentes Cabo-verdianos.

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Resumé

Ce texte veut démontrer la pertinence et la produtivité du concept cons-cience métalinguistique appliquée à l’éducation en langues, en particulier, à l’Éducation en Portugais. Ainsi, nous appelons d’autres concepts proches, comme la compétence métalinguistique et la conscience linguistique. À fin de contextualiser cette aproche, nous présentons quatre études universitai-res qui ont analysé, en contexte scolaire portugais et/ou cap-verdien, des productions écrites d’enfants cap-verdiens et leurs commentaires métalin-guistiques à propos de ces productions. Toutes ces études signalent la diffi-culté de verbalisation, surtout chez les apprenants au Cap-Vert.

Mots-clé: Conscience Métalinguistique, Education en Portugais, Apprenants Cap-verdiens.

Introdução

A literatura da especialidade tem comprovado, particularmente nestes últi-mos anos, a produtividade da abordagem pela consciência metalinguística (CM). Esta permite ao professor perspetivar o ensino de línguas de uma for-ma mais abrangente, com recurso a diferentes parâmetros e em contextos mais amplos, como os sociolinguísticos, culturais e políticos. Do ponto de vista do aluno, implica-o no processo de aprendizagem, promovendo a sua autonomia e a tomada de consciência sobre o funcionamento da(s) língua(s). Para além disso, o desenvolvimento da consciência sobre a língua conduz os falantes a se aperceberem da sua identidade linguística e social, tornan-do-os cidadãos mais atuantes em sociedade e transformando-os em utiliza-dores da língua confiantes e socialmente responsáveis (Clark e Ivani, 1991).

1. Consciência metalinguística e outros conceitos próximos

Os conceitos de competência metalinguística e consciência linguística (CL) po-dem aproximar-se do de CM, pelo que convém distingui-los.

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1.1. Competência metalinguística

Jakobson (1963), referindo a lógica moderna, afirma que esta distingue dois níveis de linguagem: a ‘linguagem-objeto’ falando dos objetos, e a ‘metalin-guagem’ falando da própria linguagem. De notar que esta última ocupa um papel fulcral, não só para os teóricos, mas no quotidiano de qualquer falante e ainda na aquisição da língua materna (LM) e na aprendizagem de línguas estrangeiras (LEs). Deve-se também a Jakobson o alargamento do modelo de Bühler, de 1934, com a inclusão da função metalinguística (utilização da linguagem para descrever, explicar ou analisar a própria linguagem).

A linguística francófona (Benveniste, 1974; Culioli, 1968) utilizou o termo para se referirem à língua ou à sua utilização. No entanto, é no âmbito e da psicolinguística e da psicologia cognitiva que este conceito é ampliado, in-tegrando para além de uma dimensão linguística, uma dimensão cognitiva. Nesta linha, encontramos Gombert (1990), para quem o termo competência metalinguística engloba os processos cognitivos de gestão consciente (de reflexão e de controlo deliberado) de objetos linguísticos (langagiers), bem como da sua utilização, sendo as atividades metalinguísticas subdomínios da metacognição (na senda de Flavell). Esta competência metalinguística pressupõe, por conseguinte, que o sujeito seja capaz de explicitar as regras do funcionamento da língua e, ainda, de refletir sobre elas. De tal forma esta capacidade de reflexão sobre o funcionamento de uma língua desempenha um papel relevante que Gombert e Colé (2000) consideram ‘iletrados’ quem não possui capacidades a este nível.

Gombert (1990, 1996) tomando a língua como objeto, analisou o desen-volvimento da competência metalinguística na criança, nas diversas compo-nentes: metafonológica (possibilidade de identificar as componentes fonoló-gicas das unidades linguísticas e de as manipular de maneira deliberada); metassintática (possibilidade de gerir mentalmente e de forma consciente os aspetos sintáticos e de controlar deliberadamente o uso das regras da gramática, discursos metalinguísticos sobre a gramaticalidade e a agrama-ticalidade das frases); metalexical (possibilidade de isolar a palavra e de a identificar como sendo um elemento do léxico e, ainda, a tentativa de aceder intencionalmente ao léxico interno); metassemântica (capacidade de reen-viar ao mesmo tempo para a capacidade de reconhecer o sistema da língua

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como um código convencional e arbitrário e para os elementos significantes de tamanho superior à palavra, sem que os significados sejam afetados, – tratamento da linguagem figurada, metáfora/sentido literal), metapragmáti-ca (capacidade de representar, organizar e regular os empregos no próprio discurso: ambiguidades referenciais, adaptação do discurso ao destinatário, domínio das regras sociais da língua, humor linguístico…); metatextual (ges-tão dos diferentes tipos de texto, conceito de texto/não texto).

Paralelamente a estas atividades metalinguísticas existem outras não conscientes e não controladas, epilinguísticas (termo emprestado a Culioli e por ele introduzido em 1968). Os dois conceitos sendo da mesma natureza, afastam-se pelo grau de consciência sobre a língua (explicitado, controlado, verbalizado). No entanto, esta distinção é algo flutuante e pouco consensual no seio da comunidade científica (Ançã, 2008).

1.2.Consciência linguística e consciência metalinguística

Antes de tentarmos definir consciência linguística (CL) e consciência me-talinguística, entrando mais diretamente na escola anglo-saxónica, é con-veniente referir que a preocupação com a consciência na aprendizagem de línguas já se colocava na primeira metade do século XX.

Vygostky (2007/1934) e os psicólogos soviéticos, para explicar em que consistia a consciência sobre a língua, utilizaram a metáfora da janela: a língua vista como uma janela, através da qual se vê o mundo. A consciência seria a capacidade de fazer com que a janela (ou a língua) se tornasse opaca para que se pudesse ver a língua e analisar os seus elementos (a imagem da transparência/opacidade é retomada por Cazden, 1974).

1.2.2. Language Awareness: British Language Awareness Movement e conceito(s)

O conceito de Language Awareness (LA) vincula-se ao movimento britânico com o mesmo nome (British Language Awareness Movement), no qual se des-tacam Hawkins (1992, 1996) e James e Garrett (1991). Surge estreitamen-te relacionado com questões de educação linguística, em particular com o desenvolvimento da consciência sobre as línguas em contexto escolar britânico. Como evidencia Hawkins (1992), o ponto de partida desta abor-

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dagem consistiu no reconhecimento da importância central da linguagem e na insuficiência da aprendizagem linguística oferecida na escola. Este autor constata que existe uma relação estreita entre a ausência desta consciência e a dificuldade de muitos alunos em ler e escrever na sua LM; por outro lado, o desenvolvimento de competências em LE é condicionado pelo desenvolvi-mento atingido em LM e vice-versa.

O grupo que se ocupou da difusão do conceito, National Council for Language in Education, define a LA duma forma bastante lata: Language Awareness is a person’s sensitivity to and conscious perception of the natu-re of language and its role in human life (Donmall, 1991, p. 108). Partindo dos trabalhos neste âmbito, – e porque o termo LA rapidamente se expan-diu, crescendo a sua utilização e também os seus sentidos, James e Garrett (1991) especificam os vários domínios constitutivos desta consciência: i) domínio afetivo – prende-se com o desenvolvimento de atitudes, de curio-sidade, interesse, sensibilidade pelas línguas; domínio social – tem em conta a presença das minorias étnicas e das suas línguas, assim como as variedades linguísticas, e recorre à LA como instrumento de harmonização social; domínio ‘de poder’ – abarca dois aspetos complementares: a lin-guagem como instrumento de manipulação política ou outra (referência a Paulo Freire e ao conceito de conscientização, e a Norman Fairclough1

e à Consciência Linguística Crítica); o controlo que o sujeito pode exercer sobre a língua e sobre a sua aprendizagem; domínio de realização – rela-ciona a tomada de consciência com a melhoria do desempenho linguístico; domínio cognitivo – relaciona a linguagem e o pensamento; assume o papel de transformação do conhecimento implícito em conhecimento explícito, ou no caso específico da LE, pode aproximar-se de um novo tipo de análise contrastiva, feita para os alunos e pelos alunos.

Em 2007, Svalberg, num artigo de revisão de literatura, destaca a impor-tância dos anos noventa no arranque e na difusão da LA. Para isso contribuí-ram vários fatores: a publicação de James e Garrett (1991), a fundação da ALA/Association for Language Awareness no Reino Unido e a primeira edição da re-vista Language Awareness, em 1994, o artigo de Schmidt (1990) sobre o papel da consciência na aprendizagem de línguas e a edição de Fairclough (1992).

1 Fairclough (1992) destaca a importância dos aspetos sociais da língua, no âmbito de uma consciência crítica do mundo.

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Schmidt (1990), num modelo retomado posteriormente (Huot & Schmidt, 1996), distingue vários tipos de consciência: a consciência como conheci-mento (conhecimento implícito/explícito que deve visto como um continuum e não como uma oposição); a consciência como intenção (não é imprescindí-vel na aprendizagem, mas desempenha um papel facilitador); a consciência como controlo (aspeto não central para o autor); a consciência como atenção (com um papel fulcral na aprendizagem, sendo o grau de atenção variável consoante os domínios sobre os quais recai a atenção: atenção lexical, mor-fossintáctica, fonológica, pragmática ou cultural); a consciência como toma-da de consciência que envolve três níveis ‘hierárquicos’: perceção, ‘tomada em conta’/noticing com verbalização e a compreensão (Ançã, 2008, 2015).

Nos desenvolvimentos da LA, destacamos o ano 2008, ano da 9ª Conferência da ALA2, realizada em Hong Kong, com o tema central: enga-gement with language. É este constructo que Svalberg (2009) interroga e testa, discutindo o que pode ser o compromisso com a língua/linguagem e como pode ser identificado. Destaca ainda os aspetos cognitivo, social, afetivo desse compromisso, assim com as noções (attention, authonomy, agency) que o vêm precisar.

Esta focalização da LA é testemunhada na antologia editada por Breidbach, Elsner e Young (2011) que redefine LA, situando-a na tradição de Hawkins (1996/1984), como uma ponte entre o curriculum e as línguas de casa e da escola, em diferentes contextos educativos, pessoais ou sociais. A definição de LA apresentada é a que se encontra no site da ALA (http://www.languageawareness.org/): the explicit knowledge about language, and conscious perception and sensitivity in language learning, language teaching and language use. 3

Com efeito, quaisquer que sejam as vias ou os caminhos que a LA possa trilhar (LA em sociedades multiculturais e multilingues, …), será inegável que o domínio cognitivo e o conhecimento explícito e refletido desempe-nharão papéis fulcrais no ensino e na aprendizagem de qualquer língua.

2 A última Conferência da ALA realizou-se em julho de 2016, em Viena (Áustria), e teve como tema central: Languages for Life: Educational, Professional and Social Contexts

3 É com base nesta definição que Svalberg constrói o seu texto de 2012.

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2. Consciência metalinguística e educação em português

2.1. A verbalização como marca de atividade reflexiva

O interesse pela verbalização como marca observável da atividade meta-linguística surge por diversas vias. Uma primeira localiza-se perto de uma abordagem cognitiva, ligada à compreensão da leitura e à produção escrita, com resolução de tarefas observadas (através de protocolos verbais), nas quais o sujeito pensa em voz alta ou especifica os vários passos seguidos para a execução da tarefa (Gombert, 1990). A segunda, mais no âmbito da linguística, ligada à análise do erro e a Corder (1980/1973), com as propos-tas metodológicas de solicitação de dados ‘intuitivos’ do aprendente. Estas põem em relevo certas atividades metalinguísticas, como julgamentos de gramaticalidade, explicações metalinguísticas…

Os julgamentos de gramaticalidade e de aceitabilidade assumem dife-rentes formas, nas quais a verbalização pode significar diferentes modos de atividade reflexiva. No entanto, de acordo com alguns autores (Gombert, 1990; Piaget, 1974), a verbalização não pode ser um critério absoluto para estabelecer a fronteira entre a consciência e a não-consciência. Se a cons-ciência implica processos cognitivos explicitáveis, a não explicitação não significa não-consciência.

2.2. Alguns estudos com aprendentes cabo-verdianos

Nesta secção, referimos quatro estudos académicos Pré-Bolonha, por nós orientados, no âmbito da CM, com um público cabo-verdiano dos primeiros anos de escolaridade. Analisam-se as dificuldades linguísticas em produ-ções escritas e as verbalizações/comentários orais a essas dificuldades, em contexto escolar, em Portugal (Perdigão, 2006, Rassul, 2006), em Portugal e Cabo Verde (Pereira, 2004), em Cabo Verde (Soares, 2008).

Pereira (2004) analisa textos de duas turmas de alunos cabo-verdianos, em Lisboa (Lx) e na Cidade da Praia (CP). Os desvios mais frequentes são os ortográficos, seguidos dos morfológicos (singularização por generalização), dos sintáticos (preposição, omissão ou seleção inapropriada) e, por fim, dos

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morfossintáticos (flexão verbal), sendo a maior incidência nos alunos de CP. A nível do reconhecimento do erro e da sua correção imediata, os alunos de Lx tiverem 40% de êxito, enquanto os de CP ficaram pelos 15%. Quanto aos co-mentários metalinguísticos, de destacar o desconhecimento das regras (mais frequentes em CP), seguido da grafia reproduzindo a oralidade (25% CP/5% Lx) e, por fim, “distração” e “confusão”, com uma expressão ligeiramente superior em Lx. Nestes dados, encontramos uma relação direta entre o domínio da língua e a verbalização: os alunos da CP com um desempenho menos conseguido do que os de Lx, e com uma menor capacidade de explicitação. Tendo em con-ta o contexto linguístico, é evidente que, no caso dos segundos, residindo em Portugal, tenham um maior grau de contacto com a LP e estejam expostos a situações mais diversificadas, para além da escolar do que os primeiros.

O estudo de Rassul (2006) incide sobre textos produzidos a pares com crianças de origem cabo-verdiana, em Setúbal. As dificuldades linguísticas apresentadas vão ao encontro dos resultados de Pereira (2004): predomi-nância de desvios ortográficos, desvios morfossintáticos (flexão nominal) e sintáticos (preposição). Sendo o enfoque desta dissertação, a interpretação do erro, a autora aponta várias fontes para o erro, entre elas, mas não exclu-sivamente, a influência da LCV. Os alunos identificaram e corrigiram os erros, contudo, não conseguiram verbalizar as causas, nem verbalizar as regras. Como conclui Rassul, estes aprendentes encontram-se numa fase epilin-guística do seu desenvolvimento metalinguístico.

Perdigão (2006) reflete sobre o papel da CM na relação sujeito-línguas (cabo-verdiana e portuguesa) em crianças cabo-verdianas da escola da Cova da Moura, onde é professora. Para tal realiza diversas atividades de cariz contrastivo (entrevistas /conversas, cadernos de línguas, biografias linguísticas, textos escritos), registando os comentários das crianças pe-rante as línguas e perante a aprendizagem da LP, em diferentes dimensões da LA (James & Garrett, 1991). No que respeita a alguns aspetos linguísti-cos, verificou interferências da LM a nível das flexões (nominal e verbal), das preposições e dos artigos, aspetos que colmatou auxiliando-se da LCV e de explicações metalinguísticas.

Soares (2008), no âmbito da análise do erro, como forma de desenvolvi-mento da CM, analisou textos escritos de alunos do 6.º ano, tendo concluído que os desvios mais evidentes eram os ortográficos. A nível morfossintático,

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destacou as flexões nominal e verbal, e a nível sintático, a preposição. Pôde ainda observar algumas utilizações problemáticas da deixis espacial em LP, devido à diferença no recorte conceptual entre a a LCV com a sua deixis binária (kel-li/kel-la) e a LP (ternária: este/este/aquele). Aliás, a LCV encon-tra-se espelhada na maioria das produções destes aprendentes. Quanto aos comentários metalinguísticos concluiu que os aprendentes possuíam um conhecimento frágil das regras gramaticais e não se sentiam muito confor-táveis na utilização da LP,

Em suma, a dificuldade em verbalizar pode ser explicada tendo em conta os seguintes fatores: ser sentida como linguagem interior (Vygotsky, 2007/1934), logo reprimida em sociedade; ser entendida como avaliação; o tipo de tarefa utilizada e recolha daí decorrente não terem proporcionado mais verbalização; o tipo de análise, com predominância de dados quantita-tivos, ter limitado a interpretação dos resultados.

Com efeito, em Perdigão (2006), os resultados foram bastante positivos, não só pelo tipo de dados solicitados ser de outra natureza e pela diversi-ficação de estratégias, mas ainda pelo facto de a investigação ter decorrido em ambiente natural (investigação qualitativa), ou seja, sem manipulação de espaços nem introdução de elementos exteriores à aula ou à escola.

No caso de Cabo Verde, uma abordagem reflexiva das línguas seria uma aposta educativa interessante, numa altura em que se aproxima a introdu-ção da LCV no ensino. Várias questões pedagógicas podem ser contornadas e obviadas com uma articulação harmoniosa entre LP e LCV, numa abordagem simultaneamente integrada e recíproca.

Comentário final

Este texto pretendeu demonstrar que a abordagem reflexiva e as práti-cas decorrentes são produtivas na educação em línguas, em particular na Educação em Português. Por um lado, esta abordagem consolida a compe-tência metalinguística e desenvolve a consciência metalinguística contras-tiva, por outro, preocupando-se com questões sociais e de cidadania, investe na formação de sujeitos críticos e solidários. É, pois, uma abordagem promis-sora na educação linguística em Cabo Verde.

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ATAS DAS JORNADAS DE LÍNGUA PORTUGUESA - INVESTIGAÇÃO E ENSINO 81

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CINCO ESTRATÉGIAS EDUCACIONAIS PARA MELHORAR O ENSINO DO PORTUGUÊS

Amália de Melo LopesUniversidade de Cabo Verde, Cátedra Eugénio Tavares de Língua Portuguesa

[email protected]

Do tema proposto para esta mesa-redonda, tomo o termo estratégias no sen-tido político. Por isso, a minha opção por cinco estratégias educacionais que, segundo creio, podem contribuir, crucialmente, para melhorar o ensino do Português em Cabo Verde e, portanto, para o desenvolvimento das compe-tências dos alunos nessa língua.

Esta seleção é, antes de mais, fruto da investigação feita sobre o ensino do português, com foco na prática do professor em sala de aula (Lopes, 2003) e dos resultados de trabalhos de fim de curso orientados nesta perspetiva. Fundamenta-se, também, em investigação sobre a situação sociolinguística de Cabo Verde (Lopes, 2016). Dela resultou um panorama das relações que os falantes estabelecem com cada uma das línguas faladas em Cabo Verde, a cabo-verdiana, um crioulo de base lexical portuguesa, e a portuguesa, em termos de uso concreto e das suas atitudes, entre outros.

Para o efeito, foram inquiridos, por questionário, tratado estatisticamente através do Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), 1.780 jovens, de uma amostra estratificada de 1.819 alunos, representando cerca de 7% do universo dos alunos do Ensino Secundário público, do 9.º ao 12.º anos de escolaridade, distribuídos por 24 escolas, as quais, por sua vez, representam cerca de 78% de todas as escolas com esse perfil. A população inquirida –

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jovens do Ensino Secundário – corresponde, à época do inquérito, a 54,7% da população jovem do país na faixa etária equivalente (15-19 anos), sendo desses 51,8 % do sexo masculino e 57,6 % do feminino. Também foram en-trevistados vinte e nove adultos, sendo catorze deles professores de portu-guês desses jovens e quinze fazedores de opinião.

Resulta também da reflexão sobre a experiência pessoal como profes-sora de português, em Cabo verde, no Ensino Básico Complementar, no Secundário, no antigo Ano Zero e no Ensino Superior e, ainda a este nível, da provinda da lecionação de outras unidades curriculares do plano de estudos do Curso de Licenciatura em Línguas, Literaturas e Culturas – Estudos s e Portugueses a alunos que concluíram, no mínimo, doze anos de aprendiza-gem do português em contexto formal.

Com esse enquadramento, são cinco as estratégias educacionais que su-giro para melhorar as competências de uso da língua portuguesa:

1. Consideração da situação sociolinguística de Cabo Verde

Cabo Verde é um país de duas línguas, a cabo-verdiana e a portuguesa, sen-do a primeira materna (LM) e a portuguesa, a língua segunda (L2), aprendida em contexto formal. Nesse contexto, dois factos não podem ser ignorados: que as crianças que chegam à escola têm uma LM e que, no processo de ensino/aprendizagem de uma L2, se pretende que os aprendentes se apro-priem dela, sendo capazes de a dominar a um nível muito mais elevado de proficiência do que o esperado para uma língua estrangeira.

Assim sendo, a forma mais eficiente de lidar com a situação, no contexto educacional, é instituindo o modelo de educação bilingue, mais recomendá-vel para Cabo Verde. Por mais paradoxal que pareça a muitos, essa é a es-tratégia fundamental. Por modelo, estou a referir-me à forma de integração na totalidade do sistema educativo, acautelando aspetos como: a inserção das duas línguas na estrutura curricular; a fundamentação das escolhas para essa inserção; a opção por metodologias para o seu ensino; a gestão delas com a função de objeto e meio de ensino das outras disciplinas do pla-no de estudos; gestão das atitudes linguísticas para com elas; a formação

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de professores e a produção dos materiais; e questões relacionadas com o cabo-verdiano como, a sua padronização, o seu desenvolvimento quanto à terminologia científica e académica e estilístico (registos formais). A fun-damentação científica e o bom senso devem juntar-se para evitar erros que outros cometeram e diminuir os riscos.

Na sociedade cabo-verdiana, muitos ainda se interrogam sobre as razões para se ensinar o cabo-verdiano na escola. Vários são os fundamentos para isso. Um deles é aprender a ler e a escrever, mas também aprender a falar a própria língua em situações mais complexas, com pessoas mais exigentes e sobre assuntos mais complexos do que aqueles abordados com os familia-res e com os amigos, nas suas rotinas de brincadeira e outras.

Ao estudarem a sua LM na escola, as crianças ganham consciência das suas regras gramaticais e dos seus princípios de uso. Essa consciência lin-guística é importante porque ajuda a regular e monitorar a utilização da língua, adequando e controlando a forma de falar, em função das circuns-tâncias, pessoas e assuntos, favorecendo, assim, formas mais exigentes de fala e de escrita.

Além disso, a consciência linguística em ambas ajuda a manter o sistema de uma separado do da outra, controlando as influências mútuas (interfe-rências) e exerce um papel positivo na aprendizagem de outras línguas. Nas palavras de Vygotsky:

“[…] o êxito no aprendizado de uma língua estrangeira depende de um certo grau de maturidade na língua materna. A criança pode transferir para a nova língua o sistema de significados que já possui na sua própria. O oposto também é verdadeiro - uma língua estrangeira facilita o domí-nio das formas mais elevadas na língua materna. A criança aprende a ver a sua língua como um sistema específico entre muitos, a conceber os seus fenômenos à luz de categorias mais gerais, e isso leva à consciência das suas operações linguísticas.” (Vygotsky, 1934:94)

A língua materna tem papel fundamental no desenvolvimento cognitivo e afetivo das crianças. Como generalidade das crianças, a esmagadora maioria das cabo-verdianas chega à escola sabendo apenas a sua língua materna. Assim, ela é o único instrumento de que essas crianças dispõem para pensar e exprimir as suas ideias e os seus sentimentos. Ao não poderem dispor des-se meio para aprender ideias novas e mais complexas (conceitos científicos)

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ficam bloqueados cognitivamente. Também representa uma grande carga cognitiva, a aprendizagem simultânea da fala em português e dos processos complexos de leitura e de escrita. Desse modo, o seu êxito académico fica comprometido e desenvolvem-se bloqueios de fala e problemas de leitura e de escrita que subsistem pela vida fora, sendo de 87,4% a taxa nacional de transição do ensino básico para o ensino secundário, em 2013/141.

O estudo realizado (Lopes, 2016) mostra que o cabo-verdiano é usado na sala de aula de língua portuguesa, de modo mecânico para traduzir itens lexi-cais, mas sobretudo como uma técnica de ensino, para transmitir a matéria a ser memorizada: o professor transmite em língua cabo-verdiana os conteúdos que pretende que os alunos memorizem para, depois, eles os devolverem ao professor, em língua portuguesa, para este avaliar. Nada mais injusto, portanto.

A nossa proposta, assente numa concepção sócio-construtivista de ensino--aprendizagem (Vygotsky, 1930 e seus seguidores), como Cristóvão (1996:131), é que, até à adopção de um modelo de educação bilingue, apoiado num es-tudo de fundo e credenciado, seja institucionalizado o uso da língua materna na sala de aula, como instrumento de apoio para a aprendizagem da língua segunda e de outras disciplinas. O professor usaria, de modo consciente e controlado, segmentos dessa língua para fornecer aos alunos modelos e ins-truções e para negociar e transformar as relações interativas em sala de aula, criando um contexto de construção colaborativa do conhecimento.

2. Criação de estruturas técnicas de acompanhamento científico e didático dos professores

Trata-se, concretamente, de um serviço de supervisão pedagógica e/ou de orientação e inovação pedagógica, por razões que se prendem com duas questões fundamentais: o que se ensina, e como, quando se ensina o portu-guês em Cabo Verde?

Relativamente à primeira, há muito tempo que se tem consciência de que saber uma língua é poder comunicar nela e não saber enunciar as suas

1 Principais Indicadores da Educação 2013/2014. Ministério da Educação e Desporto de Cabo Verde. Praia. Dezembro de 2014.

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regras e que, em decorrência, ensinar uma língua não é ensinar a sua gra-mática como um fim em si: memorização de regras e de terminologia gra-matical, no pressuposto de que, na posse desses conhecimentos, se estaria habilitado a comunicar nela. Hoje, com o desenvolvimento da linguística e a ampla aceitação de uma concepção de língua como fenómeno social, a formação de professores passou a integrar, no contexto da formação linguís-tica, o conhecimento da gramática em sentido estrito (fonologia, morfologia, sintaxe e semântica), mas também teorias e concepções vinculadas ao uso e à compreensão de objetos de ensino como a leitura e a produção escrita.

Em decorrência, não só se ensina a terminologia gramatical, em sentido estrito, como também a relacionada com a comunicação e o uso da língua e até questões teóricas relativas aos processos de leitura e de produção escrita. É evidente a tendência de transformar as aulas de língua portuguesa em aulas de linguística ou de didática do português. A prática está muito concentrada em “dar a matéria que vai sair como conteúdo nas provas X e Y”. Resulta confrangedor o modo como alunos do secundário são inquiridos sobre questões teóricas complexas como a teoria dos atos de fala, por exem-plo, ainda muito discutida entre linguistas.

Por isso, é preciso reorientar a prática pedagógica. Por um lado, colocan-do a compreensão e a produção orais, a leitura e a produção escrita como conteúdos de ensino; e, por outro, mudar da postura de “dar conteúdo X” para a de “trabalhar conjunta e colaborativamente com os alunos sobre o conteúdo X”. Há que valorizar o tempo dedicado ao desenvolvimento dessas capacidades, não com foco nos resultados, no produto, mas no processo: escrevendo e lendo junto com os alunos, demonstrando como se escreve e como se lê, e fazendo com que os aprendentes desenvolvam progressiva consciência das estratégias e procedimentos implicados.

Não se trata, de modo nenhum, de abandonar o ensino da gramática. Compreender o que se ouve ou se lê, falar e escrever requerem o uso das regras gramaticais que, assim, têm um papel instrumental. Há sim que ado-tar um ensino reflexivo, ou seja, de descoberta ativa das regras gramaticais, dos princípios de uso da língua e dos procedimentos de leitura e escrita, visando o seu domínio prático – o seu uso na compreensão e produção. O progressivo domínio consciente desses instrumentos, articulados ao proces-so comunicativo nas diferentes modalidades de uso, isto é, contextualizado,

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habilitará o aprendente a utilizá-los para monitorar a sua fala, leitura e es-crita e ganhar autonomia.

A questão do como se ensina também é crucial. Pode-se ter os progra-mas e materiais mais inovadores e professores titulados, mas o mais impor-tante é a prática, as metodologias que usam, ou seja: o que, efetivamente, se faz nas aulas com esses programas e esses materiais.

Donde, a necessidade de uma unidade de supervisão pedagógica ou de orientação e inovação pedagógica que acompanhe a prática dos professores e lhes dê apoios suficientes na concepção das sequências didáticas e na pro-dução de materiais didáticos e que, como resultado desse acompanhamento, construa com eles, orientações concretas, de cariz didático-pedagógico sus-ceptíveis de melhorar a prática de ensino.

3. Valorização da investigação sobre a língua portuguesa

Há que usar os resultados da investigação já produzida, nomeadamente sobre o ensino do português em Cabo Verde (dissertações de mestrado e teses de doutoramento). Para além de conferir títulos aos seus autores, não é visível o impacto do conhecimento assim construído na adequação dos planos de estu-do, programas, manuais e outros materiais, formação de professores e mudan-ça nas práticas pedagógicas. Neste ponto, vale destacar os vários estudos já existentes sobre a educação bilingue e as experiências de ensino nessa pers-petiva e as três linhas dessa investigação, que parecem ser mais relevantes.

a) O ensino da língua portuguesa – Questiona-se muito os resultados gerais desse ensino, apontando causas e aventando explicações. A verdade, contudo, é que se sabe muito pouco sobre o que efetivamen-te se passa: o que se ensina e como se ensina, como referido acima. Portanto, há que investigar mais, com rigor, colocando a prática no centro da investigação (Moita Lopes, 1996), indo às salas de aula, o lugar onde o processo de ensino/aprendizagem acontece. b) Identificação das áreas mais resistentes à aprendizagem – Quando se aprende uma segunda língua, há sempre aspetos que são inter-nalizados com mais dificuldade, por razões várias. Há que, partindo das produções dos aprendentes, identificar essas áreas críticas – erros

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mais frequentes, sistemáticos e resistentes –, para servir de input aos produtores de programas de ensino e materiais de apoio ao processo de ensino/aprendizagem, e de fonte para práticas de ensino condu-centes a um maior domínio do português. c) O português de Cabo Verde – A língua portuguesa é, maioritaria-mente, aprendida em Cabo Verde, como língua segunda, tendo como modelos linguísticos os professores e os jornalistas que também a aprenderam nessa condição. É baixo o contacto com a norma culta europeia, a norma de referência no país, e com a variação existente na fala culta das diferentes variedades do português. Por isso, embora seja geralmente aceite que o cabo-verdiano fala o português de um modo específico, sobretudo na pronúncia e no léxico, a tendência é considerar como erradas construções gramaticais diferentes da nor-ma europeia. Por isso, impõe-se a descrição da fala culta do portu-guês de Cabo Verde, para que os professores possam dispor de um instrumento orientador, evitando-se cair em um dos dois extremos, permitir ou corrigir tudo, e a comunidade possa se rever, sem precon-ceitos, na sua variedade do português, independente e única.

4. Institucionalização de um sistema de avaliação da aprendizagem eminentemente contínua e formativa

A sociedade cabo-verdiana parece esperar que os alunos que terminam o 12.º ano saibam falar, ler e escrever em português como um falante nativo culto de Portugal, num contexto de massificação do ensino, em que ele é lecionado quatro horas por semana no 1.° e 2.° ciclos e três horas por semana, no 3.° ciclo, em turmas que excedem, amplamente, o número de alunos esperado numa aula de línguas em que predomine a comunicação, a interação e a colaboração entre os participantes. Além disso, escasseiam recursos técnicos e os professores das outras disciplinas parecem não ter muita consciência do papel que têm, em função da interdisciplinaridade dessa língua como meio de ensino.

A aprendizagem de línguas não resulta de uma acumulação hierárquica, mas de um aprofundamento e ampliação em espiral. Por isso, os professores devem saber, com o máximo de rigor possível, para que nível dirigir o ensino que fazem. Para tal, há que definir os níveis de proficiência esperados, em

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cada ciclo de escolaridade, para cada uma das capacidades de uso – com-preensão oral, produção oral, leitura e escrita –, com respeito pela condição de L2 da língua portuguesa e, também, explicitar os critérios de avaliação. Trata-se de elementos que constituem uma base de orientação fundamental para a produção de materiais e para a avaliação (formativa e sumativa).

Assim, importa, por um lado, adoptar, de modo operacional, a avaliação formativa, como avaliação formadora, ou seja, como uma capacidade de au-toavaliação a desenvolver no próprio aluno, como instrumento para ele pi-lotar a sua própria aprendizagem e ganhar autonomia; e, por outro, produzir instrumentos de avaliação para essas diferentes capacidades e adequados aos diferentes níveis de proficiência a definir.

Para esse desiderato, dispõe-se, à partida, de três instrumentos que de-vem ser adequados à situação concreta de Cabo Verde: o QECRL - Quadro Europeu Comum de referência para as línguas. Aprendizagem, ensi-no, avaliação; o QuaREPE – Quadro Referência para o Ensino do Português no Estrangeiro. Documento Orientador; e o Português Língua Estrangeira. Conteúdos de Aprendizagem por níveis de referência.

5. Investimento na melhoria da qualificação dos professores

A qualidade dos professores não é, certamente, o único fator de sucesso, mas é, sem dúvida, um dos fundamentais: bons professores podem dar bom uso a materiais pobres, mas bons materiais podem não ser usados com sucesso por professores sem boa preparação.

Para isso, importa: - Melhorar os programas de formação inicial, usando os resultados de

investigação;

- Institucionalizar programas de formação contínua dos professores, integrando a atualização científica (linguística) e a metodológica (estratégias de ensino/aprendizagem, incluindo como criar, de modo deliberado e intencional padrões interacionais susceptíveis de favo-recer a aprendizagem) com a produção de materiais, em articulação

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com a supervisão pedagógica. Para ser apelativo, esse programa deve ter efeitos diretos na carreira;

- Aumentar o nível de formação inicial, participando da criação das condições para que os professores possam investir na sua formação pós-graduada, garantindo, nomeadamente, que ela, também, tenha implicações na carreira profissional;

- Alargar o âmbito da formação, promovendo o perfil de professores especialistas como, na avaliação e supervisão, por exemplo, garantido uma contribuição de maior qualidade na melhoria das práticas das escolas em que atuam;

- Promover ações de melhoria da proficiência dos professores em por-tuguês, mediante, por exemplo, a sua imersão periódica em contextos onde ele é língua materna ou usada no quotidiano e no ambiente linguístico com mais intensidade, tendo em conta o papel dos profes-sores como modelos de língua;

- Consciencializar os professores das outras disciplinas, durante a sua formação e em ações de formação contínua, da interdisciplinaridade e da transversalidade língua portuguesa, decorrente do seu papel de meio de ensino.

Sintetizando: o modo como se processa o ensino do português em Cabo Verde precisa de ser conhecido de modo rigoroso, através de investiga-ção científica sistemática, com foco na sala de aula, sobretudo, para que se possam delinear práticas favorecedoras do seu melhor domínio. Contudo, a melhoria desse processo requer, antes de mais, uma política linguística nacional que, no domínio do ensino, e quanto à LP, exige, em nosso entender, como medidas mais urgentes: i) um modelo de educação bilingue adequado ao contexto sociolinguístico; ii) um serviço de supervisão pedagógica e/ou de orientação e inovação pedagógica para acompanhamento e apoio aos professores; iii) implicação, no processo de ensino/aprendizagem, dos resul-tados de investigação já realizada; iv) a definição de níveis de proficiência para as diferentes capacidades de uso de língua, a atingir nos diversos ciclos de ensino, e incremento da prática de avaliação formativa; e v) investimento na melhoria da qualidade da formação dos professores.

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Referências Bibliográficas

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FATORES DE APRENDIZAGEM DO PORTUGUÊS LÍNGUA SEGUNDA: O FOCO NAS

ESTRATÉGIAS METODOLÓGICAS

Elvira ReisUniversidade de Cabo Verde; Cátedra Eugénio Tavares de Língua Portuguesa

[email protected]; [email protected]

Resumo

Pretende-se aqui clarificar a importância e a necessidade do ensino do por-tuguês no pré-escolar, considerando que a precocidade na aquisição lin-guística é um fator de desenvolvimento cognitivo. Focando o adolescente, pretende-se, ainda, estabelecer um diálogo entre as atitudes linguísticas do aprendente cabo-verdiano, sua motivação para a aprendizagem do portu-guês e as metodologias utilizadas pelo professor no processo de ensino e aprendizagem desta língua, em Cabo Verde.

Assim, através de entrevistas semiestruturadas com professores do Ensino Secundário, procura-se clarificar até que ponto o discurso do pro-fessor evidencia a consciência de que as atitudes linguísticas, a motivação para a aprendizagem de línguas e as estratégias metodológicas que usa influenciam a aprendizagem da língua e, consequentemente, o rendimento académico. Parte-se do pressuposto que se a metodologia fomentar atitudes positivas face ao português e elevar o nível de motivação dos aprendentes, estará a catalisar o sucesso na sua aprendizagem desta língua.

Palavras-chave: atitudes, motivação, metodologias, ensino-aprendizagem, línguas

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1. Introdução

A aprendizagem de uma língua é um processo complexo que requer predis-posição e atitudes positivas face à língua alvo (LA), por parte do aprendente, para que a sua aprendizagem seja uma atividade agradável, um alvo dese-jado e vista como um meio de satisfazer uma necessidade premente de en-tender e compartilhar com o povo que a usa a visão do mundo que, através dela, se vai construindo

Porém, sabe-se que fatores vários têm dificultado o sucesso desta em-preitada. Daí que mereça a nossa atenção fatores intrínsecos ao aprendente como as atitudes linguísticas e a motivação, bem como fatores extrínsecos, como a idade da aprendizagem, e as metodologias utilizadas pelos profes-sores que condicionam os fatores intrínsecos.

Pois o processo de aquisição de uma língua segunda (L2) é determinado pelo uso que o sujeito faz das oportunidades formais e espontâneas que se lhe oferecem para utilizar a nova língua. Isto envolve fatores puramente lin-guísticos, como a capacidade de comunicação com os indivíduos que falam a LA ou fatores extralinguísticos, como o ambiente afetivo do grupo dos que a falam, e suas manifestações culturais (Cf. Siguan, 2001).

Assim, destacaremos a importância da aprendizagem precoce duma L2 e a necessidade de se refletir sobre as possibilidades de se ensinar preco-cemente a LP na educação pré-escolar em Cabo Verde; a importância da motivação e das atitudes linguísticas positivas na educação informal e for-mal, numa tentativa de clarificar a importância de intercâmbios linguísticos e a exploração dos métodos de imersão quer em contextos reais quer em contextos virtuais para a aprendizagem de línguas; a abordagem comuni-cativa, enquanto método comprometido com a prática de uso da língua em contexto real.

Portanto, ao longo deste texto, cruzaremos a voz dos teóricos com a voz dos professores, no tocante ao conhecimento que têm das atitudes e moti-vações dos aprendentes, visando perceber se esse conhecimento é objecto de reflexão pedagógica e se influencia a prática docente.

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2. A aprendizagem precoce de uma L2 e a competência comunicativa

Já em 1967, Klennenberg acreditava que o cérebro infantil tem uma flexibili-dade que facilita as aprendizagens precoces, uma capacidade e uma predis-posição naturais e espontâneas que se perdem cedo e a partir daí as apren-dizagens linguísticas têm de ser mais reflexivas. É difícil conseguir dados neurológicos que avaliem esta opinião, mas o certo é que a laringe infantil, durante uma época, está aberta para modular qualquer tipo de som. Esta flexibilidade se perde a medida que consolida os sons da língua materna.

Por isso, é necessário que a aprendizagem de uma L2 se faça no pré-es-colar, pois a precocidade na educação bilingue é um dos requisitos funda-mentais para que se aprenda bem e depressa uma L2, primeiro sob forma oral e depois escrita. Este é o momento em que a criança tem maior ape-tência para aprender línguas e depois deste momento, nenhum surgirá que seja tão frutífero, em matéria de aprendizagem de línguas. Ou seja, o sucesso de uma educação bilingue precoce fornece um contrato de garantia para o multilinguismo posterior, (Hagège 1996).

Porém, Pereira (2006) observa que os alunos cabo-verdianos carecem de oportunidades de contacto sistemático com inputs de qualidade em CCV e LP e recomenda libertar a língua materna: torná-la visível, devolver-lhe o prestígio e dar-lhe espaço na escola.

3. Atitudes e motivação na prendizagem do português L2

Richards, Platt e Platt dizem que as atitudes que os falantes de diferentes línguas ou de dialectos diferentes têm a respeito das línguas alheias são distintas das que têm a respeito da sua LM, (in Lasagabaster, 2003).

UR1 – Acho que é por causa da afinidade que têm com a língua materna, e dizem logo/ a nossa língua é o crioulo//Também não aceitam a língua portuguesa como nossa (PE).

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A expressão de sentimentos positivos ou negativos a respeito de uma língua pode refletir impressões sobre a dificuldade ou a facilidade linguística, a facilidade ou dificuldade de aprendizagem, o grau de importância, elegância, a função e o estatuto social etc.

UR2 - Fácil não foi, é uma língua complicada/ difícil/ muita gramática// Lembro-me das notas no ensino secundário mesmo/ não eram fáceis não. (PB)

UR3 – Gostam mais de falar em crioulo do que em português, e se peço que falem em português, acabou a conversa. (PC)

As atitudes face a uma língua também podem refletir o que as pessoas pensam dos falantes dessa língua (Richards, Platt y Platt, 1997, in Lasagabaster, 2003).

UR4- Já percebi que a auto-estima dele é baixa/ porque me fez uma comparação que o seu padrasto em casa lhe fez que é/ a sua irmã de nove anos domina melhor o português do que ele/ então ele se sente inferiorizado (PH).

UR5 - O crioulo se aprende em casa/ é mais fácil é nossa língua materna/ não é uma coisa que herdámos (PJ).

Lasagabaster assinala que as atitudes tanto podem ser um fator de predis-posição como o resultado. Como exemplo, diz que um estudante de uma L2 que mostra uma atitude positiva face à sua aprendizagem obterá um nível de competência na L2 mais alto que aquele que mostra uma atitude negati-va. As atitudes podem ser, também, o fruto de um processo de aprendizagem da L2, visto que quanto mais alto for o nível de competência, tanto mais positiva será a atitude do aprendente face à L2 (2003:31).

UR6 – Sim porque quando cheguei cá falava português mas era apenas na oralidade/ não dominava a escrita/ era criança// então acho que foi para mim mais fácil do que para outros coleguinhas que eu tinha na minha classe aprender o português. (PM)

Da relação entre atitude e aquisição de L2, os estudos concluem que uma atitude positiva facilita o processo de aprendizagem de uma L2 ao ponto de hoje em dia se considerar que o trabalho do professor não se limita a com-partilhar conhecimento, mas, sobretudo, tem de fomentar valores e atitu-des positivos perante L2 e seus falantes (Morgan, 1993:63, in Lasagabaster 2003). As atitudes linguísticas têm sido examinadas em relação a vários aspetos da aquisição da L2 (mudança de códigos, competência linguística, interferência, transferência etc.).

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ATAS DAS JORNADAS DE LÍNGUA PORTUGUESA - INVESTIGAÇÃO E ENSINO96

UR7 – Porque os alunos falam crioulo com os colegas/ falam crioulo lá em casa e na comunidade// É por isso que há interferências do crioulo na LP. (PG)

Mas, o que habitualmente se verifica é que as pessoas têm atitudes clara-mente positivas perante a sua LM, apesar de em Cabo Verde, em algumas si-tuações, ser o contrário. Os próprios professores rejeitam a LM, considerando que é um impedimento à aprendizagem do português L2.

UR8 – Quando o aluno introduz o crioulo está a prejudicar/ a dificultar sua aprendizagem/ porque não há uma abertura total à língua portugue-sa, deixa-se levar pela língua crioula/ a nível escrito e oral/. (PC)

UR9 – Querem falar em crioulo/ sentem-se mais à-vontade em crioulo então fica difícil ensinar o português. (PA)

Nota-se que as atitudes linguísticas não são estáticas, variam com a influên-cia de pessoas, experiências e contextos. Mudam também com uma recom-pensa no contexto escolar, por exemplo, por meio dos elogios do professor ou por uma maior interação com ele. O castigo pode acarretar consequên-cias como a mudança de atitude e a proibição pode produzir um efeito du-plo: estimular uma atitude ainda mais positiva perante as línguas em perigo entre determinados grupos sociais ou fomentar uma atitude mais negativa. Em relação a aprendizagem de uma L2 os alunos precisam de motivação, isto é, uma atitude que demonstre que há razões para a aprender. A decisão de a aprender é o sustento do esforço de a aprender dia-após-dia.

UR10 – Nunca tive tantas dificuldades na língua portuguesa/ foi uma disciplina de que sempre gostei. (PH)

Distingue-se duas orientações atitudinais face às línguas: a integradora e a instrumental. Mas Baker considera que esta distinção é mais conceptual do que empírica, (1992:33). A orientação integradora tem que ver com o desejo e a vontade de se integrar na comunidade de falantes da LA. São vários os auto-res que têm verificado que o fator integrador é a componente mais poderosa da disposição afetiva geral dos participantes, a ponto de ser ele que determina a eleição linguística e o nível geral de esforço que o estudante dedica ao pro-cesso de aprendizagem. A motivação está geralmente associada à uma atitude positiva perante a comunidade da L2 e seus valores, independentemente do contexto de aprendizagem, (Dörnyei e Clemente, 2001 in Lasagabaster 2003).

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ATAS DAS JORNADAS DE LÍNGUA PORTUGUESA - INVESTIGAÇÃO E ENSINO 97

UR11 – Passei parte da minha infância em Portugal/ quando voltei ti-nha seis anos, eu já falava português muito bem, mas depois/ socializan-do com meninos cabo-verdianos, esqueci o português e passei a falar o crioulo. Mas, quando fui para a escola outra vez tive que reaprender e mais tarde fui estudar em Portugal e melhorou. Em contacto com pessoas que falam português/ vamos melhorando a língua. (PM)

Portanto, a orientação integradora é o que fomenta maior frequência de uso da língua e facilita a sua interiorização.

UR12 – Quando falam em crioulo eu falo que têm de falar a LP que é a língua oficial, porque se forem a São Tomé ou a Moçambique/ têm de ex-pressar em LP// Se falarem português vão-se entender// Portanto mostro a vantagem da língua portuguesa. (PB)

A orientação instrumental vem guiada por razões pragmáticas ou utilitárias. O objectivo último não é a busca de uma integração no grupo de falantes da língua em questão, mas alcançar o reconhecimento social e vantagens econó-micas (Gardner e Lambert, 1972) ou o simples desejo de superar um exame.

UR13 – Dediquei sempre alguma atenção, atendendo à importância da língua na comunicação/ mesmo independentemente da área de trabalho científico que a gente queira prosseguir/ a língua é fundamental e no caso concreto de Cabo Verde/ a língua portuguesa, já dizia Cabral/ é a melhor herança que o português nos deixou e que de facto devemos valorizar. (PA)

Mas na orientação instrumental, como observa Krashen, o filtro afetivo pode influenciar negativamente a aprendizagem de uma L2, se o contacto desper-tar sentimentos negativos.

UR14 – O espírito de acanhamento/ e em termos de expressão exata-mente pelo facto de terem medo de errar/ mas fazendo o contrário/ nor-malmente a pessoa está desinibida e então acabo por ir mais no caminho adequado/ não só da comunicação/ mesmo até da língua. (PJ)

Se a necessidade de comunicar for acompanhado pelo medo de errar produz a inibição que é um catalisador da incorrecção, pois, provoca um bloqueio mental que dificulta o acesso às regras gramaticais conhecidas. São prejuí-zos que afetam negativamente as atitudes e desmotivam o aprendente. O desprezo pela cultura da língua alvo e sua distância em relação à comuni-dade dos falantes dessa língua podem limitar as possibilidades de interação

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ATAS DAS JORNADAS DE LÍNGUA PORTUGUESA - INVESTIGAÇÃO E ENSINO98

na referida língua. Assim, como observa Dewaele (2002) a perceção do aluno de que tem uma baixa competência está associada a poucas possibilidades ou fraco desejo de comunicação na LA (in Lasagabaster 2003).

UR15 – Lembro/ a professora falava em português/ falava em português/ só que na hora que ela se dirigia a mim e aos meus colegas/ o medo/ mas era um medo triste de errar/ não sei se passei semanas sem abrir a boca para falar com a professora/ porque eu não sabia como dizer. (PJ)

Ao professor é exigido a capacidade de detetar diferentes estádios motiva-cionais entre os estudantes que lhe permitam manipular as variáveis ati-tudinais e motivacionais, visando o máximo benefício do processo de en-sino e aprendizagem. A estas pode-se acrescentar uma terceira orientação, a desmotivação que contempla a falta de regulação tanto intrínseco como extrínseco e que se caracteriza pela sensação de “ não tem nenhum valor”.

4. O método comunicativo e estratégias de ensino da LP

Nos métodos comunicativos se propõe desenvolver a competência comu-nicativa na LA. Parte-se do princípio que o fato de se pôr em prática, em cada momento do processo, as capacidades comunicativas e de as pôr ao serviço da ação sejam suficientes para tornar interessante o processo e, por isso, motivador. Mas as comunicações na LA na sala de aula são, na realida-de, exercícios escolares e, para muitos alunos, não perde este caráter. Para que estes se tornem em intercâmbios reais os novos métodos recomendam visitas ou intercâmbios com estudantes e escolas que tem a LA como LM (cf. Siguan, 2001:98).

No nosso caso, o ensino da LP não corresponde necessária e globalmente a um desejo de aprender a fundo uma segunda língua, mas está politica-mente estabelecido o ensino desta língua, pois é língua oficial e de ensino. Pode apresentar-se como uma saída profissional, ou o seu domínio como um fator facilitador da realização pessoal e social.

UR16 – Decidi ser professor de LP/ Precisava fazer uma formação para garantir o meu enquadramento convencional e/ sempre estive mais liga-do às disciplinas das áreas das ciências, mas nessa altura só havia uma vaga, em LP, então avancei// Também, porque sempre considerei a língua

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ATAS DAS JORNADAS DE LÍNGUA PORTUGUESA - INVESTIGAÇÃO E ENSINO 99

portuguesa algo muito importante, apesar de não ser a minha área de eleição direta.

Neste caso, os alunos têm demostrado duas atitudes distintas, um esforço para se aproximar o mais que possível da LA, visando aproximar-se dos seus falantes, outras vezes, nota-se uma renúncia da LA, em jeito de fidelidade à língua nativa e, aqui, os resultados são claramente influenciados pelas atitudes.

UR17 – Há uns anos, sentíamos muito ligados a Portugal// Hoje em dia, sentimo-nos como cabo-verdianos/ que estamos em África e que é// Então, queremos distanciar ainda mais. Não é a toa, é esse sentimento de criouli-dade/ de cabo-verdiano/ Sentimento de identidade, que têm os alunos (PJ).

5. Os métodos comunicativos e a aprendizagem da LP L2

Ao contrário dos métodos tradicionais, os comunicativos consideram que o objetivo principal do ensino é capacitar o aluno para comunicar na LA em qualquer circunstância e, para o alcançar, propõe utilizá-la desde o início da aprendizagem, como instrumento de comunicação.

UR18 – eu tento fazer um equilíbrio/ cumprir o planificado que está pro-gramado/ articulando-o com essa perspetiva comunicativa, para levar os meus alunos a desinibirem-se/ falando de um assunto corriqueiro ou que aconteceu momentos antes da aula/ depois aproveito esta situação de comunicação para pegar determinados aspetos/ que estão relacionados com a nossa matéria/ para depois mostrar essa aplicação// (PA).

Na apropriação e difusão desde método interferem muitos fatores. Há preo-cupação com a linguagem oral, a produção discursiva, a necessidade de dis-por de métodos que sejam atrativos para adultos de qualquer nível cultural e sem conhecimentos prévios de gramática e com a pertinência de dispor de métodos difundíveis através das novas tecnologias de informação e co-municação (cf. Siguan, 2001: 98 e 99).

UR19 – Considero que não seria muito difícil se seguíssemos um método um pouco diferente/ porque o sistema assoberba o aluno com muitas questões gramaticais/ se utilizássemos uma metodologia/ levá-lo a de-senvolver a capacidade comunicativa e conseguir dominar diversas arti-culações no falar/ talvez pudéssemos facilitar e criar maior entusiasmo na aprendizagem das línguas // Devíamos ajudá-lo a desenvolver um

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ATAS DAS JORNADAS DE LÍNGUA PORTUGUESA - INVESTIGAÇÃO E ENSINO100

sistema implícito através da conversa e da leitura e isso daria muito mais confiança/ vontade para aprender a língua e depois ter altos níveis de desempenho (PA).

6. Tarefas de aprendizagem da L2 no método comunicativo

O método comunicativo se estrutura numa série de seções e em cada uma delas se pode propor ao aprendente um diálogo numa situação típica da vida quotidiana, se lhe oferece elementos verbais para estabelecer um diá-logo similar com o professor, assim como algumas regras gramaticais que podem ser aplicadas. Siguan (2001) imagina a seguinte situação: numa loja o aprendente dialoga com o vendedor. O diálogo consiste em perguntar pela qualidade e preço de mercadorias oferecidas. Daí extrai-se formas básicas para perguntar e responder, sistematiza-se o vocabulário adequado à situa-ção e explicita-se regras que podem ser as que se referem aos adjetivos que indicam a quantidade e a qualidade dos produtos. Esses elementos servem para o aluno estabelecer o diálogo com o professor e com outros alunos sobre os temas propostos. No final, o aluno deverá estar familiarizado com o repertório de diálogos ou de usos linguísticos adequados a múltiplas si-tuações, ter assimilado um vocabulário adequado a estas situações e umas regras gramaticais principais.

O que, fundamentalmente, se pretende com este método é que o aluno, ao dialogar com o professor, seja levado a progredir espontaneamente nos recursos linguísticos, descobrindo e assimilando suas regularidades. Ou seja, pretende-se que o aluno adquira a LA de modo parecido com a forma como adquiriu a LM na infância. Aprendeu a falar na sua LM, usando-a para se comunicar com alguém mais competente do que ele (Siguan, 2001).

Para que numa pedagogia comunicativa o simples diálogo sirva para aumentar a competência linguística dos alunos, é necessário que o profes-sor use uma linguagem compreensível que facilite essa compreensão e, so-bretudo, esteja interessado em manter a comunicação e que seja capaz de despertar nos alunos o interesse por a manter. Por isso, não basta oferecer ao aprendente a oportunidade de comunicar na LA, há que provocar uma

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reflexão sobre as suas estruturas gramaticais e lavar o aprendente a uma situação em que ele seja capaz de continuar esta reflexão sozinho. Pois para que o aprendente mantenha bem separadas as duas línguas, há-de ser capaz de compará-las, identificar claramente suas fronteiras mútuas e suas possi-bilidades de interferências (Cf. Siguan, 2001:106).

Conclusão

Conclui-se que o abandono a que tem sido votado o pré-escolar dificulta a im-plementação de medidas concretas, a nível nacional, de promoção do ensino precoce da LP, pois ele se encontra nas mãos de privados, de algumas ONGs ou das Câmaras Municipais, instituições pouco vocacionadas par esta tarefa.

A investigação, ainda, denunciou a existência e abundância de atitudes negativas face à LP e sua aprendizagem no contexto educativo cabo-ver-diano, por parte dos alunos, que são percebidas pelos professores na inte-racção pedagógica. Como forma de promover mudanças de atitudes, alguns professores usam como estratégia a tentativa de consciencialização da im-portância da LP no contexto global, enquanto língua de internacionalização das relações interpessoais e no contexto nacional enquanto língua oficial e veicular dos conhecimentos científicos e da comunicação pedagógica.

Alguns discursos denunciam a necessidade de mudança do paradigma tradicional para um paradigma mais comunicativo, reconhecendo a impor-tância do ensino do uso da língua em contextos reais de comunicação. A formação dos professores, os programas e os materiais didácticos deverão ser concebidos, considerando esta necessidade.

Assim recomendamos que, através da NTIC, se crie condições virtuais de imersão na língua portuguesa e que se pense em programas de intercâmbio para promover imersões reais, considerando que melhor do que o método comunicativo para a aprendizagem de línguas é o método de imersão.

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Bibliografia

Gardner, R. C.; Lambert, Wallace E. (1972). Attitudes and Motivation in Secondary Language Learning. Rowley, MA: Newbury House.

Hagège, C. (1996). A Criança de duas Línguas. Lisboa: Instituto Piaget.Krashen, S. (1989). Language Acquisition and Language Education. London:

Prentice-Hall International. Lasagabaster H. D. (2003) Trilingüismo en la enseñanza: actitudes hacia la

lengua minoritaria, la mayoritaria y la extranjera. Sant Salvador. Editorial Milenio.

Pereira, D. (2006). O desenvolvimento linguístico de alunos caboverdianos ou de origem caboverdiana em Portugal e em Cabo Verde, Departamento de Linguística Geral e Românica, FLUL.

Siguán, M. (2001). Bilingüismo y Lenguas en Contacto. Madrid: Alianza Editorial.

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COMUNICAÇÃO MULTIMODAL EM AULAS DE LÍNGUA-CULTURA

Clara Ferrão TavaresInstituto Politécnico de Santarém | GERFLINT: Groupe d’études et de recherches sur le français langue internationale | Synergies-Portugal

[email protected]

Resumo

Este artigo poderia ter o seguinte título: “Eu faço atividades comunicativas, mas os meus alunos não falam”. Este comentário de uma estagiária anun-ciaria o formato narrativo e dialogal que caracterizou o seminário lecio-nado na Universidade de Cabo Verde, em novembro de 2016, e que decidi manter neste artigo. De uma forma voluntariamente superficial e contraída (apesar de estas características serem apontadas como defeitos da comuni-cação atual) procurarei caraterizar a comunicação multimodal, salientando alguns modos ou algumas modalidades da comunicação como o tempo, o espaço, a cinésia, a imagem em relação com o modo verbal, centrando-me na necessidade de desenvolver a competência comunicativa multimodal de professores, para que estes possam desenvolver esta mesma competência nos alunos.

Palavras-chave: comunicação, multimodalidade, competência comunicativa multimodal, configurações, espaço, tempo

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Résumé

Cet article pourrait avoir le titre suivant : “ Je fais des activités communi-catives, mais mes élèves ne parlent pas.” Ce titre introduirait le récit et le format dialogique qui a caractérisé le séminaire que j’ai encadré à l’Univer-sité du Cap-Vert, en Novembre 2016, et que j’ai décidé de garder dans cet article. D’une façon volontairement superficielle et contractée (bien que ces caractéristiques soient identifiées comme des défauts de la communication actuelle), j’essaierai de caractériser la communication multimodale, en insis-tant sur certains modes ou certaines modalités telles que le temps, l’espace, la kinésique, l’image en relation avec le mode verbal, en me centrant sur le besoin de développer la compétence communicative multimodale des enseignants afin qu’ils puissent développer cette même compétence chez leurs élèves.

Mots-clés: communication, multimodalité, compétence communicative mul-timodale, configurations, espace, temps

Introdução

Este artigo tem como finalidade caraterizar a comunicação multimodal e mostrar a relevância desta conceção da comunicação em situação didática. A utilização do modo escrito “apaga”, parcialmente, as dimensões multimodais resultantes da coconstrução dos saberes em contexto de interação pedagó-gica e do recurso a diferentes modos para gerir a dinâmica interacional, já que o papel não reproduz as dimensões temporais e espaciais do seminário que pretendeu ser multimodal. Para ser mais precisa, deveria empregar o presente, dado que o seminário começou um mês antes, com a preparação dos professores publicada no blogue Didática das Línguas-Culturas1, blogue descontinuado, mas interligado com o blogue Universidade de Pasárgada2

que se encontra ativo. Assim, no dia 10 de outubro de 2016, data em que conclui este texto, o blogue criado especificamente para prolongar o semi-

1 http://didaticadaslinguas.blogspot.pt/2 http://universidadedepasargada.blogspot.pt/2015/11/antes-de-se-pensar-numa-nova-for-

macao-e.html

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nário no tempo e abrir o espaço de aula cultura a outros públicos, continua a ser visto em Portugal, em França, em Cabo Verde, nos Estados Unidos, Espanha, Angola…

Estas considerações de contextualização do seminário permitem-me referir, antes da definição do conceito de modalidade, três das suas com-ponentes: as dimensões temporais e espaciais e a dimensão tecnológica decorrente da designada WEB 2.0. São estas componentes que me levaram, desde 2006, ano em que a revista Time considerou a personalidade do ano “YOU”, o cidadão participativo nascido com a WEB 2.0, a ter aberto as minhas aulas, quer através de plataformas de ensino à distância, quer através de blogues, e prolongando estes dispositivos, através do Facebook, a “cidadãos participativos” em todo o mundo. A aula, hoje, não conhece efetivamente fronteiras nem territoriais nem temporais.

1. Da conceção de comunicação desenvolvida pela escola de Palo Alto à conceção recente de comunicação multimodal: implicações didácticas

Para se chegar ao conceito de comunicação multimodal ou de modalidade convém recuar à conceção da comunicação desenvolvida, a partir dos anos 50, no quadro dos estudos conduzidas por investigadores da designada Escola de Palo Alto. Para P. Watzlawick, investigador desta escola americana, “não podemos não comunicar”, uma vez que “não podemos não ter comporta-mento” ( citado em Ferrão Tavares, 2013). Esta conceção total ou “orquestral” da comunicação colocou em causa modelos lineares da comunicação que emergiram em engenharia das telecomunicações e adotados em linguística (importados muitas vezes acriticamente nas aulas de Português) que postu-lam uma dissociação de funções entre o emissor e o receptor. P. Watzlawick estabelece, ainda, uma distinção, com implicações em Didática das línguas--Culturas, entre conteúdo e relação. Quando produzimos um enunciado ver-bal, damos simultaneamente ao nosso interlocutor “instruções” para tratar esse conteúdo verbal, muitas vezes, através de comportamentos não verbais. Por exemplo, podemos acompanhar o enunciado “Olha bem o que dizes!” pela formulação seguinte: “É um conselho que te dou”, mas, frequentemente,

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essa relação é expressa através da entoação ou dos gestos. Quando o con-teúdo e a relação se contradizem, são gerados comportamentos paradoxais ou de double bind.

Da conceção alargada de comunicação desenvolvida pelos investigado-res de Palo Alto decorre, em Didática das Línguas-Culturas, o conceito de competência comunicativa, que não se restringe à dimensão linguística (fo-nológica, morfológica, sintática, semântica), envolvendo um conhecimento sobre os modos de organização dos discursos (competência discursiva) um conhecimento sobre os assuntos de que se fala (competência referencial) e um conhecimento sobre as regras sociais e do ambiente afetivo, psicológico e relacional (competência pragmática). Esta competência é, assim, de natu-reza multimodal.

Não creio ter encontrado este termo na Escola de Palo Alto, mas há re-ferência em Watzlawick aos “modos digital e analógico”. O termo multimo-dalidade é de uso comum no mundo dos transportes, mas terá sido adota-do em nanotecnologia, em linguística e ciências da educação, nos anos 80, permitindo compreender muitas dimensões da comunicação em situação pedagógica (Ferrão Tavares, 2013, 2016).

A definição que proponho foi construída a partir de investigações con-duzidas em contextos mediático e pedagógico e afasta-se de definições que limitam a multimodalidade a uma sobreposição dos suportes ou lingua-gens (multicanalidade), O corpo é um suporte da actividade mental e um ins-trumento de actividade relacional com o mundo e com os outros (Cosnier, 2007). Na sequência dos estudos deste autor, defino multimodalidade como um processo cognitivo, relacional, empático que engloba um conjunto de modos em interação, implicando o corpo (corporização da verbalização e do pensamento) e que se traduz na ação dos envolvidos na situação de comuni-cação (espaço e tempo). Por uma questão de clareza de exposição, abordarei primeiro a questão do espaço e do tempo.

1.1. O espaço e o tempo

“O difícil é sentá-los”

Os estudos sobre ”a percepção e da utilização que o homem faz do espaço” foram designados, nos anos 80, pelo antropólogo de Palo Alto, E. Hall pelo

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termo proxémica (Hall, in Winkin, 1981). De acordo com este investigador, a estruturação que fazemos do espaço é um fenómeno cultural, havendo culturas que cultivam a proximidade, assim como outras que cultivam a dis-tância. Normalmente, os indivíduos das culturas ditas do norte estabelecem distâncias maiores no contacto interpessoal do que os indivíduos das cultu-ras do sul. Segundo o autor, alguns problemas comunicacionais, até de con-flito e violência, decorrem de problemas proxémicos. E. Hall distingue ainda espaços que favorecem a comunicação - espaços sociópetas – e espaços que dificultam a comunicação - espaços sociófugos (citado em Ferrão Tavares, 2013). E. Hall interessou-se também pela utilização do tempo em relação com as culturas, distinguindo culturas monócronas de culturas polícronas. A designação de polícronia, para designar as culturas do sul, mais expostas à necessidade de fazer várias coisas ao mesmo tempo em oposição às culturas do norte, consideradas mais organizadas e portanto com uma estruturação monócrona do tempo, quase deixou de ter pertinência em termos geográ-ficos mas, em contrapartida, justifica-se de um ponto de vista geracional, sendo os alunos de hoje muito mais polícronos do que muitos professores, que ficam frequentemente surpreendidos ou mesmo indignados com a ca-pacidade de multitasking dos mais novos.

Os dados da investigação deste autor permitem uma observação dos espaços escolares e dos tempos da escola, com vista à sua adequação às actividades didácticas. Salvo raras exceções, as escolas foram concebidas no pressuposto de que a sua função consistia em levar os alunos a escrever, o que explica o mobiliário individual, e a ouvir o professor, o que explica o estrado. A secretária e o estrado reforçavam o papel simbólico de afirmação da autoridade do professor. As diferentes correntes pedagógicas implicaram algumas mudanças. Por exemplo, a adoção de mesas de trabalho de grupo está ligada a correntes que advogam este tipo de partilha, revelando-se uma organização do espaço vantajosa, mas, por outro lado, dificultando a partilha em grande grupo, já que alguns alunos estão de costas voltadas para o professor ou para os alunos que apresentam trabalhos. Além disso, esta organização implica uma diminuição do espaço do aluno para tarefas individuais, sendo por vezes geradora de conflitos.

O espaço desempenha um papel funcional, facilita (sociópeta) ou dificul-ta a comunicação (sociófugo), sendo utilizado de formas diferentes em fun-

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ção das atividades ou mesmo do tipo de discurso privilegiado em diferentes sequências. Normalmente, um ato de explicação ou de instruções implica uma posição estática do professor, junto ao estrado ou quadro, espaços de poder, mas também funcionais. A atividade de leitura em voz alta ou a sínte-se de um trabalho pelo professor ou por um aluno, a explicação de esquema no quadro ou de uma apresentação multimédia ou o uso do quadro multi-média interativa implicam que quem desempenha o papel de «explicador» esteja virado para o público, numa posição panóptica. A animação de grupos implica, ao contrário, deslocações e aproximações dos grupos.

Tornar o espaço funcional, dinâmico, mudar o aluno de lugar durante o ano para que o espaço não contribua para o sucesso ou insucesso, é uma das conclusões a que se chega a partir da observação de alguns extratos de comunicação em situação de sala de aula.

O espaço da aula modificou-se com as tecnologias. Hoje, a sala de aula rompe as paredes da sala. O mundo entra na sala de aula, mantendo-lhe as portas abertas. Mas “o difícil é sentá-los”. Este desabafo é o de um antigo ministro da educação português e resume a dificuldade dos alunos de hoje, designados entre outras expressões como “nativos digitais” com dificulda-de em se adaptarem ao tempo e ao espaço da escola. Querem fazer tudo ao mesmo tempo demonstrando capacidades de multitasking, capacidade muitas vezes acompanhada de dificuldade de concentração em tarefas es-colares no discurso do professor ou no dos colegas. Os nativos digitais não querem estar sentados nas aulas, mas paradoxalmente estiveram sentados em frente aos computadores durante as últimas décadas..

O tempo decorrente das tecnologias contraiu-se, as distâncias no tem-po esbateram-se e a escola tem, por um lado, de se adaptar ao tempo das tecnologias, por outro, tem de assegurar o tempo necessário à reflexão, uti-lizando ferramentas e instrumentos para recolher informação, compará-la, analisá-la, avaliá-la, condições necessárias para estes se adaptarem ao futu-ro, o que demora tempo, recorrendo a meios fugazes. Sem equacionar esta questão, a escola estará a condenar alunos de meios mais desfavorecidos não só ao insucesso escolar, mas também profissional.

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1.2. O corpo multimodal e as configurações multimodais

“ Eu dou aulas comunicativas, mas os meus alunos não falam!”

Em convergência com a definição de multimodalidade apresentada, os gestos desencadeiam muitas vezes as palavras e basta olharmos para nós próprios, quando não nos lembramos de uma palavra e fazemos o gesto correspondente, desencadeando a atividade cognitiva e fazendo surgir a verbalização. O gesto aciona a memória e facilita a verbalização, dado que a palavra se inscreve no próprio corpo, como tem sido demonstrado por Calbris (2003), Cosnier (2007) e vários estudos em neurociências. Mas se o gesto é importante para quem fala, não o é menos para quem vê que a partir do “esboço” do gesto do interlocutor faz a antecipação semântica. E com os seus gestos de compreensão, o interlocutor ajuda o falante a encontrar a palavra adequada, podendo mesmo verbalizá-la primeiro. Por exemplo, os gestos e o olhar de um interveniente numa interação influenciam os gestos e os olhares dos outros intervenientes, gerando-se fenómenos de espelho ou de eco nos nossos comportamentos não verbais e verbais. Como referido, J. Cosnier sublinha a importância do gesto na verbalização dado que o gesto ajuda a organizar o pensamento e a verbalizá-lo, sendo igualmente fonte de “échoïsation”, de empatia e de sincronia mimética (2007). Haverá neurónios espelho que estarão na origem destes procedimentos, em eco, na interação. Segundo Cosnier, a perceção de gestos num indivíduo é acompanhada de atividade cerebral análoga no indivíduo que observa, no caso deste rea-lizar os mesmos gesto (Rizzolati, Craighero, Fadiga, 2002, Jeannerod, 2002 citados em Cosnier, 2007: 21). Krauss mostra também a função do gesto na gestão do pensamento e na recuperação da memória lexical (citado em Ferrão Tavares, 2013). Daí a importância do gesto de escrita em papel antes do gesto mecânico do teclado, nos primeiros anos de escolaridade.

Tendo em conta os papéis desempenhados e as atividades pedagógicas realizadas em aula, construí a seguinte tipologia de configurações multimo-dais que emergiram nas aulas que observei em diferentes contextos. Essa tipologia apoia-se em várias tipologias como Calbris (2003, 2005), Cosnier (1982, 2007, 2008), Efron (1941), Eckman et de Freiseman (1969), Ferrão Tavares (1991), Mc Neill (1992), autores citados por Ferrão Tavares (2013).

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Os gestos integram configurações de comportamentos verbais e não ver-bais que desempenham funções ilustrativas, reguladoras da interação, afec-tivas e relacionais, e podem corresponder a ações. Embora se desenvolvam estas configurações em função dos professores, os comportamentos destes desencadeiam comportamentos análogos nos alunos ou são desencadea-das por configurações de alunos.

As configurações ilustrativas

Estas configurações estão normalmente ao serviço da explicação, da des-crição ou da narração e englobam gestos que mimam objetos, ações ou propriedades, sentimentos, emoções e deslocações ou veiculam metáforas (como o gesto circular que acompanha a verbalização da expressão “con-ceção global da comunicação”). Estas configurações ilustram o pensamento e ajudam o locutor a procurar a palavra, ou, como muitas vezes acontece na aula, a provocar reações verbais por parte do aluno, revelando a relação entre pensamento, memória e verbalização. Esta categoria é muito impor-tante na aula, quando o professor procura a melhor maneira de se fazer compreender pelos alunos. (Ferrão Tavares, 2013).

Os raccords, termo em francês que importo do cinema, designam as con-figurações que desempenham uma função discursiva ou de gestão da aula, sendo compostas geralmente de articuladores verbais. Através do movimen-to da mão dobrada para trás, por cima do ombro, acompanhado ou não de enunciado verbal, o professor remete para o passado de uma história que está a contar ou para actividade realizada em aula passada. As deslocações e gestos ajudam o professor a reorganizar-se e permitem aos alunos a com-preensão da estrutura da aula, levando os alunos a antecipar a estrutura da sequência didática. Os efeitos da construção em eco que caracterizam a multimodalidade são particularmente visíveis nestes momentos, gerando--se, quando a relação pedagógica é boa, a adoção de posturas de convergên-cia interativa ou de empatia entre professor e alunos.

As configurações reguladoras ou de sincronização da interacção

Estas configurações têm uma função de provocar a verbalização por parte dos alunos e de regular a interação pedagógica. Compreendem gestos ritua-

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lizados para tomar a palavra ou pedir a palavra com o braço levantado. Ao aproximar-se de um aluno, ao inclinar o tronco na direção deste, ao olhá-lo nos olhos, o professor passa-lhe a palavra mesmo sem falar. Espera que o aluno responda, incita-o com movimentos da mão em concha, continua a olhar na sua direção, inclina o tronco na direção do aluno e inclina lateral-mente a cabeça, enquanto espera ou apoia a resposta com interjeições ou movimentos ântero-posteriores da cabeça.

As configurações afetivas

Estas configurações englobam comportamentos verbais e não verbais de outras configurações e integram comportamentos de conforto, como as mãos nos bolsos ou de apoio na secretária. Podem ter um efeito facilitador da comunicação (sociópetas) ou de dissuasão da vontade de comunicar (sociófugas). As configurações sociópetas compreendem a designação do aluno pelo nome, entoações de incentivo, que implicam frequentemente o emprego do imperfeito e condicional ( “podias” ou “poderias” …) e gestos de convergência ou sincronia interativa (Ferrão Tavares, 2013): inclinação em direção ao aluno, comportamentos em espelho, inclinação lateral da cabeça, olhar, sorriso, gestos reguladores, movimentos circulares dos braços e mãos, sem tensão, movimento de aprovação com a cabeça.

As configurações sociófugas implicam modificações de tom e de altura da voz incluem a inclinação do tronco para trás, o olhar fixo, movimentos tensos, ausência de sorrisos. Frequentemente, os verbos estão no imperativo e é utili-zado o modo interrogativo. “Diz- lá”, “reponde” “Porque não respondes?”

Estas configurações explicam o eventual título deste artigo e o comentá-rio proposto em epígrafe deste capítulo que foi proferido por uma estagiá-ria antes da aula a que eu iria assistir. A atividade pedagógica proposta pela professora era de natureza multicanal (a descrição de imagens, distribuídas em formato puzzle) e os conteúdos eram do seu conhecimento (competência referencial), mas o problema residiu nas configurações sociófugas veiculadas pela professora. O conteúdo foi desqualificado pela relação que a profes-sora estabelecia com os alunos (emprego de imperativo e do imperativo negativo, posturas e gestos de afastamento, altura e tom de voz, ausência de sorriso). Neste caso, como em outras aulas, observei comportamentos de “double bind”, solicitando a professora a intervenção verbal de um aluno

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com enunciado de ordem ou pedido seco de resposta, quando o gesto ou o olhar já tinham encerrado a interação ou quando avaliava positivamente o aluno e a sua atitude e os gestos indiciavam uma opinião negativa.

Quando estas configurações se dirigem sempre aos mesmos alunos, po-dem ter repercussões na disciplina, na participação, no interesse ou no apro-veitamento destes alunos. Pelo contrário, a partilha afetiva torna mais fácil a partilha cognitiva, o querer comunicar.

As configurações – AçõesEsta categoria prende-se com a manipulação de objetos ou de equipa-

mentos. Com o uso das tecnologias, esta categoria tende a sair reforçada e, em muitos casos, substitui as configurações descritas.

O uso do quadro interativo, ou mesmo o uso de PowerPoint levam à execu-ção de ações em detrimento de configurações ilustrativas, raccords e afetivas. Professores e alunos limitam-se, por vezes, a passar os diapositivos, com uma mão no bolso, outra no rato ou no comando, apagando-se na sua apresenta-ção (e na compreensão por parte do público) os gestos de coconstrução dos discursos: a esta supressão de gestos corresponde, frequentemente a supres-são dos articuladores como, por exemplo, “em primeiro lugar”, “a seguir”, “na sequência de”. Dado que a sequência está na apresentação, os alunos não se sentem obrigados a verbalizá-la. Também não recorrem a ilustrativos ou me-tafóricos porque o discurso não precisa de ser construído no momento, logo não há necessidade de procurar a melhor palavra para ilustrar o pensamento. Por outro lado, os alunos que observam também podem não prestar atenção à estrutura da comunicação, nem antecipar o sentido de palavras-chave, sendo atraídos para aspectos acessórios da apresentação. Esta supressão de marcas de estruturação reflete-se, ainda, na tomada de apontamentos (quando es-tes são tomados) e na posterior escrita por tópicos de textos, como constatei em estudo realizado no âmbito de cursos de mestrado (Ferrão Tavares, 2011). Destas observações decorre a constatação seguinte: suportes multicanais nem sempre implicam a multimodalidade.

Sendo a comunicação um processo global ou multimodal, as diferentes componentes verbais e não verbais estão interligadas, pelo que só cons-trangimentos metodológicos ou de clareza de exposição justificam que se equacionem de forma isolada.

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1.3. Dimensão verbal

“Eu agora não explico, os meus alunos descobrem tudo.”

No seminário, abordei a dimensão verbal da comunicação multimodal na perspectiva das línguas nas outras disciplinas do currículo, mostrando, através de exemplos de textos multimodais, as operações cognitivas e dis-cursivas realizadas em matemática, ciências, história e literatura, na linha dos estudos do Conselho da Europa sobre as línguas nas outras disciplinas (Beacco, 2010), Vollmer, 2010). Procurei analisar alguns documentos, levan-do os professores a identificar marcas linguísticas de operações cognitivas e discursivas comuns às diferentes disciplinas: definir, classificar, enumerar, comparar, justificar, representar dados textuais ou materiais, argumentar…

A análise de um corpus composto de extratos de escrita académica per-mitiu uma reflexão sobre questões de modalização, nomeadamente sobre a distinção de Louis Porcher entre o “interessante” e o “demonstrativo” (Ferrão Tavares: 2011, 2016), dado que uma das dificuldades dos estudantes con-siste em distanciarem-se do seu discurso, confundindo demonstração com opinião pessoal.

O comentário em epígrafe, ouvido no decorrer de provas de avaliação de professores, revela a representação negativa dos métodos expositivos por parte dos professores. Ora a exposição, por parte do professor e por parte dos alunos, é uma das atividades comunicativas mais relevantes na aula de português. Se os professores não explicassem, quais seriam os mo-delos dos alunos, sobretudo dos de meios menos favorecidos culturalmen-te? Paradoxalmente, com a utilização de apresentações em PowerPoint, o método expositivo sai reforçado, mas, nesse caso, a representação já não é negativa, dado ser acompanhado de um dispositivo tecnológico.

Como conclusão deste tópico foi sublinhada a necessidade de os pro-fessores criarem, ao longo do ano, situações em que eles próprios e todos os alunos tenham de explicar, contar, descrever, argumentar, prescrever. São modos de discurso que traduzem operações cognitivas comuns a todas as disciplinas escolares e a situações do quotidiano.

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ATAS DAS JORNADAS DE LÍNGUA PORTUGUESA - INVESTIGAÇÃO E ENSINO114

1.4. “Os textos são imagens”

“A sua apresentação é de tipo naperon.”

Ao falar de multimodalidade ou de apresentações multimédia de trabalhos, devo incluir uma breve reflexão sobre a imagem. A imagem pode desempe-nhar diferentes funções: uma função complementar ou de “ancrage” (como referia R. Barthes) - fornecendo elementos que o texto não fornece; uma fun-ção provocadora ou humorística - construindo-se por oposição ao que é dito no texto ou fazer rir o público; uma função narrativa - reforçando o texto, completando-o com elementos da estrutura narrativa; uma função metafórica ou simbólica, sugerindo mais do que mostrando, apelando à experiência do destinatário; uma função estética - pretendendo-se que o destinatário goste ou eduque o gosto, sendo que a função cultural está sempre presente. Nesta perspectiva, ao escolher uma imagem é necessário verificar se esta é gratuita e analisar a sua função na coesão do «texto». Os efeitos naperon (que deram origem ao comentário em epígrafe, proferido por mim, a propósito da apre-sentação de projeto de mestrado com “rendinhas” a “debruar” conteúdo sobre tecnologias), os movimentos acrescentados às apresentações, alguns contra-riando o processo normal de leitura, a profusão de carateres e de cores (efeito catálogo) de muitas apresentações sem terem uma função na coesão do texto só perturbam a comunicação. A imagem reforça ou contraria a coesão de uma apresentação que engloba comportamentos verbais e não verbais.

Uma vez apresentada uma definição seguida de comentários de con-textualização na aula do conceito de multimodalidade, impunha-se propor estratégias multimodais para a aula.

2. Estratégias multimodais de aula de língua-cultura

“Era uma vez… uma gramática em histórias”

As propostas de estratégias para a aula decorrem do enquadramento teórico convocado. No decorrer do seminário dinamizado em Cabo Verde, animei atividades que implicavam o recurso a diferentes sentidos, processos cog-nitivos de natureza diferente e articulada, procurando provocar atitudes de

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receção e empatia por parte dos alunos (o que não invalida o esforço, sendo muitas vezes este a razão para a adesão), que pudessem ser transferidos para a prática social das línguas e que contribuissem para o desenvolvimen-to de uma cultura de valorização das diferentes expressões e das diferentes culturas. Sendo a língua um meio para a construção do conhecimento, mui-tas das atividades propostas situam-se, como referido anteriormente, numa perspectiva interdisciplinar e multimodal.

Assim, proponho que o mesmo conteúdo seja declinado em formatos diversificados. O professor pode apresentar parte de um conteúdo de forma tradicional, só com exposição oral, com o formato explicativo, narrativo, re-correndo a exemplos… (com entoações diferentes, por exemplo, recorrendo ao quadro ou não, outro com música clássica ou jazz, ou música local, apre-sentando reproduções de pintores… Os alunos podem ouvir simplesmente, ou tirar apontamentos, escrever palavras-chave em post it que vão reagrupar antes da elaboração de resumos, deslocar-se na sala, fazer desenhos (como acontece a muitas pessoas quando assistem a conferências), desempenhar a tarefa comunicativa que lhes é pedida através de cartões que são distri-buídos no princípio da actividade (escolher o momento para pedir para es-clarecer dúvida, pedir para repetir, pedir desculpa de interromper para propor comentários) …. No final, os alunos justificam, por exemplo, os desenhos, ou referem as palavras que ouviram enquanto se deslocavam, o conteúdo dito pelo professor ou as impressões provocadas pela música ou pelas reprodu-ções, ou pela voz do professor… Trata-se de declinações diferentes do mesmo conteúdo (ou similar) propostas aos diferentes grupos, devendo as apresenta-ções ser de tipo diferenciado. Utiliza-se o princípio de information gap, dado que os alunos não dispõem sempre de toda a informação (nem o professor).

Assim, um grupo apresenta um trabalho sobre um autor, um tema de ciências, de geografia, de história… um caso tratado na imprensa; um outro grupo simula uma entrevista; um outro constrói uma narrativa; um outro apresenta uma explicação “tradicional”, recorrendo ao quadro, outro apre-senta um PowerPoint. . . As apresentações podem ter tempos diferentes. É evidente que todos os grupos deverão declinar conteúdos recorrendo a dife-rentes modos de organização dos discurso ao longo do ano.

A frase em epígrafe foi extraída do título da gramática Era uma vez uma gramática…em histórias de que sou co-autora (Ferrão Tavares, Fróis 1997)

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que serviu para animar algumas sessões de trabalho em Cabo Verde. Nesta gramática “multimodal” para o primeiro ciclo, a partir de histórias tradicio-nais proponho, com Josette Fróis, uma conceção de gramática do sentido ou nocional (ação, tempo, espaço, qualificação…), em articulação com os modos de organização do discurso (explicar, contar, descrever, argumentar e pres-crever), a partir de contos tradicionais, na linha das orientações dos estu-dos do Conselho da Europa para as línguas nas outras disciplinas (Beacco, Wollmer (2015). A construção de sequências didáticas deste tipo foi desen-volvida em (Ferrão Tavares e Barbeiro, 2011, Ferrão Tavares et al., 2014).

Como referi, a deslocalização da aula é uma consequência da multimo-dalidade da comunicação hoje. A continuação deste texto, desta “história” didáctica que foi construída e vivida por mim e pelos colegas e estudantes presentes, em novembro de 2015, na cidade da Praia, tem continuação na Universidade de Pasárgada3.

Bibliografia

Beacco, J.- C., Coste, D. van de Ven, P., Vollmer H (2015) Langue et matières scolaires. Dimensions linguistiques de la construction des connaissan-ces dans les curriculums. Recuperado em 12/6/2016, de http://www.coe.int/t/dg4/linguistic/Source/Handbook-Scol_final_FR.pdf

Cosnier, J. (2007). “  A son tour, voilà que Psyché cause  “. Actualités Psychologiques, 19. Recuperado em 10 de agosto, 2016, de http://icar.univ-lyon2.fr/membres/jcosnier/publications.htm

Ferrao Tavares, C. (2011). Abordagem acional e competência comunicati-va multimodal: estaleiro de apresentações de trabalhos académicos. Intercompreensão, 16, 85-118.

Ferrão Tavares, C., Fróis, J. (1997). Era uma vez… uma gramática em histórias. Lisboa: Plátano Editora.

Ferrão Tavares, C. (2013). “ D’hier à aujourd’hui (et demain ?)  : un parcours de recherche en didactologie des langues-cultures sur la communica-tion “. Synergies Portugal, n.º 1, pp. 91-117. Recuperado em 10/7/2016, em http://gerflint.fr/Base/Portugal1/Article5Tavares.pdf

3 http://universidadedepasargada.blogspot.pt/

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ATAS DAS JORNADAS DE LÍNGUA PORTUGUESA - INVESTIGAÇÃO E ENSINO 117

Ferrão Tavares,C. (2016).L’intéressant et le démonstratif: à propos des zo-nes de proximité des communications médiatiques et académiques Synergies Europe n.° 10 - 2015 p. 121-139 Recuperado em 10/7/2016, em http://gerflint.fr/Base/Europe10/ferrao_tavares.pdf

Ferrão Tavares, C., Barbeiro, L.F. (2011). Implicações das TIC no ensino da língua. PNEP. Ministério da Educação. Recuperado em 12/6/2016, de http://www.dge.mec.pt/sites/default/files/Basico/Documentos/implica-coes_tic_pnep.pdf

Ferrão TAVARES, C, SILVA, J. da, SILVA, M. e – La séquence didactique!... Du “Alors” d’une histoire qui ne dit rien… au “Vraiment?”d’un récit (didac-tologique) bien (dé)terminé Intercâmbio, 2.ª série, vol. 7, 2014, pp. 49-73 Recuperado em 28/8/2016 de http://ler.letras.up.pt/uploads/fichei-ros/13062.pdf

Vollmer, J. H. (2010). Eléments pour une description des compétences lin-guistiques en langue de scolarisation. Plateforme de ressources et de références pour l’éducation plurilingue et interculturelle. Conseil de l’Europe. Recuperado em 13/6/2016, de http://www.coe.int/t/dg4/lin-guistic/Source/Source2010_ForumGeneva/1-LIS-sciences2010_fr.pdf

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MATERIAIS INTERATIVOS PARA A APRENDIZAGEM DA LÍNGUA PORTUGUESA

Rui VazCamões, Instituto da Cooperação e da Língua

[email protected]

Resumo

A presente comunicação pretende contribuir para a reflexão sobre a produ-ção de materiais interativos para a aprendizagem da língua portuguesa, com foco em português língua estrangeira/segunda, em particular na compe-tência da leitura. Assim, começaremos por caracterizar o conceito de mate-riais interativos, considerando, então, as ferramentas para a sua criação e as aprendizagens de PLE/S que podem potenciar. Finalmente, focalizaremos a nossa análise sobre a competência de leitura, procurando responder à ques-tão da seleção de textos adequados ao nível de proficiência linguística dos alunos, apresentando uma ferramenta de classificação automática de textos para suporte desta seleção, desenvolvida pelo grupo NLX e o Camões, I.P.

Palavras-chave: Materiais interativos, Português Língua Estrangeira/Segunda, Leitura.

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1. Materiais interativos

O conceito de “interatividade” é um conceito com pouca capacidade analítica e que é generalizadamente utilizado como “hype”, em que do desporto aos mapas, tudo é interativo. A consulta de um dicionário remeterá esta definição para qualquer situação ou objeto em que exista “interação ou interatividade”; por sua vez, interatividade é definida em termos de “comunicação recíproca” ou “possibilidade de interação”, a qual remete para “ação recíproca”.

Desse ponto de vista, um livro, por exemplo, poderia encaixar na defini-ção de material interativo, na medida em que se estabelece uma comunica-ção recíproca e uma possibilidade de interação e de comunicação nos dois sentidos, que transforma e altera quer o leitor quer o livro: através da leitura, o leitor é transformado; através da escrita (sobre, à margem), o leitor trans-forma o objeto. Passado com anotações ao leitor seguinte, o livro anotado é um objeto diferente, que permitirá novas interações.

Não é propriamente nesta tecnologia impressa com mais de 600 anos que se pensa quando se fala de materiais interativos, mas num suporte tec-nológico de natureza informática, que suporte a troca de informação en-tre utilizador e sistema, “através de dados e comandos”. Assim, em contexto educativo, vem-se utilizando o conceito de objetos de aprendizagem (OA), entendidos como “conjuntos de materiais ou recursos criados para apoiar um determinado contexto de ensino e aprendizagem, que podem ser reuti-lizados e os seus objetivos redefinidos” (Downes, 2007).

Nesta definição de OA a ênfase é colocada, não no suporte em si, mas na sua funcionalidade, enquanto um elemento construído para suporte a objeti-vos de aprendizagem específicos; a inclusão do adjetivo “digital” (objetos de aprendizagem digital – OAD), permite especificar a natureza do seu suporte.

De acordo com Downes (2007), os OAD deverão apresentar as seguintes características:

“Reutilização - Conteúdos de aprendizagem divididos em pequenas unidades de ensino, passíveis de serem agrupados e reagrupados em vários cursos.

Compatibilidade - Unidades de ensino compatíveis, independentemen-te do seu criador ou do sistema de gestão de aprendizagem utilizado.

Durabilidade - Unidades de ensino que resistem à evolução e à apre-sentação de novas tecnologias, sem se tornarem obsoletas.

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Acessibilidade - Conteúdo de aprendizagem que está disponível a qualquer hora e em qualquer lugar, podendo ser encontrado e reutili-zado através de diferentes redes.“

Na linha desta caracterização, enquadramos atualmente como OAD, tal como quando utilizamos a designação de materiais interativos em contexto educativo, unidades como vídeos, podcasts, cartoons e histórias digitais, pági-nas Web, blogues e Wikis, entre outros.

Para nos referirmos ao ambiente atual de produção e utilização dos materiais interativos/OAD, convocaremos agora o conceito de web 2.0, en-tendido como a tendência de utilização da Internet e alterações ocorridas ao nível das tecnologias, que têm vindo a ampliar a oferta de ferramentas, essencialmente gratuitas, as quais permitem desenvolver a criatividade, tra-balhar colaborativamente e partilhar informação.

Neste contexto, o consumidor tem o potencial de se tornar também em produtor, na medida em que passa a existir uma maior facilidade de intera-gir sobre o objeto, alterando-o (e alterando-se, numa comunicação recípro-ca), complementado com a partilha desse objeto com a comunidade para sua reutilização.

2. Quais as melhores ferramentas para criação de materiais interativos na web 2.0?

Face a um panorama em que se passou de uma situação anterior à web 2.0 de gestão da escassez de ferramentas proprietárias especializadas – em que, por exemplo, a produção de um vídeo implicava a aquisição de software e hardware, assim como o desenvolvimento de competências específicas para os dominar – para uma abundância de ferramentas gratuitas de utilização simplificada, a questão colocada torna-se relevante.

Enquanto num cenário pré web 2.0 o investimento pessoal para a utiliza-ção de uma determinada ferramenta, mesmo sendo grande, “rendia” a médio/longo prazo, pela estabilidade do sistema, na web 2.0 verifica-se um ciclo de vida muito mais curto das ferramentas que são lançadas, compensado por uma curva de aprendizagem para a sua utilização igualmente mais curta.

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ATAS DAS JORNADAS DE LÍNGUA PORTUGUESA - INVESTIGAÇÃO E ENSINO 121

Assim, assiste-se ao surgimento constante de novas ferramentas, dis-ponibilizando novas funcionalidades e/ou reutilizando funcionalidade já existentes noutras ferramentas, com uma facilidade de utilização crescente. Contudo, pelo facto de estas ferramentas serem baseadas na web, não pro-prietárias, gratuitas, o controlo por parte do utilizador no que diz respeito ao conteúdo produzido e à disponibilidade da própria aplicação é menor: as licenças de utilização habitualmente transferem para a empresa promotora direitos de utilização do conteúdo criado (o que não acontece com as fer-ramentas offline, por exemplo); a empresa pode terminar a disponibilização ou alterar os seus termos de utilização (passando-a a paga, por exemplo), comprometendo a utilização do conteúdo criado; a empresa pode simples-mente desaparecer do mercado.

Esta situação pode ter um efeito contraproducente no que respeita à utilização em ambiente educativo: um investimento de um docente, por exemplo, numa determinada ferramenta, implicando a criação ou adapta-ção de OAD/materiais interativos, pode revelar-se um beco sem saída, se a ferramenta deixar de estar disponível passado algum tempo ou as suas condições de utilização se alterarem significativamente. Se olharmos para o panorama da web 2.0 há 10 anos atrás, verificamos que grande parte das aplicações simplesmente desapareceu:

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Figura 1: Web 2.0 - 10 anos depois

Olhando para a situação atual, será possível identificar as aplicações que se manterão daqui a mais 10 anos, que justifiquem um investimento pessoal na sua exploração e utilização? Não sendo este o lugar apropriado para futurologia, poderemos antes considerar os critérios que deverão orientar a escolha de ferramentas em ambiente educativo, seguindo a proposta de Gonçalves (2015):

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ATAS DAS JORNADAS DE LÍNGUA PORTUGUESA - INVESTIGAÇÃO E ENSINO 123

(i) gratuita ou open source, reduzindo ao mínimo o custo de aquisição e utilização; (ii) curva de aprendizagem curta, reduzindo o tempo para utili-zação plena da ferramenta; (iii) usável por professores de áreas não tecno-lógicas, habitualmente com menos competências específicas de utilização de ferramentas informáticas; (iv) grau de complexidade baixo, tornando-a de utilização mais amigável quer para professores quer para alunos; (v) fle-xibilidade e criatividade, apesar da sua simplicidade de utilização; (vi) ade-quada a diferentes metodologias pedagógicas, colocando assim nas mãos dos professores as decisões pedagógicas da sua utilização; (vii) reutilização, rentabilizando o investimento na sua criação; (viii) interoperabilidade, per-mitindo a sua utilização em diferentes plataformas; (ix) adequada ao design do contexto de aprendizagem, evitando condicionar o contexto definido pelo professor pela sua natureza.

Tendo sempre em vista a criação de objetos com qualidade relevante, a ponderação dos critérios enunciados poderá ajudar o professor a identificar ferramentas que se adequem às suas características pessoais e ao seu con-texto de ensino.

Uma abordagem complementar passará por abordar a questão não por ferramentas, mas por categorias de ferramentas, permitindo ao professor criar o seu próprio portfolio de competências digitais, no qual o critério mais relevante são os objetivos de aprendizagem que pretende potenciar pelo uso das ferramentas e não o domínio das ferramentas em si.

Assim, poderíamos considerar categorias de ferramentas como: editores de imagens, editores de vídeo, editores de áudio, espaços Web, comunicação síncrona e assíncrona, apresentações, mapas conceptuais, inquéritos, etc. Cabe ao professor um papel ativo de explorar e rever ferramentas, tendo em vista diversificar a abordagem pedagógica e decidir por si se são adequadas e/ou apropriadas para os seus alunos e para o seu contexto de ensino em particu-lar. As ferramentas deverão servir apenas para apoiar os objetivos de ensino e de aprendizagem, não devendo ser consideradas como um fim em si mesmas.

Esta é também a linha proposta pelo projeto o TACCLE2 - Teachers’ Aids on Creating Content for Learning Environments (Daniels, 2014), ao apresen-tar uma abordagem por competências, sugerindo ferramentas como supor-te para atividades com potencial para enriquecer as aprendizagens. Assim, para a comunicação em língua estrangeira, por exemplo, genericamente

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definida como a “capacidade de compreender, expressar e interpretar con-ceitos, pensamentos, sentimentos, factos e opiniões tanto oralmente como por escrito (escutar, falar, ler e escrever) em diversas situações da vida social e cultural (na educação e formação, no trabalho, em casa e nos tempos li-vres), consoante as necessidades ou os interesses de cada um” e requerendo igualmente “aptidões como a mediação e a compreensão intercultural”, são propostas ferramentas de suporte, ao desenvolvimento de conhecimentos, capacidades e atitudes de atividades, em dois níveis de complexidade:

Figura 2 - TACCLE2 – Comunicação em Língua Estrangeira

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Nas propostas apresentadas pelo TACCLE2, também para língua materna e outras competências, encontramos naturalmente ferramentas desconheci-das, algumas que se adaptarão mais a uma língua e menos ao português, ou mesmo ferramentas que, pelo curto ciclo de vida já referido, podem mesmo já não existir. A vantagem desta abordagem, de qualquer maneira, é colocar em evidência os conhecimentos, capacidades e atitudes que se pretende desenvolver no âmbito de cada competência, sugerindo atividades que uti-lizam a tecnologia e surgindo, só então, sugestões de ferramentas para as apoiar, o que deixa, assim, maior margem para que outras ferramentas pos-sam ter esse papel, face a diferentes contextos.

3. Leitura

Centremo-nos agora especificamente na competência de leitura, para consi-derarmos o aspeto crítico de a seleção de textos para a criação de materiais. Das muitas questões que serão certamente relevantes para este processo, abordaremos de seguida três: Quais são os parâmetros contextuais chave (textuais) que se deve ter em conta na seleção de textos? Qual a complexi-dade desses parâmetros ao longo dos níveis de proficiência linguística? Que ferramentas para assistir essa seleção?

Estas questões foram objeto de reflexão no âmbito da produção de con-teúdos pelo Centro Virtual Camões e, em encomenda e trabalho conjun-to com o centro de investigação NLX-Grupo de Fala e Linguagem Natural do Departamento de Informática da Universidade de Lisboa, levaram ao desenvolvimento de um serviço online (http://cvc.instituto-camoes.pt/tec-nologias-da-lingua/classificador-lx-cefr.html) para análise quantitativa de diversas métricas linguísticas, baseado em ferramentas de processamento automático de texto, tendo em vista o apoio da classificação de textos de acordo com os níveis de proficiência linguística do Quadro Europeu Comum de Referência para as línguas (QECR).

A atribuição de um texto a um determinado nível linguístico depende de muitos fatores diferentes; nesta aplicação centrámo-nos na inteligibilidade, enquanto medida do grau de dificuldade de um texto.

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Como resposta à primeira questão, parâmetros contextuais chave (tex-tuais) que se deve ter em conta na seleção de textos, tomaram-se em con-sideração vários parâmetros relevantes para o processamento cognitivo da leitura, nomeadamente ao nível da complexidade lexical (descodificação), complexidade estrutural (parsing sintático) e coesão (e coerência: constru-ção de significado).

Ao nível da complexidade lexical, partiu-se de dois princípios (do mais ao menos frequente; do sentido literal e factual ao abstrato e polissémico) para determinar métricas relevantes para a determinação dos níveis de cada texto: (i) Tamanho médio das palavras (em sílabas); (ii) Frequência de pala-vras; (iii) Densidade lexical.

Ao nível da complexidade estruturas, partiu-se igualmente de dois prin-cípios (das frases simples às complexas; das frases curtas às longas) para definir três métricas: (i) Tamanho da frase (em palavras); (ii) Legibilidade (índice de Flesch: média de palavras vs média de sílabas por palavra); (iii) Constituintes de nível elevado (tipo de orações, por ex.).

Ao nível da coesão, entendida como propriedade do texto (características explícitas, palavras, frases ou frases que guiam o leitor na interpretação das ideias do texto, na ligação das ideias a outras ideias e na ligação das ideias a unidades de alto nível global) e da coerência, entendida como um fenómeno que resulta da interação entre fatores macroestruturais e microestruturais existentes no texto, graças à criatividade, ao trabalho oficinal e à intenciona-lidade do autor e a capacidade interpretativa do receptor/leitor (Dicionário Terminológico), não foi possível, nesta fase de desenvolvimento da aplica-ção, introduzir métricas.

Após estudo prévio, foram identificadas quatro métricas com maior po-der de predição para a finalidade pretendida, uma métrica para cada um de três níveis gramaticais, acrescida de outra que combina fatores das diferen-tes dimensões, apresentadas graficamente:

v. Dimensão lexical: densidade lexical na proporção de nomes;vi. Dimensão da palavra: número médio de sílabas por palavras;vii. Dimensão da frase: número médio de palavras por frase;viii. Combinado: índice de Flesch Reading Ease

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Figura 3 - Gráfico de resultados do Classificador LC-CEFR

Adicionalmente, esta ferramenta também disponibiliza métricas secundá-rias, que podem apoiar o processo de decisão, que incluem ocorrências de letras, média de letras por palavra, ocorrências de silaba, ocorrências de pa-lavras, média de palavras por frase, proporção de palavras sem repetição, número de frases, número de orações simples, passivas, subordinadas ou coordenadas, densidade lexical e frequência de palavras. Apesar de estes resultados secundários não estarem projetados em nenhuma escala, são im-portantes para caracterizar objetivamente dimensões linguísticas dos tex-tos relevantes para a ponderação pelos utilizadores.

Para o treino do sistema recorreu-se a um corpus formado por 125 textos, utilizados previamente em provas de exames realizadas pelo Camões, I.P., que foram reclassificados por classificadores humanos quanto ao seu nível de proficiência linguística (A1 a C1). Comprovando-se a dificuldade da tarefa de classificação (apenas um texto recebeu uma classificação unânime, en-quanto 17,27% receberam a mesma classificação por pelo menos 4 anotado-res e 67,27% por pelo menos 3 anotadores), o corpus inicial foi reclassificado e tomou-se em consideração os textos com maiores valores de concordân-cia, o que resultou numa melhoria substancial de três das métricas.

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Estes resultados confirmam que a tarefa de classificar textos de acordo com níveis de proficiência do QECR é uma tarefa complexa e difícil, mesmo para peritos. Esta conclusão parece ser confirmada por Curto (2014), cujas conclusões de dissertação de mestrado referem, entre outros aspetos, a comprovação da “dificuldade elevada da tarefa de anotação de textos escri-tos em português europeu segundo a escala de cinco níveis de proficiência do português como segunda língua, definida pelo QuaREPE (A1, A2, B1, B2 e C1), e a existência de uma fraca concordância entre especialistas na reali-zação desta tarefa.”

A ferramenta “Classificador CEFR” desenvolvida pelo Grupo NLX por en-comenda e em colaboração com o Camões, I.P., representa um primeiro con-tributo para fazer avançar esta área de investigação, carecendo naturalmen-te de aprofundamento e da introdução de novos parâmetros.

As métricas disponibilizadas têm por objetivo apoiar os utilizadores no seu processo de decisão, que deverá ter em consideração muitos outros fa-tores relevantes para apreciação da complexidade do texto, não se desti-nando, portanto a ser usadas em substituição das decisões que visam apoiar.

Referências

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Branco, António, João Rodrigues, Francisco Costa, João Ricardo Silva e Rui Vaz. (2014).  “Rolling out Text Categorization for Language Learning Assessment supported by Language Technology”.  Lecture Notes in Artificial Intelligence, 8775. Berlin: Springer, pp. 256-261. Recuperado em 18 de agosto de 2015 em: http://www.di.fc.ul.pt/~ahb/pubs/2014Bran-coRodriguesCostaEtAl.pdf

Curto, Pedro. (2014). Classificador de textos para o ensino de português como segunda língua. Dissertação para obtenção do Grau de Mestre em Engenharia Informática e de Computadores, não publicada. Lisboa: Instituto Superior Técnico. Recuperado em 18 de agosto de 2015 em: http://www.inesc-id.pt/pt/indicadores/Ficheiros/9266.pdf

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Daniels, N. & Hendrickx, J. (Eds.). 2014.  TACCLE2: tecnologias digitais no desenvolvimento de competências chave: propostas de atividades para professores e educadores. Brussels: Go! Onderwijs van de Vlaamse Gemeenschap. Recuperado em 18 de agosto de 2015 em: https://www.academia.edu/22387774/Tecnologias_Digitais_no_Desenvolvimento_de_Compet%C3%AAncias_Chave_propostas_de_atividades_para_profes-sores_e_educadores

Dicionário da Língua Portuguesa com Acordo Ortográfico [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2016. Recuperado em 18 de agosto de 2015 em: http://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/interativo

Dicionário Terminológico [em linha]. Recuperado em 18 de agosto de 2015 em: http://dt.dge.mec.pt/

Downes, S. 2007. “Models for Sustainable Open Educational Resources”. Journal of Knowledge and Learning Objects, 3, pp. 29-44.

Gonçalves, Vítor. 2015. “As plataformas colaborativas e de aprendizagem e as ferramentas de autoria de conteúdos educativos: estudo de caso num Curso de Formação Pedagógica Inicial de Formadores”. INNODOCT: Strategies for Education in a New Context. Valencia: Universitat Politècnica de València. pp. 871-883. Recuperado em 18 de agosto de 2015 em: http://ocs.editorial.upv.es/index.php/INNODOCT/INN14/paper/viewFile/124/95

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LITERATURA E ENSINO

José Esteves Rei Universidade de Cabo Verde; Cátedra Eugénio Tavares de Língua Portuguesa

AS MINHAS ASAS BRANCASAlmeida Garrett

Eu tinha umas asas brancas, / Asas que um anjo me deu, / Que, em me eu cansando da terra, / Batia-as, voava ao céu. // […] Veio a cobiça da terra, / Vinha para me tentar; […] / -Veio a ambição, co’as grandezas, / Vinham para m’as cortar, […] / Por nenhum preço as quis dar. […] // Mas uma noite sem lua / Que eu contemplava as estrelas, […] / Vi entre a névoa da terra, / Outra luz mais bela que elas. […] // Cegou-me essa luz funesta / De enfeitiçados amores... […] // -Tudo perdi n’essa hora / […] / E as minhas asas brancas, / Asas que um anjo me deu, / Pena a pena me caíram... / Nunca mais voei ao céu.

1. O texto literário e seus agentes

Poucos alunos e professores de Português terão uma ideia do que tem re-presentado o texto literário na escola. Alguém afirmará até que o seu espaço curricular seria mais útil se fosse atribuído às ciências, à tecnologia ou ao desporto, áreas disciplinares mais visíveis e reconhecidas que a literatura.

O século XIX, com a conquista da democracia moderna, leva o texto lite-rário a cada cidadão. Esse facto decorre de uma matriz social cujos pilares são: i) a criação da escola, primária e liceu liberal napoleónico, mais tarde, escola de massas; e ii) o surgimento da sociedade laica apoiada na parti-lha de um ideal de autenticidade humana. Animadores e missionários, para

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alguns, dessas instituições “democráticas” são, respetivamente, o professor, em especial o primário, e o escritor / intelectual / psicagogo ou condutor de massas, segundo Platão, na polis dos homens. O texto literário é o ins-trumento de ação e veículo da mensagem, segundo a descrição de Victor Hugo em “Fonction du poète”, de densidade teórica profunda e prática social surpreendente para a época (1820). Por esse doutrinário seguiram autores como Garrett, Herculano, Camilo, Eça de Queirós e Pessoa como por Eugénio Tavares, Pedro Cardoso, Baltazar Lopes e os Claridosos, ou Portugal, ou em Cabo Verde, ou em ambos os espaços.

2. Da função do “poeta” aos programas escolares: o texto literário

Victor Hugo

[…] O poeta, em dias ímpios, / Vem preparar melhores dias. / Ele é o homem das utopias. / Os pés aqui, os olhos além, / É ele que, em todas as mentes, / A todo o momento, iguala os profetas. / Na sua mão, onde tudo pode abarcar, / Deve, que se insulte ou se louve, / Como uma tocha que ele sacode, / Fazer flamejar o futuro! […]Povos! Escutai o poeta! / Escutai o sonhador sagrado! / Na vossa noi-te, sem ele, completa, / Só ele tem a fronte iluminada. / Dos tempos futuros, furando as sombras, / Só ele distingue nos seus flancos / A se-mente que não nasceu. / Homem, ele é terno como uma mulher, / Deus fala em voz baixa à sua alma / Como às floretas e como às águas. […]Ele resplandece! Ele lança sua chama / Sobre a verdade terna! / Ele fá-la resplandecer sobre a alma / Como uma maravilhosa claridade. / Ele inunda com a sua luz / Cidade e deserto, Louvre e cabana, / E as planícies e as colinas; / A todos, do alto, ele a revela; / Dado que a poesia é a estrela / Que leva a Deus, reis e pastores.

(Victor Hugo, (1864: 207-221). Oeuvres. Complètes. Poésie. T. IV, “Fonction du poète”. Paris: Alexandre Houssiau)

Vejamos o enquadramento escolar do texto literário. A escola nasceu na Grécia, quando o cidadão adulto necessitou de um dado saber que não possuía. Então, foi junto de quem o detinha para com ele o aprender e aceder a uma nova capacidade. Esta imagem da escola (termo, conceito, local e função social) fixou-se no imaginário milenar, colada desde cedo às crianças e aos jovens.

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O termo “literatura” aparece na língua portuguesa, em 1510, nas Actas dos Conselhos da Universidade de Coimbra, significando o saber sobre a es-crita e a leitura, a erudição, a instrução e a gramática. Mais tarde, reporta-se a um conjunto de textos, seculares e pagãos, opostos aos denominados tex-tos sagrados ou a “scriptura” (Silva, 1986:1-9). A partir do século XVIII, passa a significar um conhecimento das obras do espírito, um enfarinhamento em história, poesia, eloquência e crítica.

O século seguinte viu nascer a disciplina de Português, em 1836, com o governo liberal de Passos Manuel1, ao criar o liceu, que se foi alargando ao espaço nacional europeu e às colónias. Em Cabo Verde surge o seu primeiro liceu a 7 de janeiro de 1861, na Praia (Neves, 2008: 71-72). O Governador-Geral da Província saudava a iniciativa, sublinhando que com ele “se estavam a criar condições para a formação intelectual do homem” e que “o homem dotado de (...) instrução se tornava em parte superior à própria natureza, pois que lhe era lícito levantar uma ponta do espesso véu que oculta seus mistérios” (id. ibid.). A esse discurso, responde o Administrador da Câmara da Praia: “Esta instituição que em todos os países cultos tem derramado a instrução pelo povo, é destinada a propagá-la na mocidade cabo-verdiana […]” (id.. ibid.).

Os programas liceais, fixados com a reforma de Jaime Moniz, em 1895, mantêm-se no essencial, até abril de 1974. Entre as finalidades atribuídas ao texto literário, na aula de Português – na qual “O texto será o centro de todos os exercícios” (programas de 1936), encontramos as seguintes: - 1895, “o desenvolvimento do espírito”; - 1918, “o desenvolvimento por meio do sentimento estético do aluno, da actividade moral” e “a formação moral e intelectual do aluno”; - 1930, “a cultura humanística” e “a cultura do espí-rito pelo alargamento suavemente progressivo e harmónico dos respecti-vos elementos da formação”; - 1947, “a educação do aluno na inteligência e uso correcto da linguagem e o desenvolvimento da recta formação da sua personalidade de homem”; - 1948, “o desenvolvimento harmónico e gradual das faculdades do aluno e a obtenção […] de um certo grau de cultura”; “o aperfeiçoamento das faculdades intelectuais, a formação do carácter e o fortalecimento das virtudes morais e cívicas”.

1 Decreto de 17 de novembro de 1936.

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A aula de Português, do regime liberal, é herdeira da aula de Retórica do Antigo Regime, moldada pelas “Instruções aos Professores de Retórica” de 1759, emanadas da reforma pombalina. Entre as medidas de grande alcance aí presentes, temos a “a instituição de cursos regulares de Retórica em quase todas as cidades e vilas do reino”, tornando a sua frequência indispensável para a entrada na Universidade. O apoio à aprendizagem dos conceitos era o livro Instituições Oratórias de Quintiliano, adaptado por Rollin, em 1715. Observemos a sua importância:

Não há estudo mais útil que o da Retórica […]. Ela ensina a bem falar […] ordena os pensamentos, a sua distribuição e ornato. E, com isso, ensina todos os meios e artifícios para persuadir os ânimos e atrair as vontades. É, pois, a Retórica a arte mais necessária no comércio dos homens, no púlpito, na advocacia […] nos discursos familiares, nos negócios públicos, nas disputas, em toda a ocasião em que se trata com os homens […].

3. Os primórdios da tríade: literatura – ensino – sociedade

Os 200 anos anteriores assistiram a uma universalidade educativa, a partir do “Ratio Studiorum” dos padres jesuítas, cuja versão definitiva levou cin-quenta anos a alcançar, e destinada às seis centenas de colégios, espalhados pelo mundo, até ao século XVIII. Trata-se de um “código de ensino”, cujo “alvo era, tornar mais homem” ou “a formação moral”, “filosófica” e “literária”, atra-vés da “cultura da inteligência”, como refere o Padre Leonel Franca na edição de 1952 (: 5, 81 e 88-90).

Este primeiro monumento educativo dá corpo curricular e didático à expressão ao ideário veiculado em dois livros de referência, à época. São o O Cortesão, de Baltasar Castiglione e O Príncipe, de Maquiavel. Ambos decorrem da necessidade de formação do homem novo, indispensável ao emergente estado moderno e à governação. Por outro lado, o homem do Renascimento vê-se fustigado por uma série de experiências, viagens, in-tercâmbios culturais, na Europa e fora dela, envolve-se em grupos e clubes de elites à procura apaixonada de “certezas religiosas e intelectuais, que conduzem a uma renovação espiritual de que saem o Humanismo, as refor-

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mas religiosas, a Renascença” (Corvisier, 1977 III: 25). Reflexo e consequência desse contexto histórico é a obra de Luís Vaz de Camões, Os Lusíadas – ou a visão artística e criativa da realidade histórica da época, que vários escrito-res europeus se disponibilizaram “para cantar”, oferecendo-se ao Rei portu-guês. O poema convoca, as partes do novo mundo, até então desconhecido: revelando a unidade que Pessoa celebraria no “Infante”. Vejamos:

“E vós, ó bem nascida segurança / da Lusitana antiga liberdade, / E não menos certíssima esperança / De aumento da pequena Cristandade; […] // Vós, poderoso Rei, cujo alto Império / O Sol logo em nascendo, vê primeiro; / vê-o também no meio do Hemisfério,/ E, quando dece, o deixa derradeiro; // Inclinai por um pouco a majestade, / […] vereis um novo exemplo / De amor dos pátrios feitos valerosos, / Em versos devulgado numerosos. // […] vereis o nome engrandecido / Daqueles de quem sois senhor superno, / E vereis qual é mais excelente, / Se ser do mundo Rei, se de tal gente.” (Os Lusíadas, I, 6-11).

A mesma unidade se observa no canto pessoano (“Infante”), quatro séculos depois:

Deus quer, o homem sonha, a obra nasce. /Deus quis que a terra fosse toda uma, / Que o mar unisse, já não separasse. / Sagrou-te, e foste des-vendando a espuma. // […] E viu-se a terra inteira, de repente, / Surgir, redonda, do azul profundo. ("Infante", Fernando Pessoa. In Mensagem).

O renascimento foi um tempo áureo, também, para o texto literário pela des-coberta dos clássicos greco-romanos e renascentistas, que o século XIX viria a consagrar nas “literaturas nacionais”, ao nascerem as “nações modernas”.

Todavia, a matriz didática do texto literário foi criada quinze séculos an-tes, por Plutarco (46-126), com a sua obra, “Como devem os jovens ouvir a leitura dos poetas”. Eis alguns elementos do sumário:

1 – Leitura dos poetas na juventude. Suas vantagens; seus perigos. Precauções a tomar para que essa leitura não tenha funestas conse-quências. […]4 – Lições que dão os poetas. Maneira de interpretar as suas lições. 5 – É importante estudar bem o sentido das expressões. 6 – Dupla significação de vários termos. […] 8 – Alertas para julgar os homens e as ações. 9 – Mesmos alertas para julgar os costumes. […]. (Plutarque, 1870).

A Retórica visava, milenarmente, a formação do indivíduo, ator, político ou governador da polis. Todavia, a literatura, o texto literário e a aula de

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Português, decorrente do liberalismo, visavam a educação do povo, segundo a matriz romântica de V. Hugo, vista atrás. Ora o mérito de Plutarco está em criar um campo reflexivo sobre a realidade (social) do “texto literário” e a teorização metodológica de práticas educativas, a partir dele. Essa teoriza-ção sobre o ensino é equivalente àquela de Aristóteles havia sobre a natu-reza e estrutura do mesmo texto literário na Poética.

Registemos três momentos dessas práticas pedagógicas, gregas e roma-nas, na escola e na sociedade.

1. O uso dos textos homéricos como lastro da educação na Grécia Antiga, na escola e fora dela. Era o seu valor moral, histórico e lin-guístico, mas, sobretudo, geográfico e estético-artístico, configurando “uma formação”, que justificava esse uso.2

2. Em Roma, o surgimento e a função social da literatura e seus textos deveram-se ao pedido de Augusto a Mecenas e Messala para fazerem de suas mansões círculos de “poetas” que produzissem textos para a escola romana nascente, indispensável para a manutenção do império:

Virgílio, dedicando-se à composição da Eneida - “uma soma das ideias, das crenças e das tradições romanas” (E. Albertini, LÉmpire Romain, Paris, Librairie Félix Alcan, 1929); Horácio, combinando nas Cartas “a moral dos camponeses com o ensino dos filósofos” (idem, ibid.), e desenvolvendo nas Odes temas nacionais em formas importadas do lirismo helénico; Ovídio, empenhando-se, “conforme desejo do Imperador, em celebrar e poetizar o passado de Roma” (idem, ibid.); Tito Lívio, que escreve a obra mais significativa da época, ao tratar historicamente o percurso de Roma desde o início até ao reino de Augusto. (Rei, 1998: 32).

3. O uso do texto literário como recurso pedagógico na Grécia Antiga é observável, ainda, na divulgação do teatro, nomeadamente, a tragédia com a função catártica que lhe vai associada. Através da História, este tipo de obra e do sentimento dela decorrente serão apreciados por públicos diversos, como os dos autos medievais, das tragédias clássi-cas renascentistas e do drama romântico, iniciado por V. Hugo.

2 Não avançamos muito nesta prática, como reconhece a escritora, Agustina Bessa Luís, quan-do em 5 de Fevereiro de 1997, na Universidade de Trás-os-Montes afirmava: “A formação do homem é feita com base em textos. Se esses forem os meus textos, fico muito feliz” (citação de memória). A autora de A Sibila respondia a uma pergunta na qual se veiculava a oposi-ção de Miguel Torga, no seu Diário XVI (8.2.1991), à presença dos seus textos nos exames nacionais do 12.º ano, não deixa de expressar a sua visão social do escritor: “não é dentro da pátria um inimigo público embuçado, mas uma prestável voz fraterna”.

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Onde estamos?

Por um lado, a literatura viu o seu espaço curricular reduzido, facto mesurá-vel pelo desaparecimento da “História da Literatura”, da análise e comentá-rio literários, nos programas, e da sua prática letiva, no ensino secundário. O mesmo se observa com o desaparecimento da crítica literária, universitária e jornalística. De facto, docentes universitários como Jacinto do Prado Coelho deixaram um património crítico, hoje desconhecimento até entre os lite-ratos. E figuras de relevo como Óscar Lopes, José António Saraiva, Vergílio Ferreira, José Régio deixaram obra crítica na página literária dos jornais, hoje perdida em bibliotecas e arquivos.

Por outro lado, a sociedade obliterou a função social formativa da li-teratura, olhando-a com reverência, sacralidade, ou motivo de decoração, decorrentes de uma “instituição literária”, que lhe acena com o valor social, cultural e simbólico do “produto” literário. Para isso, contribuem as empresas editoriais e os livreiros, os prémios literários, os serviços públicos de cultura, o rendimento disponível das famílias e as atuais condições de vida, incluin-do a existência de tempo livre.

Mais, a escola especificou e individualizou as finalidades didáticas, a per-seguir pelo texto literário na aula de Português. Assim, às finalidades refe-ridas do velho liceu de elites, contrapõe modelos de ensino, numa escola massificada, com finalidades formalizadas e distantes do horizonte formati-vo do aluno. Vejamos.

1. O modelo cultural – Permite aceder à cultura: da norma linguística, da história literária e do que Ortega e Gasset (1946: 67) chama “[…] sistema de ideias das quais cada época vive […]; as convicções sobre o que é o mundo e o que são os nossos semelhantes […]; os valores inerentes às coisas e acções […].” O ensino do texto literário, que pa-receu óbvio durante muito, nos últimos anos, vê-se questionado pelos textos utilitários ou técnicos e pelo estudo da língua oral e pela dis-puta do espaço curricular por novas áreas disciplinares.

2. O modelo de iniciação estética – Proporciona uma iniciação artística ou uma educação do sentimento estético, através de formas de arte plas-madas em língua. A arte é vista como uma busca de modos diferentes de manifestar a vida e um ideal informal de perdurar pela tentativa de fixar a existência das coisas (Pereira 1945: 266). Lilian Katz (2004: 30), da Universidade de Illinois afirma: “Não se pode viver uma vida

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plena sem arte, ela dá-nos textura e forma. […] A arte melhora a nossa qualidade de vida. As escolas podem fazer muito para introduzir a arte na vida das crianças, de forma natural, sem falar directamente de autores ou correntes.”

3. O modelo linguístico – Desenvolve a língua através do texto literário, pelo acesso ao vocabulário, às estruturas e à manipulação da língua, ajudando os estudantes a encontrarem a sua expressão pessoal, atra-vés da observação e da imitação criativa dos autores. Foi a forma de aprendizagem das línguas modernas até ao liceu liberal, para todos os mestres clássicos desde o século XVI.

4. O modelo de desenvolvimento pessoal – Leva os alunos a comprome-terem-se com a leitura dos textos literários, sendo tal compromisso medido pelo cuidado, pela satisfação e pelo interesse que os alunos põem no texto literário na escola e, mais tarde, na vida. Esse desenvol-vimento pessoal resulta da aprendizagem do apreço e da avaliação de produtos culturais e estimula o indivíduo através da compreensão da sociedade, da cultura e dele próprio.

5. O modelo do gosto de ler – Este leva “o aluno a envolver-se activamente nas actividades de leitura dos textos literários, proporcionando-lhe uma habilidade para ler bem e um desejo permanente para ler livros.” (Purves, 1971: 702) Nos Estados Unidos, professores e autoridades educacionais

“opõem-se ao ensino sobre literatura e ao ensino de fórmulas e me-todologias de crítica […]. A resposta individual e a actividade indi-vidual são o mais importante. […] Trata-se de uma nova orientação no currículo, afastando-se do tratamento histórico da literatura, que degenerou na biografia e na história, e da análise ‘crítica’ da literatura, que degenerou na rigidez e no formalismo críticos.

Antes, olha o aluno como público e como participante activo na trans-missão literária entre o autor e o leitor. Procura dar confiança ao alu-no na sua resposta, no seu juízo, no seu gosto. Presta atenção ao lado afectivo da actividade literária e do aluno. O risco é degenerar num psicologismo […] ou num sentimentalismo à volta da literatura e do aluno […].” (Purves, 1971: 702).

Para terminar

A história social e educativa do texto literário é longa e tem conhecido mo-mentos de normalidade institucional e de crises. Hoje vive num impasse

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quanto à função, estatuto e metodologias de abordagem e emprego. Parece beneficiar da relação pessoal do cidadão com ele, aceitando-se a multipli-cidade de leituras como contrapondo à leitura plural que a sua natureza suporta ou à qual apela.

Do que não há dúvidas é da diminuição do seu espaço curricular e social. Todavia, a sua permanência tem conhecido significativas alterações no seu tratamento e, socialmente, proporcionou o aparecimento de uma nova realidade que é a “instituição literária”, não sendo, ainda, claro se esta o favorece ou o prejudica.

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O ENSINO DA LITERATURA: CONTEXTOS E LUGARES DA PRÁTICA NO ENSINO DA LÍNGUA

PORTUGUESA EM CABO VERDE

Fátima FernandesUniversidade de Cabo Verde/ Cátedra Eugénio Tavares de Língua Portuguesa

[email protected]

Resumo

Esta comunicação pretende partilhar algumas reflexões decorrentes da ex-periência de exercício de docente de Literaturas de Língua Portuguesa e de Literatura para a Infância, nos cursos de Licenciatura em Línguas, Literaturas e Culturas/Estudos Cabo-verdianos e Portugueses Licenciatura em Educação de Infância, da Universidade de Cabo Verde; Línguas e Culturas Lusófonas e Literatura Infanto-Juvenil na Licenciatura em Estudos Portugueses e Franceses, da Universidade de Santiago.

A partir de reflexões sustentadas em análises transdisciplinares, que per-mitem a abordagem, leitura e interpretação do texto literário com base na Teoria Literária, na Hermenêutica e na metodologia de Ensino da Língua através do texto literário, apontam-se alguns caminhos possíveis para o me-lhor entendimento da importância do texto literário na gestão dos conteú-dos da disciplina de Língua Portuguesa. Ao mesmo tempo, pela sua valoriza-ção enquanto recurso e conteúdo, defende-se a promoção do texto literário na necessária redefinição de orientações programáticas e das metodologias

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de ensino da língua materna e não materna, fazendo-se do seu uso e análise um caminho de aprendizagem e alargamento de mundos e horizontes do leitor aprendente.

Introdução

Este texto resulta de reflexões e de situações de análise identificadas e sis-tematizadas para a uma participação da Mesa Redonda Ensino e Literatura, no quadro das I Jornadas de Língua Portuguesa – Investigação e Ensino, organizadas pela Cátedra Eugénio Tavares de Língua Portuguesa (CET-LP). Trata-se, antes de mais, de aceitar como desafio a oportunidade de parti-lhar experiências e práticas, num diálogo aberto com docentes colegas do Ensino Superior, nacionais e convidados estrangeiros, docentes do Ensino Secundário, alguns em situação de formandos do Mestrando em Ensino do Português – Língua Segunda/Língua Estrangeira.

O exercício que nos foi proposto para participar nas I Jornadas de LP organizadas pela Cátedra Eugénio Tavares de Língua Portuguesa, na Universidade de Cabo Verde, merece um registo em relação ao mérito e à pertinência da iniciativa, atendendo-se à lacuna, se não generalizada pelo menos institucional, de espaços de Reflexão, Partilha e Avaliação de expe-riências visando a sistematização das fraquezas do sistema educativo e a recolha de contributos para a Tomada de decisões em benefício do processo de Ensino-Aprendizagem. As preocupações frequentemente partilhadas em situações de informalidade quotidiana merecem, nesta oportunidade, o en-quadramento do tema da Mesa Redonda Literatura e Ensino num conjunto mais alargado de Conferências proferidas por especialistas nacionais e es-trangeiros, numa dinâmica de tomada de consciência para as nossas neces-sidades, enquanto docentes e responsáveis pelo efeito de multiplicação de saberes e de formulação de novas atitudes e adaptações. Ao mesmo tempo, pela pertinência do tema em relação aos objetivos do referido Mestrado e em consonância com os objetivos da CET-LP, enquanto espaço de investiga-ção e mobilização de conhecimentos académicos, será possível identificar contextos de análise que possam justificar novas apostas de investigação e formação académica.

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Conciliando a Prática à Formação, os Estudos a uma atitude de questio-namento permanente, a comunicação O ENSINO DA LITERATURA: Contextos e lugares da prática no Ensino da Língua portuguesa em Cabo Verde, pare-ceu-nos um tema ajustado e adequado. Com efeito, as propostas aqui de-lineadas são consubstanciadas pela motivação, reflexão e suporte teórico difundidos nos estudos desenvolvidos em cenários diferenciados como Portugal, Brasil e Cabo Verde, países onde os estudos sobre a relação ou o binómio Literatura-Ensino vem constituindo tema, objetivo de análise e fon-te de reflexão atenta aos desenvolvimentos metodológicos que conciliam domínios complexos, numa perspectiava inter e transdisciplinar. Trata-se, deste modo, de enfrentar o desafio das conciliações, desde as orientações dos sistemas educativos, às práticas docentes, passando pelos recursos dis-poníveis, a vários níveis de ensino.

1. O Ensino da Literatura – algumas (re)formulações do tema

Literatura e Ensino como mote para reflexões no contexto de ensino--aprendizagem de uma Língua Não Materna (LNM) levantou-nos algumas inquietações de carácter metodológico, quanto ao modo de interiorizar a proposta e organizar conteúdos sobre tal proposta. Inicialmente, considera-mos que Ensinar uma Língua pode ser distinto de Ensinar a Leitura do Texto Literário, a sua análise e, a longo trabalho, a Interpretação do texto literário. Igualmente válida se nos figurou poder ser a afirmação de uma interdepen-dência entre os dois grandes domínios: Literatura e Ensino estrariam a ser chamados para este fórum participativo enquanto.

O Ensino da Literatura e, ainda mais abrangente e teórica, a Didática da Literatura, constitui um dos domínios de reforço e trabalhos dos professores de Língua e Cultura nos vários níveis de ensino, a que o presente contexto não pode ser indiferente. Daí que, numa leitura mais de carácter interdis-ciplinar, consideremos inicialmente o Ensino da Literatura de uma forma mais generalista e percorrendo as várias etapas do percurso de Ensino e de Aprendizagem, seguindo-se depois a Análise e Interpretação dos textos lite-rários em níveis mais terminais do Ensino Secundário, pelo grau de profun-

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didade que implica, como uma abordagem que se pode aliar a uma prática hermenêutica entendida como a ciência da interpretação.

2. Pressupostos Teóricos

2.1. Literatura e Ensino ou Ensino da Literatura – lugares de práticas enunciativas

Não apenas como uma manifestação artística ou um tipo de discurso, mas como uma forma de agir no e sobre o mundo, a literatura atravessa fronteiras, cria tempos e espaços, multiplica vozes. In Onde Está a Literatura, UFMG, 2014

Os pressupostos teóricos que orientam a formulação Literatura e Ensino conduzem-nos ao fenómeno da Literatura como fenómeno de criação e fruição, passando ao longo de todo o processo de relacionamento, apren-dizagem e ensino, a poder emergir sobre a forma de Ensino da Literatura (metodologias, contextos e finalidades do ensino do texto literário nas suas diferentes formalizações/formatos. Os lugares das práticas enunciativas em que se apresenta o texto literário podem distinguir a leitura do texto lite-rário como simples necessidade lúdica e de fruição, quando esta se prende como resultado do ato de criação (autor/texto/obra).

Por outro lado, a dupla formulação apresentada no título mostra formas diferentes (mas até complementares) de entendimento do tema da Mesa-redonda que se abre a questionar a Literatura e o Ensino para se subenten-der o Ensino da Literatura, nas suas problematizações quanto aos métodos, níveis de ensino e respectivas orientações programáticas, objectivos, recur-sos e avaliação, ou ainda a dimensão da Investigação, feita ou em curso, sobre o Ensino da literatura, a fim de se ligar….

Literatura e Ensino e Ensino da Literatura se aproximam. Convergem no que à Investigação e ensino se permite equacionar. Impõem reflexões quan-to aos limites e abrangências. Assim, permitem-nos registar :

a) O Papel da Literatura no processo de Ensino - pensando-se na for-mação de professores, nas experiências e prática de uma leitura ao serviço do texto e nos métodos;

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b) Importância da Literatura na formação de professores de Língua - nem sempre aceite por metodólogos mas o professor mediador en-contra no texto literário e nas diversas formas textuais…

c) Onde está a Literatura? A literatura e seu estudo pode incidir sobre diferentes tipos de textos, mas igualmente sobre os “espaços onde se ensina o texto a sala de aula, o recreio, a casa, a oficina

d) Que leitores temos e que leitores queremos? – Esta pergunta deve orientar as reflexões de todos os intervenientes que tomam por mis-são preparar e orientar a atividade de Leitura (primeiro em função de objetivos lúdicos e pedagógicos, depois literária), determinando os patamares de motivação, hábitos e proficiência de leitura e seu impacto nos níveis de proficiência linguística.

O Papel da Literatura no processo de Ensino

O papel da Literatura no processo de Ensino merece uma atenção particular para que a sua presença não se limite aos planos de formação e às análises que lamentam a falta de hábitos de leitura ou a fraca competência literária dos jovens à saída do Ensino Secundário. Na ausência da sua colocação plena nos planos de Estudo, por vezes é objeto de alguma crítica menos favorável ou de certa resistência que os conteúdos literários possam limitar ou prejudicar o Ensino, especificamente nas aulas de Língua.

Analisando atentamente o problema, a Literatura pode e deve constituir um recurso de ensino e um espaço de aprendizagem muito para além da disciplina de Língua, no caso em apreço, da Língua Portuguesa. De igual modo se faz importante destacar o texto (literário) como o lugar de onde se pode ter acesso ao mundo, atendendo aos mundos possíveis que um texto regista ou para os quais nos transporta.

A Literatura é um espaço de acesso a mundos (uma porta, uma janela, recorrendo a essas metáforas tão ricas em todas as culturas), quase infinitos. Esta abertura é tanto mais necessária, possível e real, quando em Cabo Verde o acesso ao conhecimento ainda se dá de forma muito desigual e hetero-génea, não se podendo colocar em situação de igualdade uma criança que cresce e aprende nos centros urbanos e uma que nem sequer tem acesso aos recursos básicos de sobrevivência, como por exemplo uma alimentação equilibrada, uma atenção permanente de pais formados e atentos às neces-sidades de saúde e escolarização, compreendendo para esta a necessidade

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corrente de aquisição de livros, o acompanhamento do filho a uma bibliote-ca municipal (já que raramente as escolas básicas dispõem de bibliotecas) para já não falar numa utópica visita a uma esporádica feira de livro. Não havendo tais recursos, é corrente ainda nestes dias de catalogação de Cabo Verde como país de desenvolvimento médio, caber ao professor dos diversos níveis de ensino, em particular ao professor de língua, a importante tarefa de se multiplicar em habilidades, jogos e contactos, a fim de permitir o aces-so ao livro ao seu aluno.

A Literatura tem o poder de nos comunicar o que o outro (ser imaginário, sujeito, personagem), que está no outro lado, consegue transmitir ao leitor de modo particular. Mais do que sentimentos, mais do que ideias/informa-ções, trata-se de vivências e referências possibilitadoras de um variado le-que de experiências nas quais o leitor se vê incluído, com as quais se pode identificar e pelas quais se processa a construção de outras situações.

A Literatura participa de uma complexa rede de contactos, de mundos e de linguagens. Muito do nosso entendimento do mundo pode encontrar na descoberta de um personagem, de um relato de experiência, o meio de nos enriquecermos e aumentarmos, através das técnicas de leitura e de análise, uma apropriação de conteúdos essenciais quer à reprodução e adaptação situacional quer à procura autónoma de outros seres e modos de expressão. Quando se estimula a criança a ler e apensar sobre o que lê (uma frase, um verso, um conto) está-se a contribuir para a sua inserção plena e competente nessa rede de contactos e de linguagens.

O Ensino é um meio eficaz de acesso à Literatura, que pode ser esquema-tizado da seguinte forma:

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Se a programação numa visão sistémica cumprir os objectivos programa-dos, podemos considerar todos os elementos acima identificados como parte de uma dinâmica permanente. Por exemplo, ao professor mediador cabe estar atento aos novos recursos, investir na formação continua/atua-lização de conhecimentos, fazer face aos constantes desafios do processo de ensino e de aprendizagem.

Pergunta-se: “-Em que momento é que o processo manifesta lacunas ou falhas?” Não tendo necessariamente de ser a mesma para todos os contex-tos, a resposta pode recair sobre qualquer momento em que um dos sec-tores deixa de propiciar as condições de trabalho (ensino-aprendizagem) favoráveis ao sucesso. Parece simples assim o verificar, porém nem sempre identificamos uma atitude reflexiva e avaliativa das várias partes, de modo a assegurar uma orientação permanente e uma resposta sistemática às so-licitações. No caso em concreto, a massificação do Ensino nas últimas três décadas em Cabo Verde não se fez acompanhar de um trabalho de avaliação das condições de trabalho e de funcionamento das estruturas responsáveis pela formação, a ponto de se obter um ensino de qualidade. A ausência de

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uma visão política para as línguas pode ser apontada como um dos pontos a merecer uma reflexão mais atenta para que Escola, Formação, Metodologia e Inovação respondam em articulação e individualmente aos desideratos de um Ensino de Qualidade.

Deste modo, a Literatura constitui um importante recurso de e para a formação pessoal do indivíduo. Desde a mais tenra idade e sob os mais diferenciados formatos (adivinha, lenga-lenga, poema, canção, conto, novela, romance histórico, romance autobiográfico, romance ensaio,…), o texto lite-rário pode prestar-se a diferentes usos e apropriações. A Literatura oferece material de valor incalculável, se o seu uso e consideração na preparação de uma aula de língua, respeitando-se naturalmente os níveis dos leitores aprendentes, podendo este aprender e formar-se ao mesmo tempo que brin-ca e é motivado a observar o funcionamento da língua.

Da formação pessoal da criança, do adolescente e do jovem, subenten-de-se a formação identitária se por esta componente tomarmos todo o ma-nancial de informações que o texto veicula quando conotado com espaço e relação de presença da essência de todo o indivíduo reconhecido como ser nacional. Nesse sentido, as autores podem ser grandes parceiros da e na Educação e no Ensino, por constituírem repositórios de informações, de gos-tos, de estilos e de técnicas de manejo da língua, a que uma boa formação não poderá ficar indiferente.

Importância da Literatura na formação de professores

Os curricula universitários mais clássicos e modestos, apresentam os con-teúdos de e sobre Literatura, nos planos de formação em Letras e, embora com variantes de apresentação, designação e conteúdos, reconhecem ou contemplam unidades curriculares onde ela se faz presente. No entanto, a concentração verificada nos domínios das Ciências Sociais e Humanas, re-mete a Literatura, quase que exclusivamente para a disciplina dos cursos de letras, ignorando-se por completo o valor que o estudo do texto literário pode agregar aos cursos de História, Filosofia e Ciências Sociais (só para exemplificar) com base na evidência de ser necessário investir na Leitura em todos esses domínios, para além de ser também justo reconhecer a intera-ção que o texto literário estabelece com outras textualidades, podendo estar associado a outras linguagens.

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O domínio literário pode ser transversal e transdisciplinar, se se conside-rar a leitura do texto literário como fundamental ao reforço das aprendiza-gens, como propiciadora de sensibilidade artística e reveladora de técnicas de manejo do material linguístico proveitoso ao reconhecimento de noções de estilo, equilíbrio, harmonia, para além das informações e referências que o texto literário regista. A título de exemplo, podem ser referidos o roman-ce histórico e a poética como potenciadores de formação e conhecimen-to de áreas aparentemente tão distantes da Literatura como a Medicina, a Matemática e a Física.

Em outras paragens a extensão TEXTO-IMAGEM-NÚMEROS revela-se propiciadora de metodologias de ensino aprendizagem mais eficazes e efi-cientes, por exemplo, quando as propostas inovadoras realçam o benefício de o indivíduo poder colocar o SABER ao serviço do SABER FAZER e do SABER SER, numa abordagem que vislumbra obter um ser competente, por-tanto sensível e apto a resolver as tarefas do quotidiano.

Nesse percurso, o Professor é uma peça-chave na identificação dos tex-tos mais adequados e na formação que poderá proporcionar ao aprendente através do texto, desde que o próprio Professor seja um repositório de leitu-ras, coloque o hábito de ler entre as suas tarefas quotidianas e possa servir de modelo aos precoces leitores em formação. Sobre essa realidade, falta ainda averiguar até que ponto a teoria e a prática assim o evidenciam; falta um estudo atento dos hábitos e espaços de leitura docente, assim como da predisposição dos professores para a leitura, a fim de se obter o efeito multiplicador desejado: o de ter bons professores leitores para motivar bom alunos leitores.

A Literatura é importante na formação dos professores de todas as áreas disciplinares. Uma boa distribuição de conteúdos pelas Unidades curricu-lares não deveria colocar à margem dos Planos de Estudo um contato e leituras complementares de Textos Literários. Se desde o Ensino Pré-escolar nos habituarmos a mobilizar a atenção para o trinómio TEXTOS-IMAGENS-NÚMEROS, colocaremos o Ensino em interacção com outras textualidades. O professor competente reconhece na sua formação e prática a importância da Literatura, relativamente a outras linguagens.

Dessa forma o Professor assumirá em pleno a sua missão na formação de leitores, enquanto mediador/motivador/orientador na busca de outros

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textos e outras linguagens a partir da linguagem verbal.

Uma das atividades em que o professor pode assumir-se facilitador é o jogo, mobilizando técnicas e recursos vários com resultados direciona-dos para o efeito multiplicador, se para além da sala de aula, puderem ser criados outros espaços onde Professores/Pais/Educadores – Leitor/Leitores possam alargar o aproveitamento do texto na aprendizagem e formação.

O Jogo do livro pode desencadear espaços de leituras interessantes em todos os níveis (no Pré-escolar/Básico/Secundário/Superior).

Ensino da Literatura e Ensino da Leitura

Embora possam ser associadas ou complementares, o Ensino da literatura não deve ser confundido com o Ensino da leitura. Os bons leitores são resul-tado da conciliação dos dois tipos de ensino, cabendo a cada um métodos, técnicas e exercícios diferenciados, assim esquematizados:

O Ensino da leitura presta-se a objetivos que visam o domínio de técnicas que possam tornar o leitor ativo e competente. A metodologia de orientação pode, a longo termo, culminar em atividades de Leitura extensiva/Leitura integral de obras literárias; ao mesmo tempo o domínio das técnicas de leitura pode ser direcionado para outros tipos de texto que não os textos literários. Daí que ambas sejam imprescindíveis, fundamentais quando se identificam bons leitores. O Ensino da Leitura, complementado com o Ensino da Literatura, é importante para a motivação para a leitura, para desenvolver hábitos de leitura, ao mesmo tempo que pode promover o interesse pela

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Literatura. Embora se associe a análise, o comentário e a interpretação do texto ao domínio do literário, tais técnicas podem ser aplicadas a textos de natureza bem diversa.

Portanto, a Literatura, seu domínio e aprendizagem, constituem, no en-sino do texto texto literário, uma forma de colocar os recursos em estu-do neste espaço de reflexão ao serviço tanto da Ciência, da Literatura, da Sociedade e da Cultura, em complementaridade desde a formação básica; à superior, passando pela secundária.

3. Que leitores temos? Que leitores queremos?

As sociedades do conhecimento e da cultura registam em diversos pon-tos de análise o défice de leitura como entrave à valorização da Literatura, evocando-se o apelo das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) como um entrave ao uso do livro. Os leitores que temos hoje podem ser leitores imersos numa comunidade de consumo, com ofertas e espaços di-ferenciados dos de há várias décadas, podendo até certo modo se justificar no espaço cibernético ofertas (espaços – temas-realidades-visões) que com-prometam a realidade e o valor do texto literário.

Esta é uma perceção que devemos procurar combater e tirar dividen-dos, pondo a tecnologia ao serviço de uma leitura literária mais mediá-tica e de acordo com os novos tempos. Precisamos definir a tipologia de leitores a formar em contextos onde outros produtos inteligentes podem comprometer o livro.

Atualmente, a gestão dos programas de ensino passa igualmente pela revisão dos Métodos, pelo estabelecimento de Metas que contemplem a rapidez de circulação da informação e que mobilizem recursos atrativos ao contexto da sala de aula, sem perder o foco em todas as mais-valias que um bom livro encerra.

Consideramos que o professor do presente não pode ficar indiferente à diversidade de culturas e de línguas em presença no mundo global, devendo para tal ser chamado a experimentar novas metodologias, a refletir sobre as suas práticas e, sobretudo, a exigir e a variar os recursos necessários para o alcance das metas programáticas.

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Quando as opções em termos de domínio de técnicas de análise literária beneficiam das TIC (veja-se por exemplo os dicionários eletrónicos, as enci-clopédias digitais, os blogues), a competência da leitura merece ser esque-matizada dentro da ampla oferta de que as sociedades são fruto. Assim, se é possível adotar o jogo do livro, como recurso simples para a descoberta de novos mundos através da palavra, em complemento ao manual de trabalho diário, no conceito mais clássico em que o livro em papel pode ainda se ajustar a muitas das nossas escolas e realidades onde a Internet é escassa e inacessível às condições financeiras em que labutam muitos pais cabo-ver-dianos, é igualmente real e verdadeiro que os professores não podem nem devem ignorar outros formatos mais modernos, reveladores até de outras expressões e outras linguagens (outros vocábulos, novos contextos para o usos de linguagens também modernas,) nas escolhas, no definir de priorida-des para cada Unidade programática e de cada conjunto de aula destinada a um certo nível escolar.

É preciso, ainda, estudar as situações e suas particularidades e propor medidas visando resultados ao alcance das práticas e da ambição de um ensino sempre de qualidade, onde devemos querer ser bons professores, para podermos querer ter bons leitores. Assim, terminamos com algumas propostas de trabalho que a CET-LP poderá abraçar e transformar em proje-to, visando uma maior dinâmica da leitura Literária:

1. Análise dos Planos de formação oferecidos pelas Universidades, a fim de se identificar novas e atuais necessidades da sociedade multilin-gue e multicultural onde a Escola se insere;

2. Preconizar uma maior articulação entre os paradigmas didáticos, os métodos e os recursos – para que as ofertas de ensino possam be-neficiar de estruturas (bibliotecas escolares, bibliotecas itinerantes, bibliotecas municipais) de atividades lúdicas onde os métodos tra-dicionais se conjuguem com uma prática e técnicas modernas aos serviço do Ensino e da Literatura: recorrência ao audiolivro, recurso ao livro digital, elaboração de materiais didáticos com recursos às TIC em formação contínua dos professores em exercício;

3. Integração de saberes que valorizem determinadas operações in-telectuais (LER, OBSERVAR/RELACIONAR/EXPLICITAR/ANALISAR/COMENTAR/) na construção de leituras extensivas;

4. Formar uma maior consciência docente mais desperta para direcionar cada operação a cada nível (Básico/Secundário/Superior) adequando

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as metodologias e atividades ao serviço de uma aprendizagem pro-gressiva e sistemática, sempre com respeito para as componentes do texto literário a valorizar nos diferentes patamares de ensino;

5. Incluir a construção textual (escrita criativa) nos programas do Ensino Básico e Secundário ao serviço de uma leitura literária modelo (leitu-ra; leitura e análise, leitura de contextos ao redor do texto literário) e de modelos de edificação e de formação completa do aprendente, por exemplo através do acompanhamento de um plano nacional de leitura (onde não podem faltar os Clássicos de Literatura universal e Nacional e as obras de leitura extensiva ao lado da leitura integral).

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A CRISE DA LITERATURA E AS LITERATURAS MARGINAIS OU MARGINALIZADAS

Arnaldo Saraiva

Anunciada a sua morte há mais de meio século, a literatura está viva e recomen-da-se: nunca se produziu tanta obra literária como nas últimas décadas.Num só ano publicam-se agora mais textos literários do que outrora em séculos.

Paradoxalmente, parece óbvio que nas últimas décadas o texto literário tem vindo a ser cada vez mais visto sem a aura que desde sempre o marcou, perdendo tempo e espaço em favor de novos tipos de textos verbais e ver-bo-visuais, servidos sobretudo pela televisão e pelo computador.

Tem vindo a ser cada vez mais desvalorizado nos programas e nas an-tologias escolares, nos media, nas livrarias, como tem vindo a ser cada vez mais hostilizado e desprezado por passivos e ativos, reais e virtuais inimi-gos, entre os quais se contarão não só novos analfabetos (ou analfabetos de novo tipo – que sabem ler e não leem) mas também dirigentes políticos, administradores de empresas – mesmo de comunicação -, e até por profes-sores, incluindo alguns professores de língua, de linguística e de…literatura. Aliás, às vezes é a própria literatura (por exemplo, de vanguarda) que parece inimiga da literatura1.

A literatura passou assim a necessitar de advogados de defesa, e não só de teóricos, críticos ou criadores dela, e não só de médicos como os que

1 V.Gerald Graff, Literature Against Itself, 2nd ed., Chicago, Elephant Paperback, 1995.

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D.Francisco Manuel de Melo imaginou no Hospital das Letras. E a sua defesa pede naturalmente o prolongamento da interrogação sobre os múltiplos aspetos do fenómeno literário, e da discussão do conceito de literatura ou de literariedade que há quase um século iniciaram os formalistas russos, tentando agora dar resposta não só à pergunta essencialista – “o que é a li-teratura” –, ou à pergunta pragmática ou utilitarista –“para que serve a litera-tura”, “que pode a literatura” -, mas a outras perguntas, como a permitida pela teoria artística de Nelson Goodman – “quando é literatura” 2-, ou as referidas por Remo Ceserani3: "onde é, como é, porque é literatura"...

A insegurança, a incerteza, a instabilidade sempre ao longo da história acompanharam o conceito de literatura, como podem documentar a po-lissemia desta palavra, estudada e sistematizada por Robert Escarpit4, a variação ao longo dos séculos do privilégio de designações mais ou menos equivalentes (Gramática, Retórica, Belas Letras, Arte verbal, Poética, Discurso literário...), as entradas e saídas de algumas obras do cânone literário, e as discrepâncias nos juízos de escritores e de críticos literários, mesmo quando reconhecidamente competentes. Se já sabemos que a literatura não tem de gerar a unanimidade, até porque, como dizia Nelson Rodrigues, toda a una-nimidade é burra, não deixa de ser perturbador deparar com os juízos que, por despeito, emulação, ressentimento, antipatia, mas também por incom-patilidades estéticas, alguns escritores puderam escrever sobre grandes escritores; a leitura do livro que Albert Angelo publicou por El Aleph de Barcelona, em 2006, Escritores contra Escritores, pode ser divertida como às vezes é a má língua, mas não pode deixar de suscitar as maiores perplexida-des, sobretudo quando são grandes escritores a negar a qualidade literária a grandes escritores.

Mas as dúvidas ou hesitações nunca levantaram os problemas que le-vantam hoje quando é tão fácil editar, quando o livro vale sobretudo como mercadoria ou como negócio, frequentemente fraudolento, quando até edi-tores, outrora uma classe culta e escrupulosa, publicam não importa o quê desde que possam contar com subsídios e apoios, a começar pelos autorais, ou desde que prevejam lucros, passando para o leitor a responsabilidade se-

2 V. cap.IV de Modos de Fazer Mundos, Porto, Asa, 1995 (trad.de Ways of Worldmaking, 1978)3 Guida alllo Studio della Letteratura, 2.ª ed.,Roma/Bari, Laterza, 2002,p.27.4 Le Littéraire et le Social,Paris, Flammarion, 1970,pp.259-272.

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letiva, e quando muitos leitores parecem pôr em causa, com esquizofrénico relativismo, a “excepção” da linguagem literária, e a distinção não só entre boa e má literatura, entre “grande” e “pequena” literatura, mas até entre lite-ratura e não-literatura.

Para lá de fatores políticos ou sócio-culturais que determinam o anti-au-toritarismo e anti-tradicionalismo contemporâneos, apontados por Hannah Arendt, que abalam censuras e preconceitos não só de ordem moral ou ideológica, mas também de ordem estética, pesaram nesse relativismo a incontrolável proliferação de textos, alguns de espécie nova, veiculados so-bretudo pelos diversos media, e a multiplicação de autores, escritores ou escreventes, que de modo nenhum cabem nas categorias reconhecidas da Idade Média (scriptor, commentator, auctor, compilator) ou da tradição (poeta, ficcionista – romancista, novelista, contista -, dramaturgo, ensaísta ou críti-co...); pensemos por exemplo não já no tradutor ou no jornalista mas no cronista, no folhetinista, no argumentista, no guionista, no adaptador, no co-lunista, e até no ghost writer...

Perante a enorme massa verbal ou textual que desafia qualquer teórico literário moderno, perante os equívocos e preconceitos em que é fértil a his-tória literária, ou perante as dificuldades de definição da literatura, impõe-se a tarefa de repensar, como preconiza Genette, os “regimes”, os“critérios” e os “modos” de literariedade5, e de reavaliar à luz de um critério claro, embo-ra flexível, textos duvidosamente inseridos ou duvidosamente excluídos do campo literário.

A existência de muitos e às vezes importantes textos, antigos ou moder-nos – textos de modalidade nova, textos bidimensionais ou híbridos, textos jornalísticos, textos anónimos, textos de vanguarda...-, automaticamente ou geralmente julgados indignos de serem classificados como literários, levou nas últimas décadas à invenção de novas classificações ou qualificações am-plas ou generalizantes que permitam ou ajudem a avaliá-los e legitimá-los como literatura, mesmo que sejam colocados não no seu, aliás, problemáti-co ou flutuante centro mas nos seus limites ou na sua periferia.

Foi assim que desde os anos 60 a palavra literatura começou a ser fre-quentemente e codificadamente utilizada com alguns prefixos, ou com novas

5 Fiction et Diction, Paris, Seuil, 1991.

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locuções adjetivas e adjetivos pospostos, distintos dos que anteriormente já assinalavam alguma sua dimensão, modalidade ou qualidade temporal (por exemplo, “literatura medieval”), temática (“literatura religiosa”), formal (“li-teratura romanesca”), comunicacional (“literatura oral ), estética (“literatura barroca”), nacional ou internacional (“literatura portuguesa, europeia), gené-rica (“ literatura épica”).

Vale a pena refletir um pouco sobre as novas designações de literatura prefixada:

ParaliteraturaContraliteraturaAntiliteraturaInfraliteraturaSubliteraturaEtnoliteraturaAliteraturaHiperliteraturaCiberliteraturae ainda: Oratura

1. Paraliteratura

Sem dúvida a mais privilegiada das novas classificações textuais, ela co-meçou a circular em 1970, com o livro Entretiens sur la Paralittérature6, que reunia actas de um congresso de 1967 em Cerisy-la-Salle.Nas comunicações propriamente ditas, nos debates que suscitaram ou na “introdução” de Jean Tortel, não se vislumbrava o que fosse exactamente “paraliteratura”, mes-mo quando se invocava o valor do prefixo (perto de, à volta de, cerca de, contra...), ou quando se faziam entrar no seu campo textos diversos como o melodrama, o romance popular, o romance policial, o romance de ficção científica, o foto-romance, a banda desenhada, a... ilustração, as tipografias expressivas, e algum texto de vanguarda; ela tão depressa podia ser uma “massa escrita” que fica de fora da literatura como a “palavra escrita ou oral”

6 6 Paris, Plon.

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que tem algum contacto e até “praticamente todos os elementos” da literatura.

No entanto, esse livro asseguraria a fortuna do confuso conceito ou do novo termo, de que falariam ensaios de Marc Angenot, Yves Reuter, Vittorio Frigerio, Wladimir Krysinski, Frank Wagner, Myrna Solotorevsky e, entre ou-tros, Daniel Couégnas, que, em Introduction à la Paralittérature7, sem deixar de alertar para os perigos do uso desse termo, defende a comodidade e in-dispensabilidade dele;mas propondo-se elaborar um “modelo paraliterário” e estabelecer “critérios paraliterários”, não faz consistemente uma coisa nem a outra, alinhando apenas considerações avulsas que até podem ignorar a língua e a linguagem concreta, ou fazer coincidir o conceito de “paraliteratu-ra” com o de “literatura popular”.

A noção de “paraliteratura” contribuiu sem dúvida para chamar a atenção para os limites, contingências e convívios possíveis do literário e do não--literário, e evitou a hierarquização ou a depreciação implícita noutra no-menclatura (subliteratura, infraliteratura, pseudoliteratura). Mas revelou-se incapaz de se livrar de equívocos que afectam os textos que inclui ou exclui, e que a tornam ou uma desconsiderada modalidade de literatura, ou uma sua imitação degradada, afinal como a subliteratura, ou outra coisa qualquer que está completamente fora do campo literário.

2. Contraliteratura

O termo “contraliteratura” começou a usar-se poucos anos depois do sur-gimento da chamada “contracultura”, movimento que se tornou notório no final dos anos 60 nos Estados Unidos, em especial na Califórnia, e que teve em Theodore Roszak um dos seus primeiros estudiosos8.Comandado, como os contemporâneos movimentos de “Maio de 68” francês e da “revolução cultural” chinesa (não tanto a “Primavera de Praga”, também de 68), por jo-vens às vezes dados como “hippies”, e que nalguns casos integravam “co-munidades” espontâneas, cumpriam certos rituais (consumo de drogas, fre-quência de festivais de música pop e rock), e se valiam de símbolos (flores, colares, adornos artesanais, vestimentas exóticas), esse movimento invocava

7 Paris, Seuil, 1992.8 Nova Iork, Anchor Books, 1968.

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algumas causas – contra a guerra do Vietnam, contra o puritanismo norte-a-mericano, contra o emburguesado “american way of life”, pelo gozo da vida comum, em comum, pela liberdade sexual, pela solidariedade social, pela produção e consumo de baixo custo, pela auto-gestão, e teve também as suas manifestações artísticas: filmes underground, canções rock e pop, peças de artesanato, textos de free press.

Mas a palavra “contraliteratura” só entrou na gíria crítico-literária em 1975, quando Bernard Mouralis publicou numa prestigiosa editora pari-siense (PUF) o livro Les Contre-Littératures, que em 1982 seria traduzido para português9. De acordo com o seu autor, o conceito de “contraliteratura” vinha contestar ou repor em questão o conceito de literatura, tal como vinha lem-brar a existência de todo um sector da produção literária, estatisticamente muito importante, que habitualmente era posto fora da literatura. Vendo na “paraliteratura” uma subalternização ou uma reduplicação da literatura, Mouralis distinguia a “contraliteratura” pela sua capacidade de “subversão da literatura” institucionalizada ou canónica, como se deduzia da análise de textos exóticos, populares e “negro-africanos”.

No entanto, Mouralis fazia entrar no “campo das contraliteraturas” tex-tos ou obras como “dicionários, enciclopédias”, “anuários”, “catálogos”, “ho-rários de caminhos de ferro”, “textos administrativos”, etc.; e defendia que eles obrigavam à interrogação sobre o que é a literatura, ou lembravam “de modo manifesto o arbitrário que os exclui da tradição letrada”10.Assim, nem pela heterogeneidade dos textos dados como pertencentes ao “campo das contraliteraturas” ficava claro o conceito nunca bem definido de “contrali-teratura” nem se via nele qualquer vantagem para o esclarecimento do também não definido conceito de literatura, a que aquele se oporia, sem se dizer bem em quê. E os exemplos de textos supostamente contralite-rários marcados pelo exotismo, pela popularidade, pela africanidade, ou pela oralidade (curiosamente sem se reparar na expressão“literatura oral”) só provavam as fragilidades teóricas de Mouralis, cedo apontadas até por ensaístas portugueses11.

9 As Contraliteraturas, Coimbra, Almedina, 1982.10 Les Contre-Littératures, pp.52-53.11 Citem-se por exemplo Aguiar e Silva na sua Teoria da Literatura, João David Pinto Correia,-

no posfácio à tradução portuguesa de Les Contre-Littératures, e Nuno Teixeira Neves, no Jornal de Notícias de 28/11/1982.

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3. Antiliteratura

Este termo terá sido escrito pela primeira vez (em versão inglesa: “antilite-rature”) em 1935, pelo poeta David Gascoyne, na sua obra A Short Survey of Surrealism, que publicou quando andava pelos 19 anos12. Por ele pretendia definir os textos que violentavam ou violavam as comuns regras ou con-venções literárias.

Ao longo dos anos 50, o neologismo conviveria com outros que terá ins-pirado:”antiteatro”, “anti-romance”, “anti-arte”, e até “antipsiquiaria” e “anticul-tura”, que não teve tanto sucesso como “contracultura”.

Longe de marcar uma oposição à qualidade literária, o que a designa-ção visava, com intuitos propagandísticos ou não, eram textos literários de vanguarda, ou marcados pela originalidade das ideias e pelo uso de técni-cas e elementos surpreendentes. Tratava-se sempre, como diria Giulio Carlo Argan, de “arte sem obra de arte” – sem obra de modelo até então estabe-lecido.Recorde-se aliás que o “antiteatro” implicava o “teatro do absurdo” de Beckett e de Ionesco, que em subtítulo deu La Cantatrice Chauve (1950) como uma “anti-obra”. E recorde-se que o “anti-romance” implicava a produ-ção fictiva dos requintados franceses da “école du regard”.

4. Subliteratura

Certamente usada há muito de modo informal e eventual em expeditos juízos estéticos, esta designação conheceria alguma frequência a partir dos anos 60, quando passou a ser usada com intuitos teóricos. Estes intuitos veem-se claramente num número de 1961-1963 dedicado à“Littérature et sous-lit-térature” do Bulletin du Séminaire de Littérature Génerale da Universidade de Bordéus13, em que, falando do romance francês, Pierre Orecchioni assinalava critérios (a intenção do autor, a qualidade textual, o uso ou a recepção da obra) para definir o subliterário.

12 J.A. Cuddon,Dictionary of Literary Terms and Literary Theory, 3.ª ed., Londres, Penguin Books, 1991, p.47.

13 Fasc. X,1961-1963, pp.81-85.

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Mais de dez anos depois, o professor espanhol Andrés Amorós daria mesmo a um seu livro o título Subliteraturas14.Na introdução, ele começava por assinalar a relatividade do conceito de “subliteratura” (“O Decameron foi considerado como subliteratura”) e as dificuldades ou impossibilidades de marcar as fronteiras entre a literatura e a subliteratura. Mas estudando as fotonovelas, os folhetins, a canção folclórica, etc., assinalou alguns “rasgos” típicos do texto subliterário: a separação clara entre personagens bons e maus, o respeito pelas grandes instituições, a filosofia barata, os tópicos sentimentais, o “aproblematismo” político e religioso, a idealização evasi-va..., ou, noutro plano,a adjetivação culta, o léxico antiquado, as “metáforas retóricas”, as frases lapidares...

Amorós foge à definição de um critério de valor – que diz “abstracto e difícil de apreciar” - do texto que considera subliterário; mas não se coíbe de afirmar que há “comics de uma qualidade estética admirável” ou de “grande beleza”, e, insistindo na flutuação de fronteiras da literatura e da sublitera-tura, é claro a assinalar uma “diferença de qualidade” entre o texto literário e o subliterário, vendo neste sobretudo “um interesse sociológico absoluta-mente evidente”.

5. Infraliteratura

Esta designação já comparecia em 1967 numa comunicação de Suzanne Allen apresentada ao referido colóquio de Cerisy-la-Salle,” Reflexions sur l`infra-littérature”15. Associando-a à vaga designação de “paraliteratura”, co-meçava por a aplicar ao conjunto de manuscritos submetidos a uma editora para a qual trabalhara e não selecionados para a publicação, definindo-a como “literatura latente” e como “expressão de uma falha, de uma aspiração, de um apelo (de ar) e de ser”. No campo da “infraliteratura” poderia entrar por exemplo uma narrativa de “micro-descrições justapostas”, como nos fil-mes, mas sem “homogeneidade ao nível das intenções”, o relato minucioso mas sem emoção de um jogo por um futebolista, o texto de um “clochard paranóico” cheio de “digressões aborrecidas” e sem controle. E nos textos

14 Barcelona, Editorial Ariel, 1974. 15 Op.cit.,pp.163-176.

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infra-literários haveria “o pior” e “o melhor”: banalidades, convencionalismos, ideias gerais, “letra morta” salvo para sociólogos, e gritos, exigência de sen-tido, “inscrição da letra como recuperação du “eu” praxista”.

Por estas e outras considerações, vê-se que a autora exclui do campo da literatura os textos que considera infraliterários, e que nada distingue dos textos que outros diriam “paraliterários”. Talvez por isso, a designação “infraliteratura” não teve grande fortuna, embora aparecesse por exemplo no título de uma obra coletiva publicada em 1977 pela Universidade de Grenoble:L´Infra-Litérature en Espagne aux XIXe et Xe siécle.

6. Etnoliteratura

Desde que, também nos anos 60, começaram a ser lidos no Ocidente os estudos de Vladimir Propp, e não só a Morfologia do Conto 16, foi patente a valorização pela crítica ou pelo ensaio literário de textos que antes só pa-reciam interessar folcloristas, antropólogos e etnólogos. Não admira assim o aparecimento da designação “etnoliteratura”, por sinal convivendo pacifi-camente com a de “literatura étnica”, e a frequência de outras formas como “etnotexto” e “etnopoesia” (ou “etnolinguística”, “etno-semótica”, “etnomúsica” e “etnociência”). O recurso ao prefixo grego designativo de “povo”ou “na-ção”, já havia muito gerara – em 1787 - a forma“etnologia”. Mas associando--se a literatura e legitimado por prestigiados estudiosos como Algirdas J. Greimas17 (antes de outros como Jean-Claude Bouvier ou Roberto DaMatta), parecia apontar valores mais nobres ou autênticos do que os atribuíveis à chamada literatura “popular”, ou marcar especificidades.Greimas e J.Courtès concebiam a semiótica literária como oposta à semiótica etnoliterária, em-bora admitissem que a fronteira entre elas “não pode ser estabelecida de modo categórico”18

16 Vejam-se por exemplo os estudos de Édipo à Luz do Folclore (Lisboa, Vega, s/d ) ou Las Raices Historicas del Cuento (Madrid, Editorial Fundamentos, 1974).

17 V. Sémiotique et Sciences Sociales, Oparis, Seuil, 1976.18 Sémiotique – Dictionnaire Raisonné de la Theorie du Langage, Paris, Hachette,1979, p.135.

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7. Aliteratura

Neologismo inventado em 1958 por Claude Mauriac, que o usou em título de dois dos seus livros –L´Alittérature Contemporaine19e De la Littérature à l´Alittérature20-, por ele pretendia classificar os textos modernos ou de van-guarda, nos quais se tendia “para um pólo jamais atingido, mas na dire-ção do qual vão, desde que há homens que escrevem, os autores honestos”.Acrescentando que os elementos específicos da “aliteratura” não eram nem muito numerosos nem muito marcantes, de modo que ela poderia na maior parte das vezes confundir-se com a “nossa cara, boa, velha literatura”.

Com tão débil teorização, era de esperar que o neologismo acabasse com Claude Mauriac.

8. Ciberliteratura ou Hiperliteratura

Foi em 1947 que Norbert Wiener inventou a palavra “cibernética”, pela qual definia as relações entre os humanos e as máquinas, máquinas capazes de desempenhar funções como as do cérebro; mas só nas últimas déca-das, com a proliferação de “textos gerados por computador”, de blogues, de “chats”, de poesia cinética e de e-books, começou a sentir-se a necessidade de encontrar uma designação capaz de compreender as muitas e, nalguns casos, muito novas modalidades textuais literárias que nos vêm pela inter-net. Um dos pioneiros do estudo dessa literatura, Pedro Barbosa, falava em 1980, em título, de A Literatura Cibernética21. Já em 1996 publicava o livro A Ciberliteratura – Criação Literária e Computado, em cuja introdução pode ler-se: "Propomos assim denominar CiberLiteratura /.../ essas formas novas surgidas com o advento da informática e sem cabimento possível nos livros (do texto virtual aos geradores automáticos)./.../ A CiberLiteratura reco-briria assim, na hora atual, três géneros dominantes: hipertexto, geradores automáticos e texto animado” e indiciaria “uma verdadeira nova tendência

19 Paris, Albin Michel,1958 (2.ª ed., 1969).20 Paris, Grasset, 1969.21 Porto, Árvore, 1980.

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literária: não o fim do livro, mas seguramente uma outra maneira de ler, uma nova maneira de escrever e de intervir sobre a palavra”22

Num livro coletivo de 2005, editado em Barcelona por Laura Borràs Castanyer, e intitulado Textualidades Electrónicas – Novos Cenários para a Literatura, a editora fala também de “Ciberliteratura”, para a qual a máqui-na “pode ser considerada como co-autora do texto”, mas associa-lhe outros termos como“Hiperliteratura”, que é “uma literatura multilinear surgida da leitura dos seus leitores”, e a forma não prefixada mas sufixada

“Literatrónica”, que, segundo Juan B.Gutierrez, designa “a letra” (ou a lite-ratura) “que não pode existir sem o meio electrónico”23.

9. Oratura

Aparentemente para contornar inconveniências da expressão “literatura oral”, alguns estudiosos das literaturas ou culturas africanas que têm pou-co ou nenhum acesso ao escrito, puseram nos anos 60 a circular este ter-mo composto, que aparentemente conjuga oral e literatura (se não indica uma comunidade da antiga Índia). Ainda hoje muitos dicionários comuns (o Novo Aurélio, o Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa) ou incomuns o ignoram. Jeremy Hawthorn incluiu-o A Glossary of Contemporary Literary Theory24.Em Portugal, Ana Mafalda Leite, por exemplo, emprega-o neste con-texto:”Usamos o conceito de Oralidade com uma dimensão ampla, abrangen-do o sentido de Oratura e Tradições orais ou ainda de Literatura oral”.

Walter Ong recusou e criticou o uso de tal termo, na verdade equívoco; e outros há que introduzem nele ligeiras alterações: Lilian Pestre de Almeida referiu que “a oralidade tradicional corresponde o que os críticos haitianos denominam oralitura`”25; e Bruce A. Rosenberg falou de “oralature” na sua obra Folklore & Literature – Rival Siblings26

A proliferação de termos compostos à base de “literatura” pode asso-ciar-se à proliferação de qualificações genéricas de “literatura” também

22 Lisboa, Cosmos, 1996, pp.20-21.23 Barcelona, Editorial UOC, 2005.24 4.ª ed.,Oxford /N.York, Arnold, 2000.25 Anais do 1.º Congresso ABRALIC, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1988, p.139.26 Knoxville, University of Tenessee Press, 1991.

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frequentes nas últimas décadas e já mais ou menos codificadas. Algumas valem-se do substantivo “literatura”, acrescentando-lhe outro substantivo precedido de uma preposição (por exemplo:literatura de consumo, literatura de massa, literatura de vanguarda); outras limitam-se à aposição de um ad-jectivo ou de um substantivo adjectivante mais abrangente (marginal, trivial, menor, kitsch, light...) ou bem menos abrangente (infantil-juvenil, infanto--juvenil, policial, fantástica, científica...).

Será útil refletir sobre todas essas e outras designações ou classificações (o que aqui e agora não é possível fazer), que mais não fosse para tentar que a nomeação genérica da literatura commumente excluída da “literatura ca-nónica” seja menos inconveniente ou equívoca do que a vigente –“literatura popular”, “literatura tradicional”, “literatura oral”, e até “literatura de cordel”...-, ou para facilitar a análise de textos incertamente literários ou incertamen-te não-literários. A meu ver, a designação“literatura marginal” ou “literatura marginal izada”- que propus em dois volumes - reúne todas as vantagens, porque visa fundamentalmente o campo literário, sem estabelecer hierar-quias textuais, dá conta da exclusão, insinuando a ideologia ativa ou pas-siva – por parte dos autores ou do público e da crítica - da marginalização (política, moral, religiosa, mas também estética), e porque considera sem preconceitos textos antigos e modernos, complexos ou simples, cultos ou ingénuos, longos ou breves, orais ou escritos.

A agitação ou a exuberância taxinómica da literatura nas últimas dé-cadas denuncia algum mal-estar ou incerteza perante uma “instituição” (a “instituição literária”) que ao longo de mais de 40 séculos pareceu sólida e insubstituível, mesmo quando originasse polémicas e se lhe apontassem contradições ou flutuações globais e parciais.Mas pode ser também um si-nal da sua pujança e de alguma especialização no cumprimento das suas funções culturais e sociais, quando ela tem de dividir tarefas e espaços ou conviver com outras linguagens nascidas há poucas décadas, sejam elas as típicas do cinema, dos novos media, ou do computador, e até do telemóvel, que no Japão, onde conta 78 milhões de unidades, é já, desde 2003, suporte de romances e novelas, e no Brasil levou, em 2010, os organizadores per-nambucanos do encontro de escritores FLIPORTO a criarem o “1.º Prémio Nacional Literatura no Celular”.

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PARTE IIEDUCAÇÃO BILINGUE

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FORMAÇÃO DE PROFESSORES, PRÁTICAS DE EDUCAÇÃO PLURILINGUE E

CONTACTO DE LÍNGUAS

Ana Isabel AndradeDepartamento de Educação e Psicologia

CIDTFF (Centro de Investigação Didática e Tecnologia na Formação de Formadores) Universidade de Aveiro

[email protected]

Resumo

A partir de situações de contacto de línguas, reflete-se, neste estudo, sobre o desenvolvimento de práticas de educação plurilingue em contextos de for-mação inicial de professores, no sentido de compreender como podem estes profissionais formar-se para a construção de conhecimento capaz de con-duzir a uma educação plural do ponto de vista linguístico-comunicativo. Os resultados do estudo mostram que os professores em formação são capazes de desenvolver práticas educativas plurilingues desde que compreendam os argumentos que as justificam, quer relativamente ao desenvolvimento dos alunos com quem trabalham, quer relativamente ao seu próprio desenvol-vimento como profissionais da educação, aprendendo a gerir a diversidade linguística que circula nas nossas sociedades cada vez mais globalizadas.

Palavras-chave: educação plurilingue; formação de professores; práticas educativas; contacto de línguas

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ATAS DAS JORNADAS DE LÍNGUA PORTUGUESA - INVESTIGAÇÃO E ENSINO168

1. Introdução

O estudo aqui apresentado pretende constituir-se como uma reflexão sobre possibilidades de formação de professores a partir da exploração de situa-ções de contacto de línguas em direção a uma educação para o plurilinguis-mo e valorização da diversidade linguística no mundo globalizado em que vivemos. Assim, após uma primeira parte de apresentação de alguns concei-tos como o de contacto de línguas, de educação plurilingue e de educação para a diversidade linguística, apresentamos práticas educativas concebidas e desenvolvidas em contexto escolar por uma professora em situação de formação inicial, para refletirmos sobre as possibilidades que essas práticas abrem nos programas de formação de professores, isto é como é que, a partir de práticas concretas, compreendemos o que signica formar professores na lógica de uma educação, mais plural.

2. Contacto de línguas e educação para o plurilinguismo

A promoção plurilinguismo tem vindo a afirmar-se como uma finalidade da aprendizagem de línguas, em diferentes contextos educativos, cada vez mais confrontados com sujeitos de diversificados repertórios linguístico-comuni-cativos (veja-se, a título de exemplo, para contexto europeu, Beacco, Byram, Cavalli, Coste, Egli Cuenat, Goullier & Panthier, 2010; Pachler, 2007; ou para outros contextos, García, Skutnabb-Kangas & Torres Guzmán, 2006; Velasco & García, 2014).

A promoção do plurilinguismo numa dada comunidade pressupões uma educação plurilingue, uma educação para a diversidade lingüística, isto é formas de educação linguístico-comunicativa que, apesar de não serem sinónimas, implicam valorizar diferentes línguas no repertório de sujeitos e comunidades. Nesta medida, o plurilinguismo, utilização de mais do que uma língua pelos sujeitos-falantes, entende-se como diferente do multilin-guismo, encarado como a existência de diferentes línguas num dado contex-to (Pachler, 2007), e pressupõe modalidades de educação plurilingue, isto é modalidades educativas com recurso a diferentes línguas, num processo de

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ATAS DAS JORNADAS DE LÍNGUA PORTUGUESA - INVESTIGAÇÃO E ENSINO 169

desenvolvimento de uma competência plurilingue e intercultural (Conselho da Europa, 2001; Andrade & Araújo e Sá et al, 2003), bem como modalidades de educação para a diversidade linguística, cuja grande finalidade se traduz na compreensão do valor da diversidade linguística a diferentes níveis (en-tre outros, Della Chiesa, Scott & Hinton, 2012).

Neste sentido, importa explicitar os argumentos que têm vindo a ser convocados na defesa de uma educação para o plurilinguismo e que são argumentos de sustentabilidade ambiental e social, de responsabilidade social e de tipo cognitivo.

Relativamente aos argumentos de sustentabilidade ambiental e cultural, podemos dizer que eles contêm a ideia da necessidade de cuidar de diferen-tes tipos de diversidade, onde a diversidade biocultural ganha um papel de destaque pela importância de defesa do património da humanidade, tanto a nível biológico, como a nível cultural e linguístico, combatendo a per-da de línguas e culturas (Crystal, 2001; Harmon & Loh, 2010; Maffi, 2001; Romaine, 2013; Sktunabb-Kangas, 2002). Os argumentos de responsabilida-de social relacionam-se com a urgência da promoção de sociedades mais justas e inclusivas, o que parece também depender do domínio de diferen-tes línguas, com diferentes estatutos e funções, num respeito pelos direitos linguísticos e culturais. Os argumentos de tipo cognitivo sustentam a ideia de que o plurilinguismo e a vivência da diversidade linguística constituem formas de desenvolvimento de diferentes capacidades, tais como a atenção, a memorização, a transferência, o pensamento crítico, a flexibilidade e a criatividade, permitindo aceder a uma visão mais alargada do que significa ser humano. Nesta linha, vários autores têm vindo a defender que o domínio de mais do que uma língua tem efeitos sobre a plasticidade cerebral, au-mentando a probabilidade de sucesso académico, a capacidade de leitura, a capacidade de compreensão do oral e das suas unidades, o reconhecimento e a memorização de léxico e a sua mobilização (Cummins, 2012; GRosjean, 2010; Lourenço, 2013; Suisse, 2016; entre outros).

Todos estes argumentos se relacionam com a ideia de que as línguas desempenham uma função nos processos de inclusão e de exclusão social, bem como na produção de desigualdades, pretendendo fazer-nos perceber que as sociedades mais inclusivas compreendem melhor o poder das línguas como recursos a diferentes níveis, sendo mais respeitadoras da diversidade

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linguística e, consequentemente, mais capazes de transformar o capital lin-guístico em capital social e económico. Como escrevem Piller & Takahashi:

“the intersection between multilingualism, language learning and social inclusion is a multi-faceted one: to begin with, language me-diates access to key social inclusion sites such as employment, edu-cation or health. Second, a sense of belonging is negotiated through language and often tied to specific competencies. There is a wide-spread assumption that it is language proficiency levels that mediate social inclusion and that linguistic assimilation is the high road to social inclusion.” (2011, p. 372; Pachler, 2007).

De uma forma geral, podemos dizer que estes argumentos, a serem com-preendidos e aceites pelos profissionais da educação, podem conduzir à colocação de situações de contacto de línguas como situações de comu-nicação a analisar e a explorar em situações de ensino e de aprendizagem, que valorizam o encontro entre línguas. Mas vejamos o que entendemos por contacto de línguas.

O contacto de línguas foi, em termos educativos, e durante muito tempo, explorado apenas como exercício de tradução, encarado como um exercício de reconstrução de um texto produzido numa língua A para um outro produ-zido numa língua B, procurando que os aprendentes esquecessem as marcas dos processos de passagem de uma língua para outra, marcas de alternância ou de mistura de códigos (Andrade, 2013), para que dominassem as línguas em causa como se de monolingues se tratasse. Com a defesa do falar bi e plurilingue, as marcas do contacto de línguas no discurso dos sujeitos foram desdramatizadas e surgiram abordagens didáticas defendendo a exploração dessas marcas na rentabilização e enriquecimento do repertório linguís-tico-comunicativo dos sujeitos (Candelier, 2008), reconhecendo a natureza dialógica da vida humana, onde sujeitos e línguas se cruzam.

O contacto de línguas traduz-se na alternância e/ou na mistura de códi-gos no decurso de um acontecimento discursivo, quer através de palavras isoladas, quer através de expressões ou enunciados mais ou menos longos (Chen-On Then & Ting, 2011), para que os sujeitos possam dar significado a acontecimentos discursivos multilingues e neles possam participar. Nesta medida, a educação para o plurilinguismo não pode deixar de ser uma edu-cação que se preocupa com a participação dos sujeitos nos acontecimentos

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ATAS DAS JORNADAS DE LÍNGUA PORTUGUESA - INVESTIGAÇÃO E ENSINO 171

multilingues, com o desenvolvimento das suas capacidades de falantes plu-rilingues, o que se pode iniciar pela simples compreensão da existência de múltiplas línguas e do funcionamento dos seus modos de contacto.

Assim, a educação para o plurilinguismo implica uma preparação para o contacto de línguas e para o cruzar de fronteiras linguísticas (onde o su-jeito junta, separa, compara,…), traduzindo-se em processos de mobilização de recursos linguísticos vários e implicando um movimento de sujeitos entre línguas, com recurso à transferência de estratégias de comunicação e de aprendizagem, numa vontade de querer compreender e de se fazer compreender (Capucho & Oliveira, 2005; Piller & Takahasi, 2011; Santos & Andrade, 2005).

A educação para o plurilinguismo contraria práticas discursivas valoriza-doras de uma língua sobre as outras, não se confundindo com a promoção de um bi/plurilinguismo seletivo, promoção de línguas com determinados es-tatutos, normalmente línguas hegemónicas, com poder cultural, com grande presença nos mass media, como línguas com valor de mercado, económico e social, e que se relacionam com o desenvolvimento tecnológico e científico. A educação para o plurilinguismo valoriza todas as línguas, defendendo um plurilinguismo inclusivo, isto é valorizador das língaus que constituem os repertórios dos sujeitos, em processos em que os sujeitos retirem vantagens cognitivas, mobilizando conhecimentos e experiências linguístico-comuni-cativas ao serviço da construção de novas aprendizagens, de novas formas de ser e estar (Megale, 2005), o que implica considerar de outra forma o contacto de línguas. Neste sentido, a educação para o plurilinguismo em contexto educativo implica “uma didática transferencial (e transversal) […] com enfoque nos saberes e experiências disponíveis que o aprendente já possui e vai adquirindo e que importa explorar, desenvolver” (Martins, 2011, p. 419), utilizando pedagogicamente as marcas transcódicas que os apren-dentes observem, produzam e explorem. Por outras palavras, a educação para o plurilinguismo não pode deixar de eleger o contacto de línguas como conceito nuclear (Andrade, 1997; 2016; Cummins, 2012; Martin-Jones et al., 2012), já que ele sustenta o desenvolvimento da competência plurilingue e o maior ou comprometimento com a defesa dos argumentos que sustentam este tipo de educação.

A educação para o plurilinguismo desenvolve-se a partir do contacto

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de línguas e adota abordagens plurais das línguas, entendendo uma abor-dagem plural como “toute approche mettant en oeuvre des activités impli-quant à la fois plusieurs variétés linguistiques et culturelles. En tant que telle, une approche plurielle se distingue d’une approche singulière, dans laquelle le seul objet d’attention est une langue ou une culture particu-lière, prise isolément » (Candelier, 2008, p.68), o que equivale a dizer que as práticas de educação para a diversidade linguística em sala de aula, na escola, nos diferentes espaços e tempos educativos dependem das situações de contacto de línguas que nesses espaços e tempos se criam, sendo para a conceção, organização e gestão desses espaços que importa formar educa-dores e professores. Lembremos que,

“Despite the fact that codeswitching is a common feature of daily con-versational life in multilingual settings, the use of multilingual resources in interaction in classroom settings is often frowned upon (e.g. Lin 2008; Martin-Jones 1995; Turnbull and Dailey-O’Cain 2009; Wei and Martin 2009). This is particularly true in relation to second language (L2) learning and L2-medium learning contexts. One popular argument against the use of codes-witching in these contexts is that the use of first language (L1) can ‘interfere’ with the development of the ‘target’ language” (Chimbutane, 2013, p. 314; Lin & Li, 2012).

Para podermos combater a ideia de que a mobilização de uma língua pode prejudicar a aprendizagem de uma outra língua, tornando a sala de aula num ambiente monolingue, importa refletir sobre o que acontece, em situações educativas onde coexiste mais do que uma língua,

Language is central to the construction of meaning in the classroom. A classroom is a space where students from different linguistic back-grounds meet, communicate in two (or more) different languages and try to make sense of what they understand and know, and what they are doing (García, Bartlett, & Kleifgen, 2007). Students are constantly engaged in instructional conversation among themselves and with their teachers (García, 2010). The conversation may take place in lan-guages other than the language of instruction” (Chen-On Then and Ting, 2011, p. 299).

As interações de sala de aula podem, tal como em outras situações de comu-nicação, aceitar explorar as línguas que surgem no discurso, minimizando

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problemas de compreensão e aceitando a naturalidade do contacto de lín-guas como espaço de comunicação e de aprendizagem, tal como podemos ver no ponto seguinte a partir do caso concreto de uma professora em for-mação inicial numa turma de 3.º ano de escolaridade.

3. Educação plurilingue e formação de professores

As possibilidades de educação plurilingue estão, em nossa perspetiva, dire-tamente dependentes de práticas de formação de professores que os levam a conceber, implementar e avaliar abordagens plurais das línguas e culturas, explorando a diversidade linguística de contextos e sujeitos, bem como as marcas transcódicas de passagem de umas línguas para outras. Vejamos, então, para compreendermos as possibilidades de educação para o plurilin-guismo em contexto escolar português, o percurso de uma jovem professora em formação inicial, frequentando um mestrado em ensino (ver Decreto-Lei 79/2014, sobre perfis de formação inicial de professores em Portugal), que, nos dois últimos semestres, se organiza em torno de uma Prática Pedagógica Supervisionada (estágio) e de um Seminário de acompanhamento dessa prá-tica, destinado a supervisionar a construção de conhecimento profissional docente e a redação de um relatório a defender no final do percurso para obtenção do diploma.

Neste quadro, trata-se de compreender, a partir de um estudo de caso (Stake, 2007) concretizado na análise de um relatório escrito sobre práticas educativas plurais, como uma jovem professora em formação foi compreen-dendo as potencialidades de uma educação para o plurilinguismo no seu contexto de intervenção. De modo mais detalhado, trata-se de compreender como foi a futura professora capaz de desenvolver práticas de valorização da diversidade linguística, introduzindo o contacto de línguas em sala de aula, explorando-o com alunos do 1.º Ciclo do Ensino Básico, bem como foi capaz de refletir sobre a experiência de formação.

O programa de formação frequentado pela professora pretendeu articu-lar formação e investigação, em processos de observação de práticas, infor-mação sobre teorias e práticas educativas, planificação e ação educativas, avaliação e reflexão sobre resultados obtidos (Andrade & Martins, 2017).

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O programa, destinado a estudantes portugueses futuros professores, tinha como grande finalidade formá-los para a valorização da diversidade linguís-tica em contexto educativo, sabendo que a maior parte dos nossos estu-dantes tem um repertório linguístico-comunicativo não muito diversificado, onde a par do português encontramos, quase sempre e apenas, o inglês, se-guido do francês e/ou do espanhol, considerando-se os formandos, na maio-ria dos casos, monolingues. A professora aqui objeto de estudo não fugia à regra: não se considerava plurilingue, compreendia apenas bem o inglês, o francês e o espanhol, estas línguas com menos tempo de aprendizagem, e não tinha tido formação superior na área da educação intercultural ou na área das línguas e das culturas, desconhecendo os argumentos a favor da promoção do plurilinguismo.

Vejamos como foi a formanda capaz de construir conhecimento sobre a educação para o plurilinguismo, que projeto conseguiu desenvolver com as crianças e que reflexão fez da experiência de formação. De uma forma geral, podemos dizer que construiu o seu conhecimento profissional docente, pas-sando pelas seguintes etapas:

- uma etapa de informação sobre as línguas do mundo, sobre a Didática de Línguas, seus produtos e conceitos, sobre o currículo do Ensino Básico e sobre o processo de investigação-ação;

- uma etapa de ação, envolvendo a conceção e a planificação do projeto de intervenção educativa , bem como a intervenção propriamente dita;

- uma etapa de reflexão sobre toda a experiência, avaliando os ganhos obtidos e os aspetos a desenvolver no futuro.

Na etapa de informação, destacamos, pela análise do seu relatório de estágio (RE; Machado, 2012), um conjunto de atividades que permitiram à professo-ra em formação compreender os argumentos a favor de uma educação para o plurilinguismo desde os primeiros anos de escolaridade, a saber:

- a leitura de trabalhos anteriores realizados por colegas na mesma situação, trabalhos esses que concretizam a possibilidade de incluir nas práticas de ensino uma educação para o plurilinguismo. A jo-vem professora escreve “A escolha deste tema surgiu com a leitura da monografia “Conhecer a língua, conhecer novos Mundos… O Mundo Romanófono!!!”, […] Dado que apreciámos a monografia, uma vez que

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apresentava atividades muito interessantes a desenvolver com as crian-ças, decidimos optar pelo tema acima referido […] despertou-nos a curio-sidade para conhecer melhor as vantagens educativas do processo de IC [intercompreensão] no contacto com outras línguas, tendo em conta as possibilidades de desenvolvimento de competência de comunicação de crianças nos primeiros anos de escolaridade” (RE, p. 25);

- o contacto com recursos e projetos educativos variados, suportes di-dáticos de diferente tipo, exemplificando modalidades de educação para o plurilinguismo. Escreve no início do seu relatório para justificar a temática abordada, “Importa referir, aqui, que as atividades que pla-neámos e desenvolvemos com as crianças tiveram por base a análise dos Cadernos do LALE, uma vez que estes nos ofereceram uma vasta gama de tarefas interessantes no âmbito da IC e que, após a sua leitura, nos ajudaram a criar atividades capazes de trabalhar este aspeto nas crian-ças. Também a plataforma da União Latina (www.unilat.org) nos ajudou no planeamento das tarefas, uma vez que utilizámos, no nosso projeto, a história “O Gato das botas” disponível no site, em áudio e com animações, nas várias línguas românicas” (RE p. 26). Refere ainda a pesquisa rea-lizada por projetos de sensibilização à diversidade linguística desti-nados a crianças como uma etapa fundamental: “realizámos uma pes-quisa acerca de projetos desenvolvidos no âmbito da sensibilização das crianças para a DLC, onde nos deparámos com o projeto “Chainstories”, realizado numa turma do 1.º CEB, onde as crianças contactaram com crianças de outros países, trocando informações relativamente às suas nacionalidades” (RE, p. 42);

- a compreensão de que a educação plural também se justifica pe-los normativos que regulam o currículo escolar, “Tal como indica o Currículo Nacional do Ensino Básico (CNEB), ‘as aprendizagens em lín-guas estrangeiras, no 1.º ciclo, deverão ser orientadas no sentido de uma sensibilização à diversidade linguística e cultural’ (CNEB, 2001). Importa, assim, que as escolas criem espaços de ‘recetividade a outras línguas e culturas’, onde os alunos possam estabelecer relações entre outras lín-guas e a sua língua materna (LM) e contactem com diferentes modos de vida […], aspeto que é encarado como essencial pelo CNEB, o qual de-fende que se devem desenvolver nos sujeitos ‘características individuais

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relacionadas com a personalidade de cada um, nomeadamente atitudes de recetividade/interação em relação a outras formas de ser, de estar e de viver’ (CNEB, 2001: 40).” (RE, p. 25). A professora é ainda capaz de articular diferentes áreas curriculares, a educação para a cidadania e a língua portuguesa (RE, pp. 62-64);

- o conhecimento das línguas do mundo, quando a professora em for-mação sente necessidade de conhecer as línguas que circulam nas nossas sociedades, tendo para tal redigido um subcapítulo sobre o panorama linguístico europeu (RE, pp. 29 e segs) e abordado concei-tos da didática do plurilinguismo, como o conceito de competência plurilingue e o conceito de intercompreensão (RE, pp. 47 e segs);

- o processo de investigação-ação, proposto no quadro do programa de formação que frequentava, foi outro aspeto a merecer a atenção da formanda, para poder compreender a pertinência formativa deste tipo de metodologia, “De modo a contextualizar o nosso trabalho numa metodologia de investigação apresentámos, aqui, uma breve reflexão em torno do conceito de investigação-ação […], visando conseguir, através das atividades criadas para as sessões, compreender se era possível mo-tivar as crianças para a aprendizagem de novas línguas. […] A investiga-ção-ação assume-se […] como uma forma […] onde o investigador se aplica ativamente no processo, observando de perto a realidade que lhe interessa, pretendendo modificá-la e sobre ela intervir […]” (RE, pp. 57-59).

Neste processo de informação sobre educação para o plurilinguismo, ve-rificamos que se torna fundamental a compreensão de argumentos que permitam defender a abordagem educativa adotada, argumentos de caráter cognitivo, de sustentabilidade ambiental e cultural e de responsabilidade social, quando a professora se refere à “marginalização linguística”, ao aban-dono de certas línguas e à hegemonia do inglês, “o crescente imperialismo linguístico do inglês, vai dar lugar a uma marginalização linguística de muitas outras línguas, pelo que importa sensibilizar os cidadãos do mundo para a DLC [diversidade linguística e cultural] que caracteriza a nossa sociedade global (cf. Veiga, 2003: 32)” (RE, p. 30). Mas a professora em formação compreende ain-da, como vimos atrás, que existem argumentos de caráter formativo, didático e curricular, que a levam a perceber que ela também será capaz de desen-

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volver práticas de educação para o plurilinguismo, tal como podemos ver na análise do projeto que desenvolveu.

Relativamente à ação, centremo-nos no projeto intitulado Viagem pelas línguas. O projeto desenvolveu-se numa turma de 3.º ano de escolaridade com 20 crianças (8 do sexo feminino e 12 do sexo masculino) com idades compreendidas entre os 7 e os 9 anos de idade. O grupo de crianças era, do ponto de vista sociocultural, heterogéneo (classe média baixa e alta), in-cluindo 3 crianças classificadas com Necessidades Educativas Especiais e 3 crianças com encarregados de educação estrangeiros (Moldávia, Cazaquistão e São Tomé e Príncipe). O projeto construiu-se para promover o gosto das crianças pela aprendizagem de línguas e pelo plurilinguismo e ocupou 6 sessões de cerca de 1 hora, tendo mobilizado diferentes línguas, com des-taque para as línguas românicas (português, catalão, espanhol, francês, ita-liano e romeno) (RE, pp. 60 e segs). A professora definiu como principais objetivos: valorizar a diversidade linguística; ter gosto pela aprendizagem de línguas; tomar consciência dos contactos estabelecidos com diferentes línguas; comparar línguas, estabelecendo diferenças e semelhanças entre elas; transferir conhecimentos linguísticos, conhecimentos do mundo e es-tratégias de compreensão leitora no contacto com outras línguas; desenvol-ver a capacidade de compreensão de textos, frases e palavras em línguas românicas; desenvolver a competência plurilingue e a intercompreensão. Para tal foram realizadas atividades de diferentes tipos, tais como: resposta a inquéritos por questionário sobre as línguas; elaboração de uma biografia linguística; leitura de textos sobre a história da língua portuguesa; audição e leitura da história “O gato das botas” em várias línguas românicas (catalão, espanhol, francês, italiano, romeno); exploração de léxico proveniente do la-tim em diferentes línguas românicas; exercícios de tradução; resumo escri-to; reconto oral da história; comparação de palavras e excertos de textos em línguas românicas; análise de mapa político e linguístico da Europa; escrita de um postal com palavras em outras línguas europeias.

De uma forma feral, podemos dizer que a professora em formação desen-volveu um projeto coerente, orientado por finalidades educativas que colo-cam a compreensão da comunicação plurilingue como uma das característi-cas da sociedade atual, tendo-se preocupado com diferentes capacidades a desenvolver nas crianças pela introdução de situações de contacto linguís-

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tico ao seu alcance, levando-as a compreender que esse contacto existe a diferentes níveis, quer a nível macro (nos diferentes países, na Europa), quer a nível micro, e que é possível e desejável lidar com esse contacto em ações em que nos esforçamos por compreender o Outro ou fazer-nos compreender por esse Outro.

Para avançarmos, vejamos a reflexão realizada pela professora em for-mação sobre a experiência formativa, importando destacar:

- a consciência da necessidade de tornar os currículos escolares mais ricos e diversificados, também do ponto de vista linguístico, isto ao constatas, na resposta ao inquérito por questionário inicial, que a es-cola surge como um dos locais onde os alunos menos contactam com outras línguas, à exceção do português e do inglês. Assim, escreve, “uma vez que as línguas incluídas nos currículos escolares se prendem, apenas, com o português e o inglês […] está presente a necessidade de os currículos escolares serem mais ricos a nível linguístico, uma vez que a escola, sendo o local de formação dos alunos, deve torná-los cidadãos respeitadores da DLC, proporcionando-lhes contactos linguísticos diver-sos” (RE, pp. 99-100);

- a descoberta das potencialidades educativas do contacto de línguas, ao observar que os alunos o elegeram como a atividade mais cativan-te que realizaram, tendo destacado como positivo o esforço de acesso ao sentido de palavras e textos, orais e escritos, bem como a redação de um postal em mais do que uma língua. “Pudemos observar realmen-te como as crianças reagiram com as atividades propostas e o quanto se dedicaram à sua realização e, assim, fomos capazes de verificar que as atividades em IC desenvolvem, de facto, nas crianças o gosto pela aprendi-zagem de línguas […] gostaram da oportunidade de contactar com novas línguas, uma vez que perceberam que eram capazes […] de comunicar com povos oriundos de países estrangeiros, percebendo que seria necessário, para isso, estudar para aprender novas línguas” (RE, p. 107);

- a consciência das potencialidades formativas do trabalho desenvolvi-do, tendo a professora verificado que ela própria se desenvolveu, quer do ponto de vista pessoal, quer do ponto de vista profissional, escre-vendo “A realização deste projeto foi fundamental para a nossa formação pessoal e social, uma vez que tivemos a oportunidade de sensibilizar as

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crianças para a [diversidade linguística]” (RE, p. 26). E nesta capacidade de refletir sobre si própria, a futura professora descobre outras pos-sibilidades pedagógico-didáticas: “Terminada a implementação da ati-vidade de construção do postal, demos conta que podíamos ter realizado uma última tarefa, nomeadamente a revisão dos textos […]” (RE, p. 114)

Como síntese, podemos salientar que a professora conseguiu que a sua aula se tornasse um espaço mais amigo das línguas, pelas possibilidades de con-tacto de línguas que abriu, evidenciando capacidade de construir conheci-mento teórico e prático sobre a educação para o plurilinguismo, na gestão de varias línguas e áreas curriculares no discurso público da aula, sem nunca perder de vista as finalidades educativas a perseguir. Podemos dizer que, a partir de práticas pedagógico-didáticos que exploram as situações de con-tacto de línguas, a professora em formação mostra que é possível contribuir para outras formas de organização do espaço simbólico das línguas em prá-ticas discursivas que mobilizam diferentes línguas e mostram que o pluri-linguismo pode ser uma característica dos repertórios linguístico-comuni-cativos em circulação. Em síntese, o caso aqui retratado faz-nos perceber que é possível abrir, no sistema escolar português monolingüe, espaços de “translanguaging” (García & Wei, 2014), onde profesores e alunos aprendem a tornar-se plurilingües.

4. Reflexão final

Apesar da complexidade que tem sido referida em relação à formação de professores para a gestão da diversidade linguística em sala de aula, verifica-mos que é possível formar professores para o tratamento positivo do contac-to de línguas, levando-os a criar situações mais amigas das línguas, em pro-cessos de desenvolvimento de uma competência comunicativa mais plural e mais capaz de fazer aprender em diferentes áreas. Tal como escrevemos em outro lugar, é possível formar para gerir o curriculum escolar de outra forma, desde que os programas de formação permitam aos professores construir conhecimento profissional em diferentes dimensões e de forma sistemática, informando-se, intervindo e refletindo sobre as práticas que desenvolvem e as teorias que perfilham (Andrade & Martins, 2017). Sendo este apenas um

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estudo de caso, importa continuar a analisar as práticas de educação para o plurilinguismo que os professores são capazes de desenvolver em ambientes escolares. Importa continuar a pensar nos programas de formação a desen-volver, bem como continuar a investigar esses mesmo programas de modo a construirmos conhecimento que contribua para que os professores sejam verdadeiros agentes de uma educação para a cidadania, capaz de lutar por uma maior justiça social, também ela linguístico-comunicativa.

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O CABO-VERDIANO NA EDUCAÇÃO: IMPLICAÇÕES NO DESENVOLVIMENTO DA

LÍNGUA PORTUGUESA

Dulce Pereira Celga-Iltec, Universidade de Lisboa

[email protected]; [email protected]

Resumo

O cumprimento do objetivo da política linguística cabo-verdiana de criar as condições para um bilinguismo funcional, supõe a introdução do cabo-ver-diano no sistema de ensino, a par do português, recorrendo a modelos de educação bilingue já testados com êxito em Cabo Verde e na diáspora, em que as duas línguas são ao mesmo tempo objeto e veículo de aprendizagem.

Uma filosofia de educação bilingue que aceite o translanguaging como prática natural dos bilingues (incluindo os emergentes) e invista, precoce-mente, no desenvolvimento da consciência linguística implícita e explícita e na reflexão sobre o valor social das línguas e das suas variedades permite mudar o foco das interferências negativas para as transferências positivas e assim potenciar os efeitos benéficos da ginástica (meta)linguística exigida pelo exercício do bilinguismo em contexto escolar. Entre esses benefícios espera-se (como as experiências confirmam) a melhoria da proficiência em língua portuguesa que vários estudos e testemunhos de professores têm provado não atingir o nível desejado nos vários anos de ensino monolingue.

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A implementação generalizada da educação bilingue, preferencialmente desde o pré-escolar (em que a aprendizagem do português se faz com van-tagem em situação informal, a par da preparação para a (co)alfabetização), implica a regularização gráfica do vocabulário crioulo, a definição do modo de distribuição das línguas no currículo e a criação de materiais bilingues e programas de língua que, na sua progressão, adotem uma perspetiva con-trastiva, facilitadora de transferências positivas.

Palavras-chave: Educação bilingue, Cabo-verdiano, Português, Transferência, Translanguaging

AbstractThe fulfillment of the Cape Verdean language policy objective of creating conditions for functional bilingualism presumes the introduction of Cape Verdean into the education system, alongside Portuguese, using bilingual education models already successfully tested in Cape Verde and in the dias-pora, in which the two languages are both an object and a vehicle of lear-ning. A philosophy of bilingual education that accepts translanguaging as the natural practice of bilinguals (including emerging ones), and invests early in the development of implicit and explicit linguistic awareness and reflection on the social value of languages and their varieties, allows that the focus might change from negative interferences to positive transfers, thus enhan-cing the beneficial effects of the (meta)linguistic gymnastics required by the exercise of bilingualism in a school context. Among these benefits it is ex-pected (as experiments confirm) the improvement of Portuguese language proficiency that several studies and testimonies of teachers have proved not to reach the desired level in the several years of monolingual teaching. The widespread implementation of bilingual education, preferably from pre-school (in which the learning of Portuguese is advantageously done in an informal situation, alongside with the preparation for (co)literacy), im-plies the graphic regularization of the Creole vocabulary, the definition of the way languages are distributed in the curriculum and the creation of bilingual materials and language programs that, in their progression, take on a contrastive perspective, facilitating positive transfers.

Keywords: Bilingual Education, Cape Verdean, Portuguese, Transfer, Translanguaging

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1. Introdução

O grande objetivo da política linguística em Cabo Verde tem sido, desde a Independência (v.Semedo,Martins & Gomes,2015), criar as condições para um bilinguismo efetivo, assente na igualdade de estatuto entre as línguas cabo-verdiana e portuguesa e no pleno direito, por parte dos falantes, ao seu uso em todos os contextos, formais ou informais.

O desenvolvimento de uma língua faz-se, em primeira instância, pela apropriação, pelo maior número de falantes da comunidade, da riqueza da língua oral e escrita, nas suas variantes (inerentes, estilísticas, pragmáticas, sociais, regionais), nas diferentes áreas da gramática e do vocabulário, e também pela adaptação, sempre que necessário, a novos mundos de refe-rência e a novas exigências de uso.

Se o desenvolvimento linguístico pode, em certos níveis, ser objeto de uma planificação controlada (pelo incentivo político à investigação e à ins-trumentalização da língua, com a criação de vocabulários, de gramáticas, de obras literárias, etc.), ele só ganhará amplitude e consistência quando entrar no domínio (no verdadeiro sentido da palavra) da comunidade, o que implica o alargamento dos espaços de uso e de reflexão metalinguística, em parti-cular na educação e no ensino para todos.

Sendo o português a única língua de ensino oficial generalizado, po-deríamos pensar já ter atingido, em Cabo Verde, o mesmo nível de desen-volvimento que se desejaria para o cabo-verdiano, pelo menos no sistema educativo. Nada mais enganador, uma vez que, em contrapartida, está tra-dicionalmente confinado à sala de aula, na maior parte dos casos, carecen-do muitos dos falantes de mecanismos automatizados de referência e de expressão, sobretudo em contextos menos formais, o que convida a uma constante importação linguística do crioulo.

O objetivo do bilinguismo, sendo nobre em si mesmo, ainda mais se jus-tifica em Cabo Verde pois, libertando e sobrepondo os espaços de uso das duas línguas nacionais, vai permitir que cada uma aproveite do desenvol-vimento da outra e dos processos naturais de transferência positiva, típicos em situações de contacto em que não há hierarquização simbólica.

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A Escola, favorecendo, de forma controlada, o exercício sistemático do bilinguismo, pode também ser um espaço privilegiado de aferição e de cons-trução dos instrumentos linguísticos necessários a esse desenvolvimento, desde que se aceite a máxima de que o ótimo é inimigo do bom. A sequên-cia tradicional, perfecta, de normalização, instrumentalização e oficialização, antes de se passar ao ensino, que poderíamos reputar como ótima, é na verdade imaginada e, como tal, inibidora das mudanças que várias experiên-cias no terreno têm provado viáveis e vantajosas, sem porem em causa, pelo contrário, potenciando, o bem-estar das pessoas envolvidas e os objetivos linguísticos e educativos mais gerais.

Para cumprir os desígnios sociais, políticos e escolares, o cabo-verdia-no deverá entrar no sistema educativo de forma generalizada e pela porta da frente, não como mero apoio à construção de saberes (numa pedagogia scaffolding envergonhada), como recurso consentido por falta de meios ex-pressivos em língua portuguesa ou como intruso punido com o carimbo das interferências, tanto no discurso dos alunos, como no dos professores.

Para além dos resultados positivos das experiências de educação bi-lingue (Wright, Boun & Garcia, 2015), nomeadamente as que envolvem o cabo-verdiano (Pereira,2006,2011), estão também criadas as condições sub-jetivas, na comunidade, e em particular entre os educadores, para assumir o cabo-verdiano nas escolas, a par do português, como vários estudos têm mostrado (Freire,2007, Lopes,2011, Miranda,2013, Pereira,2010, Sanches, 2005). Há, no entanto, que afinar e aferir modelos e, acima de tudo, concertar ideias que definam uma filosofia norteadora da prática de ensino.

2. Para uma filosofia da educação bilingue em Cabo Verde

A presença oficial do cabo-verdiano nos currículos escolares, como língua e objeto de ensino, requer um acordo no modo de conceber o bilinguismo e o contacto de línguas e de avaliar os seus efeitos.

Há duas perspetivas que se opõem, com consequências diferentes. Uma, que corresponde à visão tradicional da Escola, analisa as línguas do exterior, como objetos sociais, limitados pelas suas fronteiras nítidas, e penaliza os

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falantes por as atravessarem. Outra, realista e psicológica, que assume que o contacto de línguas (e de variedades da mesma língua) se faz internamente, na mente dos indivíduos que autonomamente as convocam, de forma mais ou menos inconsciente, em função das suas necessidades de uso e recor-rendo a um natural translanguaging (“using [...] one’s linguistic repertoire, without regard for socially and politically defined language labels or boun-daries”(Otheguy,García & Reid, 2015:279)). Como afirma Ofelia García (2016),

There is an epistemological difference between the theoretical posi-tion on language contact that has led to the constructs of borrowing, code-switching, calques, language interference, etc. and the concept of translanguaging. Language contact studies start with named lan-guages as categories, and then look across these named categories. Linguists often refer to the behavior of bilinguals when they go across these named language categories as code-switching. It is an external view of language. But translanguaging takes the internal perspective of speakers whose own mental grammar has been developed in so-cial interaction with others.

For these bilingual speakers, their language features are simply their own.

Na verdade, as línguas, uma vez interiorizadas, passam a ser as nossas línguas que dominamos e usamos de forma diferenciada e que pedem desenvolvi-mento, sejam elas maternas ou não, primeiras ou segundas, predominantes ou secundárias, nacionais ou estrangeiras, para que possamos representar os mundos de referência, expressar o pensamento e interagir com os outros o mais eficazmente possível.

Partindo do pressuposto de que o bilinguismo é multimodal (García,2009) e de que ser bilingue não é ser duas vezes monolingue (Grosjean,1989), os modelos mais avançados de educação bilingue favorecem o translanguaging individual, mas recorrem ao mesmo tempo a uma abordagem cognitiva, de consciencialização linguística implícita e explícita sobre as línguas e a sua realidade social.

Isto permite uma harmonização inovadora entre a perspetiva tradicio-nalista da escola, submetida às exigências sociais, normativa, focada no combate às interferências e aos erros e a perspetiva individual, educativa, focada na aprendizagem, na curiosidade pela diversidade do conhecimento, na empatia, e no sucesso e bem-estar linguístico internamente definidos.

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Metaforicamente, a educação bilingue favorece e premeia as palavras que cabem no bolo (Fig.1) comemorativo do encontro, em Cabo Verde, em 2012, entre duas turmas de crianças do 1.º ciclo, umas cabo-verdianas (tur-ma de Flamengos, em Santiago) e outras de origem crioula e portuguesa (Turma bilingue, do Projeto desenvolvido pelo Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC), com o apoio da Fundação Gulbenkian, entre 2008 e 2012, no Vale da Amoreira, em Portugal (Pereira,2009)).

Figura 1 - Bolo comemorativo do encontro entre a turma de Flamengos e a turma bilingue do Vale da Amoreira

Por outro lado, promove, a seu tempo, a reflexão e a aprendizagem que le-vará a aperfeiçoar e a distinguir, comparando, Parabens bilingi. Nos ki djunta mo e Parabéns bilingues. Fomos nós que nos unimos.1

As experiências de educação bilingue provam que é possível, ao fim de al-gum tempo (recomendam-se pelo menos seis anos (Thomas & Collier,1997)), atingir um domínio que permite brincar com as línguas, intercalando-as, se-parando-as, traduzindo-as, alternando-as, em função das intenções expres-sivas e comunicativas de cada um. Veja-se a carta enviada pelas crianças da Turma Bilingue, aos seus amigos da escola de Flamengos, logo no início do segundo ano de escolaridade (Fig.2).2

1 De acordo com o sentido expressamente dado pela sua autora.2 Segundo os alunos, a carta estava escrita em duas línguas “porque gostavam de escrever

assim e porque os meninos cabo-verdianos também falavam as duas línguas”.

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Figura 2 - Carta da Turma Bilingue do Vale da Amoreira

Algo muito diferente do tecido linguístico manchado por erros de que só se tem consciência perante o traço corretor ou a sentença de insucesso, como o deste aluno universitário, com doze anos de ensino monolingue em por-tuguês, em Cabo Verde:

Eu comecei falar Portugues só apartir de oito anos porque tenho di-ficuldade em certo vocabulario e tambem em escrever correcto. O Português é a minha segunda língua por isso encontrei algumas difi-culdade quando chegava a Portugal. Quando comecei a assistir as au-las na universidade senti algumas dificuldade de compreender alguns vocabulário que o professor introduze.

É o predomínio deste tipo de discurso, entre os alunos que seguem o ensino monolingue, que determina, em muitos professores, o desejo de que o ca-bo-verdiano possa ocupar um lugar central na educação, embora por razões não totalmente coincidentes com as que motivam os programas de educa-ção bilingue referidos, como se depreende do depoimento seguinte (Lopes, 2011, Anexo 9, Inf. 29):

À laia de conclusão, reafirmaria que ser professor, hoje, em Cabo Verde, sobretudo ser professor de Português, não é nada fácil.

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[...] Torna-se inadiável o reforço da língua portuguesa nas escolas de Cabo Verde, e não só (do Jardim Infantil ao Liceu), com meios apro-priados e recurso aos “mass-media” e às novas tecnologias de infor-mação de uma forma massificada e, paralelamente, a introdução do ensino da/na nossa língua materna, para que os falantes cabo-verdia-nos conheçam e distingam as fronteiras entre as duas línguas nossas (o Crioulo e o Português), evitando, deste modo, a confluência mútua, o que muitos estudiosos nossos chamam hoje de “crioulês”.

De notar que alguns traços que, para muitos, são fruto de interferência do crioulo, no discurso dos alunos, poderão ser, antes, a apropriação de uma variedade de português cabo-verdiano que lhes serve de input, na aprendi-zagem, através do discurso dos próprios professores, entre outros. Veja-se, a propósito, como o seguinte texto metalinguístico, escrito em situação formal (dissertação universitária), deixa passar a ocorrência do mesmo tipo de in-terferência que se analisa criticamente (Miranda, 2013: 44):

Mas as interferências mais comuns nos aprendentes da L2 são no-tadas no capítulo das concordâncias a nível de género, uma vez que na Língua Cabo-verdiana (LCV) a diferenciação do género não é muito claro ou melhor há um único género, com algumas exceções.(Sublinhado meu).

Também esse desfasamento entre o ambiente linguístico dos alunos, em língua portuguesa, e a atual variedade-alvo da Escola, em Cabo Verde (a cha-mada norma do português europeu), encontra, nos modelos mais avançados de educação bilingue, um tratamento adequado, uma vez que se promove, de forma explícita, a reflexão sobre as variedades inter e intralinguísticas e sobre o seu valor social e, ao mesmo tempo, se ajuda a construir uma sensibilidade implícita às diferenças e ao modo de com elas lidar, tanto nos alunos como nos professores e na comunidade educativa mais geral, incluindo as famílias.

3. Modelos e currículos

Qualquer que seja o modelo adotado, a educação diz-se bilingue quando duas (ou mais) línguas são simultaneamente objeto e veículo de aprendiza-gem, no sistema escolar (Hornberger,1991:217).

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A partir desta base comum, são muitas as variações possíveis, quer nos objetivos finais (informados pela filosofia subjacente, seja ela assumida ou não), quer no modo (mais rígido ou mais flexível) de distribuição das línguas pelos anos escolares, pelos conteúdos curriculares, pelos tempos letivos e na própria sala de aula.

Os objetivos determinam três tipos básicos de modelos, cujas designações se aplicam, habitualmente, aos contextos de imigração em que as línguas mi-noritárias competem com as línguas oficiais e dominantes: de transição, em que uma das línguas serve como trampolim para uma mais rápida e eficaz aprendizagem da outra, sobretudo nos primeiros anos de escolaridade, e que acaba por ser retirada do sistema mais ou menos precocemente quando deixa de cumprir essa função; os de manutenção, que investem essencialmente em valorizar e preservar as línguas das minorias e as suas culturas, a par das lín-guas e culturas dominantes, e os de enriquecimento ou desenvolvimento, que incluem os falantes das maiorias no processo de aprendizagem das línguas em presença, qualquer que seja o estatuto social destas últimas (por exem-plo, os modelos de dual language bilingual education (Collier & Thomas,2004, García,2009, Lindholm-Leary,2001, Thomas & Collier,2012).

Embora o contexto sociolinguístico cabo-verdiano seja radicalmente diferente, uma vez que a língua portuguesa, ainda a única oficial, é aqui minoritária e a língua cabo-verdiana é maioritária e linguisticamente do-minante, são a filosofía que preside aos modelos de enriquecimento mútuo das línguas e as metodologias por eles desenvolvidas que melhor servem ao caso de Cabo Verde3.

Adotando um modelo de enriquecimento, importa ainda definir a dis-tribuição das línguas. O quadro seguinte (Quadro 1) resume as principais opções a considerar (entre junção e separação), num macro-nível, de ela-boração dos currículos pelas instâncias governativas, e, num micro-nível, mais flexível e intermutável, de definição pelas escolas e pelos próprios educadores, na sala de aula, que poderão ser diferentes consoante o ano ou o ciclo de escolaridade:

3 Não podemos esquecer, no entanto, que Cabo Verde é também, cada vez mais, um país de acolhimento, com uma percentagem de imigrantes (4% da população, em 2015) idêntica à de Portugal, pelo que esses modelos se aplicam plenamente na relação com as outras línguas presentes na Escola.

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ATAS DAS JORNADAS DE LÍNGUA PORTUGUESA - INVESTIGAÇÃO E ENSINO192

Quadro 1. Opções de distribuição das línguas

Separação

– Introdução faseada /sequencial das línguas. – Aulas de língua separadas (crioulo e português)/aulas

complementares específicas para cada uma das línguas. – Professores diferentes para cada uma das línguas. – Distribuição dos conteúdos curriculares pelas línguas/

abordagem repetida dos diferentes conteúdos nas duas línguas.

– Avaliação específica para cada uma das línguas.

Junção

– Introdução simultânea das línguas na oralidade e/ou na escrita.

– Aulas bilingues. – Professores bilingues/ um professor para cada língua na

mesma aula. – Alternância das línguas na abordagem das matérias e dos

conteúdos. – Práticas regulares de translanguaging (tradução,

metalinguagem contrastiva, recurso a materiais bilingues, atividades bilingues...).

– Avaliação conjunta das duas línguas.

Se ao nível das decisões governativas pesam fatores tão importantes como as restrições económicas (que podem condicionar, por exemplo, a atribuição ou não de dois professores, um para cada língua, em determinado ano es-colar), já ao nível da escola a flexibilidade desejável tem de assentar numa consciência muito clara e segura dos princípios da educação bilingue e dos seus objetivos (o que exige formação e monitorização sistemáticas).

3.1. Educação bilingue precoce

Uma das áreas de mais fácil implantação e generalização da educação bi-lingue é o pré-escolar.

Os estudos sobre o bilinguismo mostram as vantagens (cognitivas, lin-guísticas, metalinguísticas, educativas, culturais, sociais...) da educação bi-lingue precoce (Byers-Heinlein & Lew-Williams,2013, Espinosa,2015), quer pela ginástica linguística que promove, no exercício de passagem regular de uma língua a outra (Bialystok & Craig, 2012), quer pelo treino da reflexão sobre a linguagem, quer ainda pelos efeitos positivos nas atitudes e nos

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comportamentos linguísticos, que desenvolvem a empatia, reforçam a iden-tidade e facilitam a comunicação (Pereira, 2006).

Ao mesmo tempo que permite desenvolver a oralidade e o vocabulário em crioulo e em português (tendo em conta as áreas vocabulares previsivel-mente mais ou menos fortes, em cada uma das línguas), a educação bilingue promove nas crianças a apetência pelas línguas em geral e prepara-as para a (co)alfabetização e para a biliteracia (Gort & Bauer, 2012), através, nomea-damente:

- de um primeiro contacto com os alfabetos do cabo-verdiano e do português (que, em termos de grafemas, quase não diferem entre si);

- do contacto com estórias nas duas línguas, com os seus diferentes rituais, personagens, ambientes e lições subjacentes (v., por exemplo, os distintos papéis e características de personagens como o Ti Lobu e o Lobo Mau);

- de práticas bilingues: de reconto, descrição, dramatização (em que po-dem dialogar personagens falando línguas e variedades diferentes), etc.

Isto sem menosprezar nem desperdiçar o gosto das crianças pela reflexão sobre as línguas, o seu valor e as suas funções, e a capacidade de estabelecer os primeiros contrastes entre o crioulo, o português e outras línguas em pre-sença ou que venham a ser objeto de estudo durante a escolaridade básica.

No caso de Cabo Verde, em que a maioria das crianças só na escola tem pela primeira vez a oportunidade de tomar a palavra em português, a educa-ção bilingue permite a aprendizagem da língua portuguesa num ambiente ainda pouco formal, sem abandono da língua de casa e sem os constrangi-mentos (também para os educadores) das avaliações sumativas que frequen-temente inibem a inovação.

3.2. Os programas de língua

Centrando-nos apenas nos programas das línguas (e não dos outros conteú-dos, por elas veiculados) é fundamental uma progressão orientada por uma lente bilingue (Hornberger & Link,2012, Reyes,2006) que seja definida não só para cada ano, mas também para o conjunto dos anos da escolaridade básica e secundária e que tenha em conta a comparação entre a grafia, as

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ATAS DAS JORNADAS DE LÍNGUA PORTUGUESA - INVESTIGAÇÃO E ENSINO194

estruturas gramaticais, incluindo o léxico, a gramática do texto escrito, as práticas discursivas nos diferentes géneros textuais e as regras de uso social das duas línguas.

Dada a complexidade do puzzle que exige essa definição, consideremos aqui apenas alguns exemplos relativos à grafia (3.2.1) e à gramática (3.2.2.).

3.2.1. Progressão gráfica

Apesar da proximidade entre os seus alfabetos, são consideráveis as dife-renças entre o português (Port.) e o cabo-verdiano (CCV), na relação som/grafema e nos contextos de uso de alguns grafemas, sobretudo em palavras equivalentes, como as seguintes:

(1) Port. preso CCV. prezu Port. preço CCV. Presu

(Ao contrário do Port., em CCV /z/ só pode ser representado por <z>, /s/ por <s > e /u/ por <u>).

Assim sendo, na fase de alfabetização, sobretudo se se optar pela coalfa-betização, haverá vantagem em que a introdução e o treino dos grafemas otimize, implícita e explicitamente, as transferências positivas na aprendiza-gem, focando, de forma progressiva, os grafemas ou conjuntos de grafemas:

- com correspondência direta nas duas línguas (tais como <a, b, e, f, i, l, p,t, u...>), partindo, de preferência, de palavras com a mesma forma gráfica, também nas diferentes variedades do crioulo:

(2) CCV/Port.: batata, pata, pé, fé, fita, tia, dia, data, lua, lata, papa…

- que se contrapõem de forma regular, em certos contextos:(3) <k/c>: CCV. kama/ Port. cama; CCV kola/ Port.cola; CCV ka-neta/ Port. caneta.(4) <u/o >: CCV bunitu/ Port. bonito; CCV dedu/ Port.dedo.(5) < Ø / h>: CCV ora/ Port. hora; CCV otel/ Port. hotel.

- que se contrapõem de forma sentida pelos falantes como irregular:(6) < z / s, z>: CCV zona/ Port. zona; CCV roza/ Port. rosa CCV reza/ Port. reza.(7) < Vn/ Vn, Vm>: CCV djuntu/ Port. junto; CCV un/ Port. um; CCV kunpri/ Port. cumprir.

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ATAS DAS JORNADAS DE LÍNGUA PORTUGUESA - INVESTIGAÇÃO E ENSINO 195

- que são exclusivos de uma das línguas:(8) CCV: < dj, tx , ñ> (9) Port. < ç, c, -ss- gu-, qu->

3.2.2. Progressão gramatical

A mesma lente bilingue deve presidir à introdução progressiva dos conteú-dos gramaticais, de modo a orientar o aluno na comparação, nem sempre explícita, entre as estruturas das duas línguas. Partindo de uma perspetiva nocional-funcional, tomemos como exemplo o desenvolvimento da capa-cidade de expressão da quantidade que é crucial em todas as línguas (tal como a capacidade de expressão do tempo, do espaço, da causalidade, da dúvida, etc.) e exige uma abordagem transversal às suas diferentes áreas, abrangendo, nomeadamente,

- os quantificadores universais (todos, nenhuns...) e existenciais (al-guns, vários, bastantes, poucos...); os numerais cardinais, multiplicati-vos (dobro, triplo...) e fracionários (terço, meio, metade…);

- o número dos nomes, determinantes, pronomes e adjetivos (e, conse-quentemente, dos verbos, para efeitos de concordância com o sujeito, no caso do português);

- o grau (diminutivo, aumentativo) dos nomes, dos adjetivos (v. Port. lindinho, bonitão) e de alguns advérbios (v. Port. devagarinho, depressi-nha); o grau superlativo dos adjetivos (v. CCV rei di bon ‘ótimo’);

- os advérbios e expressões adverbiais de quantidade e grau (muito, pouco, mais, menos, demasiado...) e alguns adjetivos com valor adver-bial (v. CCV rixu em anda rixu ‘andar a grande velocidade’);

- outras unidades lexicais contendo traços semânticos de quantidade (v. CCV bokadu ‘uma grande quantidade, um grande bocado’ ou lepeté ‘um bocadinho’);

- afixos derivacionais que acrescentam informação de quantidade (v. CCV mexentu ‘que mexe em tudo’ ou Port. choradeira, barulheira)

e outros processos de quantificação como, em termos prosódicos, a duração vocálica (v. CCV sabe [´sa:bi] ‘muito bom, muito bem’), a nível discursivo, a repetição de palavras (v. Port. magro, magro, ‘muito magro’) e, em crioulo, a

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ATAS DAS JORNADAS DE LÍNGUA PORTUGUESA - INVESTIGAÇÃO E ENSINO196

nível morfológico, a reduplicação (v. CCV lenta-lenta ‘devagarinho’ ou nhas--nhas ‘muito depressa’).

Cada um destes pontos pode ser alvo particular de ensino dirigido, em diferentes anos de escolaridade, nunca descurando os aspetos que conver-gem (e por isso beneficiam de uma consolidação mútua) e os que divergem, sobretudo os que o fazem de forma oculta, não imediatamente percetível, e que, por isso, são passíveis de falsas análises, mal-entendidos e fossilização.

Assim, por exemplo, se os numerais cardinais não suscitam grandes pro-blemas na passagem de uma língua a outra (exceto na grafia, como em CCV un/ Port. um), já nos fracionários encontramos expressões que podem indu-zir em erro, tais como a palavra portuguesa metade, cuja correspondente, metadi, significa diferentemente, em cabo-verdiano mais fundo, ‘uma parte’. O mesmo acontece com os sufixos aumentativos nos sintagmas nominais em crioulo ( -a,-ona), que podem levar erradamente à confusão com o género feminino em português. Vejam-se os contrastes entre un rapas, uma rapas e uma rapasona, significando, respetivamente, um rapaz, um grande rapaz, um rapagão (e não uma raparigona). Outro ponto de habitual atrito decorre da grande diferença na marcação e nas concordâncias de número, no sintagma nominal, designadamente quando estão implicados quantificadores crioulos como txeu ou tudu que inibem a marcação do plural no nome (CCV txeu/tudu omi vs. Port.muitos homens/todos os homens).

É esta visão contrastiva e integrada que, introduzindo como fator de complexidade a relação específica entre as línguas, nas suas diferentes áreas, permite a elaboração de programas faseados de língua mais eficazes e adequados à educação bilingue.

4. Instrumentos e materiais

Para além dos programas de língua, outros instrumentos e materiais de en-sino são necessários, tanto para os alunos, como para os professores, entre os quais, antologias bilingues (e eventualmente bi ou multidialetais), gra-máticas contrastivas, vocabulários bilingues (gerais, temáticos e académicos, incluindo vocabulários específicos das disciplinas) ou baterias de atividades de translanguaging e de reflexão metalinguística.

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Mas, para tal, são fundamentais regras claras de escrita na língua ca-bo-verdiana (que não passam apenas por um alfabeto, mas exigem uma regularização, pautada por princípios de coerência, no interior da variedade adotada (Pereira, 2002)), que definam, nomeadamente:

- a forma gráfica das unidades referenciais e gramaticais, nomeada-mente dos compostos (CCV arku-da-bedja ‘arco-íris’ ou arku da bedja?), dos nomes próprios (Assomada ou Asomada?) e dos empréstimos ou inovações lexicais exigidos pela linguagem escolar;

- as variantes admitidas dentro de cada variedade (Crioulo de Santiago (CST): Kauberdi, Kauverdi, Kabu Berdi, Kabu Verdi ‘Cabo Verde’?; CST baka, vaka ‘vaca’?; Crioulo do Fogo: kafanhotu, kanfanhotu, gafanhotu, ganfanhotu ‘gafanhoto’?) e

- as variantes dialetais a considerar (CST. porku/porka, Crioulo de S. Vicente (CSV) txuke/txina ‘porco/porca’; CST baga-baga, CSV furmingó-na ‘formiga vermelha’; CST ka, Crioulo de St.º Antão: ne ‘não’).

5. Conclusão

A criação das condições ideais para generalização da educação bilingue leva o seu tempo, mas isso não impede que, mesmo que essas condições não estejam todas cumpridas, os ganhos da sua implementação, inclusive no que diz respeito à língua portuguesa, sejam rapidamente visíveis (Pereira, Martins & Antunes, 2012, Pereira, 2014), sobretudo em contraste com os resultados do ensino monolingue tradicional, tal como várias experiências demonstram, tanto em Cabo Verde como na diáspora.

Veja-se a ausência de reprovações nas turmas bilingues (de Ponta d’Água e Flamengos) que iniciaram a experiência, em Cabo Verde, em 2013/14. Segundo N. Moniz (comunicação no Encontro anual da Associação de Crioulos de Base Lexical Portuguesa e Espanhola (ACBLPE), Praia, junho de 2016),“não houve nenhuma reprovação no 2º ano, ano de escolaridade em que normalmente se verificam altas taxas de reprovação”. O mesmo aconte-ceu com as duas turmas do Tarrafal (Ex-EBC e Cabeça Carreira) que iniciaram a experiência no ano letivo seguinte (2014/2015) (Quadro 3).

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Quadro 3: Taxa de sucesso das Turmas Bilingues em Cabo Verde

Fonte: Moniz, 2016

Tal corresponde à perceção, por parte dos professores (v.Relatório final sobre a Experiência Bilingue no Concelho de S. Domingos, 2016, não publicado), de que “os alunos das turmas de experiência bilingue em comparação com as outras são mais desinibidos, mais participativos, assimilam melhor e com maior rapidez os saberes […] e apresentam melhores resultados”.

Só uma análise comparativa das produções, reflexões e atitudes linguís-ticas dos alunos (na sua relação com o input dos professores), pautada por critérios rigorosos, poderá aferir os reais efeitos da educação bilingue no desenvolvimento individual da língua portuguesa. No entanto, a avaliação dos professores, com a sua experiência de ensino, é um valioso e não dispi-ciendo indicador a considerar.

Em junho de 2016, na turma bilingue de Ponta d’Água, duas meninas do 3.º ano a quem pedi de surpresa que escrevessem duas frases, assim o fize-ram, sem hesitar (Fig. 3):

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ATAS DAS JORNADAS DE LÍNGUA PORTUGUESA - INVESTIGAÇÃO E ENSINO 199

Figura 3 - Escrita espontânea de duas crianças da turma bilingue de Ponta d’Água, Santiago

O rigor da grafia, com um único erro (ves) e o domínio perfeito das regras que opõem as duas línguas (ves/bes; lobu/lobo; ku/com; xibinhu/chibinho; de/di), o uso correto, apenas em português, do artigo definido e da marca de género onde não poderiam existir em crioulo (o chibinho/xibinhu; uma ves/un bes) e a flexão adequada de pessoa e tempo do verbo (gosto) por oposi-ção à forma crioula invariável (gosta) revelam, em duas expressões e poucos segundos, um nível de conhecimento e de autonomia criativa (v. Dulce/Dulsi) que deitam por terra o velho estigma da interferência da língua materna e só não surpreendem porque esse é o efeito esperado por todos aqueles que têm acompanhado, no terreno, experiências bilingues do mesmo tipo.

A quantidade não é necessariamente qualidade e não é por introduzir mais horas ou anos de ensino do português que os alunos terão melhores resultados linguísticos e escolares. Só a alteração das mentalidades relati-vamente à filosofia, aos efeitos e aos modos de incorporação precoce do ca-bo-verdiano na Educação, a par do português, permite cumprir os objetivos políticos de um desejável e socialmente justo bilinguismo funcional.

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As metodologias de ensino de uma variedade do português europeu como língua segunda, num contexto em que o português socialmente aces-sível e passível de interiorização, mesmo de forma meramente passiva (em muitos casos, desde a baixa infância), é uma variedade não europeia em mu-dança, geram insegurança linguística potenciadora das assistematicidades ou dos erros que pretendem banir, se a língua mais forte, o crioulo, ficar oculta e perdida no processo de aprendizagem e de desenvolvimento linguístico.

Nas palavras do físico e investigador na área da educação, Sugata Mitra (Prémio TED,2013), “temos de dar meios às crianças e acreditar nelas”, sa-bendo que, neste caso, basta legitimar e reforçar os meios que crianças (e professores) já têm –a sua língua primeira – acreditando na emergência de algo mais que a soma de duas línguas.

Referências

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RECOMENDAÇÕES

Cátedra Eugénio Tavares de Língua Portuguesa As II Jornadas de Língua Portuguesa - Investigação e Ensino, atividade anual da Cátedra Eugénio Tavares de Língua Portuguesa, que visa aproximar a investigação e o ensino, a universidade e as escolas, decorreram nos dias 09 e 10 de dezembro de 2016, no Instituto Internacional de Língua Portuguesa (IILP). Tiveram como tema a Educação Bilingue, visando   a vitalização de uma rede colaborativa de trabalho que atenda ao contexto educativo ca-bo-verdiano. Contaram com a importante participação das especialistas internacionais em matéria de educação linguística, Ana Isabel de Oliveira Andrade e Dulce Pereira, e recomendam as seguintes ações:

1. Divulgação, disseminação (e interiorização) dos pressupostos e da filosofia da Educação Bilingue na comunidade e nas Escolas, sensi-bilizando os pais, encarregados de educação e comunidade para as suas vantagens;

2. Desocultação, libertação e valorização das línguas presentes nas escolas, promovendo a confiança, a autoestima e a consciência lin-guística implícita e explícita das duas línguas, para que os falantes cabo-verdianos possam conhecer e distinguir as fronteiras entre as duas línguas de Cabo Verde (o cabo-verdiano e o português), com vantagens para a preservação da identidade de ambas e para o seu uso funcional e autónomo por parte dos falantes;

3. Adoptar, adaptando-o à realidade cabo-verdiana, um modelo de edu-cação bilingue de enriquecimento e desenvolvimento (v. dual langua-ge bilingual education), desde o pré-escolar, preparando as crianças para a (co)alfabetização e para o ensino bilingue e definindo os ní-veis/ciclos de ensino em que as duas línguas devem estar presentes, como objeto e meio de ensino;

4. Regularização da forma gráfica das palavras e instrumentalização do

cabo-verdiano, considerando todas as suas variedades e explorando, numa primeira instância, o que têm de comum;

5. Elaboração de currículos e programas bilingues flexíveis, com foco no falante/aprendente, determinando, para cada ano, e de ano para ano, formas de progressão no desenvolvimento das duas línguas, a

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nível vocabular, gramatical, discursivo e pragmático, tanto na oralida-de como na escrita;

6. Adoção de uma abordagem comunicativa e (meta)cognitiva de en-sino de línguas, centrando a intervenção didática no sujeito apren-dente e na sua relação com os objetos-língua, visando sempre uma abordagem plural das línguas;

7. Elaboração de materiais multimodais (orais, escritos, audiovisuais, informáticos) e, em particular, dos instrumentos necessários para a alfabetização e biliteracia;

8. Aposta num novo modelo de formação de professores (inicial e contí-nua), do pré-escolar ao ensino secundário, direcionada para o desen-volvimento da competência de comunicação plurilingue, da intercul-turalidade e de competências profissionais educativas que trabalhem a diversidade linguística e reflitam sobre o papel das línguas e das culturas nas situações de educação/formação;

9. Análise das práticas pedagógicas, visando intervir de forma crítica, reflexiva e inovadora na formação dos professores;

10. Desburocratização do ensino a nível administrativo e pedagógico, vi-sando fomentar a criatividade e a participação dos professores na busca das melhores soluções pedagógico-didáticas para as escolas;

11. Divulgação das boas práticas dos professores, criando uma platafor-ma de troca de materiais, de métodos de ensino eficazes e de produ-tos linguísticos dos alunos;

12. Criação de um grupo multidisciplinar central que dê apoio in loco ou a distância, usando plataformas informáticas, nas áreas das línguas, da metalinguagem e da didática, nomeadamente;

13. Utilização intensiva dos meios de comunicação social e das novas tec-nologias de informação e comunicação como, por exemplo, um progra-ma de rádio ou de televisão para promoção da educação linguística.

Praia e Cátedra Eugénio Tavares de Língua Portuguesa, 10 de dezembro de 2016

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PARTE IIIMATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO E A APRENDIZAGEM DE PORTUGUÊS COMO LÍNGUA SEGUNDA

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TECNOLOGIAS MÓVEIS PARA O ENSINO E A APRENDIZAGEM DE PORTUGUÊS LÍNGUA

MATERNA E SEGUNDA

Adelina MouraGILT, Instituto Superior de Engenharia, Porto

[email protected]

Resumo

As tecnologias móveis estão cada vez mais robustas e constantes, porém a sua utilização é pouco frequente na escola. Tratando-se de tecnologias do nosso tempo e consideradas ferramentas de aprendizagem, a sua integração na educação desafia professores e alunos a transformar o processo de ensi-no e aprendizagem. O desenvolvimento das tecnologias móveis nos últimos anos possibilitou mudanças nas formas de trabalhar, comprar, viver e apren-der. Esta evolução reflectiu-se também na educação, com alguns exemplos da integração dos dispositivos móveis dos alunos ou das escolas nas práti-cas educativas. Há cada vez mais alunos a usar os seus dipositivos móveis para apoio aos estudos fora da escola, mas a maior parte das vezes estão proibidos de os usar na sala de aula. A investigação tem vindo a descrever os benefícios da utilização de metodologias ativas nas práticas educativas e a apelar para a sua generalização em todos os níveis de ensino. Integrar tecnologias digitais na educação ajuda a tornar o aluno a interagir e a estar mais ativo na sala de aula. Por isso, as escolas devem repensar as suas polí-

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ticas proibicionistas e adaptar-se à utilização destas tecnologias, aceitando o novo paradigma social, cultural e formativo. Com este texto pretende-se contribuir para melhorar a compreensão da aprendizagem apoiada por dis-positivos móveis na aula de Português língua materna e segunda.

Palavras-chave: Aprendizagem Móvel, Dispositivos Móveis, Língua Portuguesa, Inovação Educativa

Abstract

Mobile technologies are becoming more  and more resourceful and  wi-dely used in modern societies, but  at school they still are hardly ever used.   As  they are present-day  technologies and also considered learning tools, their integration in education is a challenge for both teachers and stu-dents, to transform the process of teaching and learning. The development of mobile technologies in recent years has made possible refined changes in the way we work, buy, live and learn. This improvement has also been no-ticed in the education sector, with several attempts of using students’ smart-phones or school tablets in the teaching and learning classroom practices. More and more students are using their mobile devices to study, research and help them with out-of-school learning work, but most of the time they are forbidden from using them in the classroom. Research has been urging and enhancing the benefits of using active methodologies in educational practices and appealing for their generalization at all levels of educa-tion. Integrating digital technologies in education favours interaction and helps students to be more active in the classroom. For this reason, schools should rethink their prohibitive measures and support the use of these te-chnologies, accepting the new social, cultural and formative paradigm. With this text we intend to contribute to improve the understanding of the lear-ning process supported by mobile devices in the Portuguese mother tongue and second language classes.

Keywords: Mobile Learning, Mobile Devices, Portuguese Language, Pedagogical Innovation

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Introdução

No mundo digital tudo muda rapidamente e é preciso uma constante actua-lização sobre o estado global da Internet. Segundo dados recentes1, há mais pessoas a usar a Internet do que aquelas que não a usam e a tendência é para crescer. Quanto ao uso de dispositivos móveis, este já atinge mais de 66% da população mundial e a rápida disseminação dos smartphones tem levado a um crescimento significativo de utilizadores de Internet móvel a nível global. Estes mesmos dados, mostram que em Portugal, 70% da po-pulação usa a Internet, 59% usa as redes sociais, sendo que as subscrições móveis ultrapassam em 48% o total da população do país e mais de metade da população está ativa em algum dispositivo móvel.

Esta evolução tem tido reflexos no mundo educativo, com um aumento de experiências pedagógicas usando dispositivos móveis (Han & Shin, 2016; Moura, 2015; Moura & Carvalho, 2013; Rikala, 2015). Estas experiências es-tão a ajudar a escola a adaptar-se às necessidades dos estudantes. Os alunos usam cada vez mais os dispositivos móveis na vida privada e também para apoiar os estudos fora da escola, seja acedendo a conteúdos de aprendizagem ou como instrumentos de trabalho.

A aprendizagem móvel (mobile learning ou m-learning) é uma tendência que se está a instalar paulatinamente nas práticas educativas e formativas, um pouco por todo o lado, tirando partido dos avanços tecnológicos e das mudanças sociais. Embora não exista uma definição absoluta sobre m-lear-ning, várias definições têm sido apresentadas ao longo da última década mostrando o interesse da comunidade académica pelo assunto. Desde a primeira definição apresentada por Clark Quinn (2000)2, ainda muito cen-trada na tecnologia, até à definição apresentada por Crompton (2013:4), em que define m-learning como “learning across multiple contexts, throu-gh social and content interactions, using personal electronic devices”, no-ta-se que as definições têm evoluído ao longo dos tempos, acompanhan-do a evolução da própria tecnologia e as suas potencialidades no campo educativo. As pessoas estão a reconhecer os benefícios do mobile learning,

1 https://thenextweb.com/marketing-seo/2017/04/11/current-global-state-internet/#.tnw_CxzZ3TkA

2 http://www.linezine.com/2.1/features/cqmmwiyp.htm

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possibilitando que se venha a transformar mais como numa abordagem padrão e não tanto como uma exceção.

Para a UNESCO (2013:5) a aprendizagem mediada por dispositivos móveis pode desafiar os professores a inovar nas práticas de ensino e aprendizagem, visto que “mobile technologies can expand and enrich edu-cational opportunities for learners in diverse settings”. Desde a primei-ra Mobile Learning Week, em Paris, organizada pela UNESCO (2011)3, em parceria com a Nokia, que se vem discutindo como é que as tecnologias móveis podem ser usadas para ajudar a atingir os objetivos da educação. O evento de 20174, teve como tema “Educação em situações de emergência e crises”, permitindo discutir sobre como as tecnologias existentes podem fortalecer a inclusão na educação, preservar a continuidade da aprendi-zagem em contextos de conflito e desastre, catalizar a inovação no setor educativo e melhorar o impacto das intervenções humanitárias. Outros eventos sobre o mobile learning aconteceram recentemente, mostrando a importância que este conceito tem na educação, como por exemplo, “The 4th International Mobile Learning Festival”5. Neste festival, exploraram-se conceitos, práticas e questões que fornecem caminhos para a integração efetiva de tecnologias móveis e tecnologias de aprendizagem emergentes na educação, em todos os níveis e ambientes.

Também o crescente interesse da investigação académica pela integra-ção das tecnologias móveis na educação, em diferentes contextos educa-tivos, (Kukulska-Hulme et al., 2015; Moura, 2010, 2017; Sung et al., 2016) revela resultados positivos e interessantes, do ponto de vista pedagógico, e o quanto esta área do saber ainda precisa de ser estudada. No âmbito das línguas têm-se desenvolvido diferentes estudos integrando tecnologias móveis. Kukulska-Hulme et al. (2015) apresentam um guia baseado na in-vestigação que realizaram, com experiências de ensino e aprendizagem do inglês, em diferentes contextos, e a um quadro teórico para a aprendiza-gem de línguas assistida por dispositivos móveis (mobile-assisted language learning - MALL). Outras experiências de m-learning têm sido desenvolvidas

3 http://www.unesco.org/fileadmin/MULTIMEDIA/HQ/ED/ICT/pdf/UNESCO%20MLW%20re-port%20final%2019jan.pdf

4 http://en.unesco.org/events/mobile-learning-week-2017 5 http://imlf.mobi/

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em contextos formais e informais e em ambientes de aprendizagem colaborativa (Crompton 2013).

As práticas que partilhamos neste texto foram desenvolvidas em contex-tos formais de aprendizagem na aula de língua materna e estrangeira com alunos do ensino profissional.

1. Mobile learning: a importância das tecnologias digitais nas escolas

Qual é a real importância das tecnologias digitais nas escolas? Qual é o seu papel e como elas podem, efetivamente, agregar valor ao processo de ensi-no e aprendizagem? Estas são questões essenciais para melhor entender o poder transformador da tecnologia na educação. Vivemos na era da infor-mação e do conhecimento e as competências e habilidades necessárias hoje e no futuro exigem colaboração, comunicação, criatividade e sentido crítico. Na era digital em que vivemos é crucial saber o que fazer com os conteúdos, como os produzir, divulgar e partilhar. O mundo assiste a uma produção maciça de informação, como nunca aconteceu na história da humanidade, e é preciso saber como a usar de forma inteligente, para o bem comum. Como pode a tecnologia digital móvel, que nos permite estar conectados a todo o momento, ajudar a beneficiar de toda esta informação? Se temos tanta informação à mão então é preciso potenciá-la e utilizá-la o melhor possível, para atingir os objetivos educacionais, que são a prioridade na escola e esta deve adequar-se sempre às necessidades da sociedade.

Um bom uso pedagógico da tecnologia permite aliar pedagogia e tec-nologia de forma harmoniosa, através de práticas e vivências próprias dos tempos em que vivemos, que exigem modos de pensamento mais flexíveis. Mas são vários os fatores que influenciam a inclusão de experiências de mobile learning na educação formal. Algumas delas relacionam-se com a integração de TIC na educação, visto que o mobile learning é parte da tec-nologia educativa (Rikala, 2015). A tecnologia educativa tem evoluído muito ao longo dos tempos e tem-se disseminado rapidamente, mas ainda não há uma receita de sucesso. A verdade é que não há uma fórmula que sirva para todos os contextos. Por isso, o melhor é cada instituição olhar localmente e

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descobrir as necessidades da sua comunidade escolar e adequar o plano de integração de tecnologias ao seu próprio contexto.

O primeiro passo para a criação de um ecossistema tecnológico próspero é os alunos terem acesso à tecnologia. Isso já acontece, quando adotamos programas BYOD6 nas nossas escolas, porque os alunos chegam à escola cada vez com mais tecnologias. Ao professor só cabe aproveitá-las. Depois de ter a tecnologia o professor deve criar o seu próprio cenário educativo, em que permita que os alunos possam explorar, criar e crescer pessoal e intelectualmente, porque a aprendizagem é muito mais do que tecnologia. Trata-se de permitir que os alunos desenvolvam as competências neces-sárias para enfrentarem os desafios que encontrarão no futuro. Para isso, é preciso criar condições para que os alunos criem profundas reflexões e as partilhem com os outros, através, por exemplo, do blogue da turma.

É essencial que os alunos usem tecnologias atuais, como tablets ou smartphones para:

a) pesquisarem os locais mencionados no manual ou num romance que estão a estudar na aula e os partilhem através de Podcasts ou notas digitais;

b) desenvolverem colaborativamente um projeto que os ajude a solu-cionar um problema real;

c) criarem grupos de trabalho usando apresentações online para expor as suas ideias e resultados das pesquisas;

d) que possam criar pequenos vídeos sobre os livros que estão a ler e códigos QR com os links e os partilhem dentro e fora da escola;

e) que possam partilhar os trabalhos com os colegas através das redes sociais e receber comentários dos leitores.

Usar redes sociais, como o Twitter, para publicar informação relevante so-bre um tópico curricular e comentar as publicações dos colegas promove a aprendizagem social (Moura & Carvalho, 2010) e dá um contributo significa-tivo para o desenvolvimento humano. O principal é que a tecnologia esteja ao serviço da aprendizagem e não o contrário. Por isso, é preciso começar a usá-la para aprender a potenciá-la e beneficiar a aprendizagem dos alunos.

6 Do acrónimo inglês Bring Your Own Device.

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Num mundo global e conectado, encontrar identidades fixas e estáveis começa a ser raro. Os meios e as formas de comunicação on-line estão em constante mudança exigindo aos participantes o desenvolvimento de novas habilidades. Os nossos jovens também participam desta revolução tecnoló-gica, mas muitas vezes sem um conhecimento crítico de competências de pesquisa, avaliação e utilização da informação. É, por conseguinte, urgente que a escola ajude os alunos a desenvolver competências de literacia digi-tal (Dudeney et al., 2013), para fazer face aos desafios de hoje e do futuro. As competências digitais devem ser entendidas desde múltiplas perspeti-vas (Guikema & Williams, 2014) e podem ser desenvolvidas em todas as disciplinas e em todas as idades, por serem centrais na vida pessoal, social, educacional e profissional dos alunos. É essencial haver na escola uma pe-dagogia da Web e das múltiplas literacias, para se aproveitar o potencial do mundo digital. Para Pacheco Pereira7, o importante são as literacias, que são anteriores à utilização das tecnologias, e não estas em primeiro lugar.

2. Estratégias para integrar dispositivos móveis na aprendizagem

Como motivar as jovens gerações para a aprendizagem? A falta de moti-vação dos alunos para com os conteúdos curriculares é um obstáculo ao sucesso escolar. Para transformar a educação usando tecnologia há pelo me-nos duas formas, a pedagógica e a ferramenta mediadora da aprendizagem.

2.1 Sistemas de resposta rápida de audiência

Os sistemas de resposta rápida de audiência, mais conhecidos por clickers, são muito populares entre os professores e alunos e são uma tecnologia usada para promover a aprendizagem ativa. Martyn (2007) realizou um es-tudo em que comparou os resultados da aprendizagem resultante do uso de clickers em comparação com outras abordagens de aprendizagem ativa para saber concretamente a causa do aumento da aprendizagem. Embora

7 https://www.rtp.pt/play/p4178/e321612/verdade-ou-consequencia, minuto 44.

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sem resultados estatisticamente significativos, tanto o uso dos clickers como as metodologias ativas ajudaram a melhorar as aprendizagens dos alunos.

Atualmente existem diversas ferramentas (Kahoot, Socrative, Plickers, Quizelet, Quizizz, GoSoapBox, …) que vieram substituir os antigos clickers aproveitando o potencial dos smartphones ou tablets, com acesso à Internet. Estas ferramentas podem ser usadas para aprender, rever, reforçar ou con-solidar vocabulário, gramática ou conteúdos literários. Uma das platafor-mas de aprendizagem baseada em jogos, que pode ser usada para qualquer área de conteúdo e integra facilmente a tecnologia na sala de aula, é a app Kahoot8. Apesar de só permitir respostas de escolha múltipla e exercícios de ordenação é uma boa ferramenta para revisão e consolidação dos assuntos estudados na aula. Os alunos gostam de aprender através desta aplicação e é uma excelente forma de integrar tecnologias móveis na aula e ter os alunos participativos e comprometidos com os conteúdos curriculares e ao mesmo tempo avaliar conhecimentos na era digital. Desde há alguns anos que vimos usando esta app nas nossas práticas, possuindo mais de uma cen-tena de quizzes sobre os mais diversos assuntos do programa da disciplina de português9.

2.1.1 Para avaliar na era digital

Com o uso generalizado dos smartphones entre os alunos e o acesso à Internet a qualquer hora e momento, a escola pode proporcionar aos alu-nos a aprendizagem e a avaliação de conhecimentos dentro e fora da sala de aula. Utilizar ferramentas para criar quizzes como o Kahoot, GoSoapBox, Socrative, Quizlet e Google Forms, possibilita que os alunos tenham opor-tunidade de realizar exercícios de escolha múltipla e testes no seu tempo livre e na sala de aula. Estas ferramentas permitem também um feedback imediato aos alunos sobre a sua aprendizagem. Tornando-se ferramentas adequadas para a aprendizagem autónoma. Os dados recolhidos mostram que os alunos têm uma opinião positiva sobre o uso destas ferramentas para o sucesso da sua aprendizagem (Moura, 2016).

8 https://kahoot.com/ 9 https://create.kahoot.it/profile/linade

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2.1 Gamification: para promover a motivação dos alunos

Gamification é uma estratégia de aprendizagem que aproveita os elementos motivacionais de jogo em contextos não-jogo, seja a nível educacional ou profissional. Através da exploração de técnicas mecânicas (desafios, pontos, recompensas) ou dinâmicas de jogo (realização, competição) promove-se a melhoria dos resultados de aprendizagem. Quais são as vantagens da aplica-ção da gamification na sala de aula? Entre outras, pode melhorar os resulta-dos de aprendizagem e as competências dos alunos. Permite recompensar as ações de aprendizagem dos alunos e ajudar na assimilação de conhecimentos.

Há cada vez mais ferramentas para gamificar as aulas de diferentes níveis de ensino e programas curriculares. Para além das aplicações menciona-das antes, acrescentamos o Duolingo, ClassDojo ou ClassRealm. O professor também pode criar os seus próprios ambientes de aprendizagem inserindo elementos de gamificação. O projeto “Magos da Sabedoria10” (Figura 1) é um exemplo de um cenário de aprendizagem para a aula de Português gami-ficado. Ao gamificar o processo de ensino e aprendizagem estamos a gerar curiosidade, expectativa, superação, companheirismo e verdadeiras emoções educacionais. Com este projeto pretendemos aproveitar o potencial peda-gógico da gamificação para aumentar a motivação e implicação dos alu-nos no seu próprio processo de aprendizagem.

Figura 1 – Projeto de gamificação “Magos da Sabedoria”

10 https://sites.google.com/view/magosabedoria

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É um ambiente Web em que se apresenta um cenário de aprendizagem ba-seado na gamificação, levando os alunos a descobrir e a estudar duas obras clássicas da literatura portuguesa: Os Lusíadas e a História Trágico Marítima. Os alunos trabalham em pares. Este ambiente virtual de aprendizagem é enriquecido com tecnologias fixas e digitais. Os alunos usam o computador, o tablet ou o smartphone conforme for mais cómodo para a resolução das diferentes atividades. Esta aventura está cheia de missões, desafios e re-compensas. Através de vídeos, exercícios, jogos, provas, desafios, avaliações e recompensas os alunos aproximam-se do estudo de duas obras com algum grau de complexidade para os alunos do 10.º ano. É uma forma divertida e eficaz de estudar conteúdos curricularas considerados trabalhosos, cum-prindo ao mesmo tempo o programa da disciplina e mantendo elevados os níveis de aprendizagem. Com a gamification os alunos são capazes de assimilar os conceitos mais teóricos ao seu ritmo e de forma colaborativa. Gera-se um ambiente de aprendizagem dinâmico e interativo que ajuda a assimilar e desenvolver de forma criativa os conteúdos literários. Os pares vão descobrindo as diferentes missões e atividades propostas em função do seu ritmo de aprendizagem. Consideramos que esta estratégia permite que os alunos sejam responsáveis pela sua própria aprendizagem e atende à diversidade dos estilos de aprendizagem dos alunos e aumenta o grau de motivação. As aulas ajudam a desenvolver habilidade do século XXI.

Foi evidente ver como a atitude dos alunos foi evoluindo ao longo do projeto. Ao se aperceberem que as tarefas giravam à volta do trabalho exe-cutado por eles, tornou-os mais autónomos e responsáveis pelas ações desenvolvidas em cada aula. O facto de a atitude, o esforço e o interesse demonstrados pelas diferentes atividades propostas serem recompensados no Leaderboard, também levou ao empoderamento dos alunos, ao gerar es-tímulo à autonomia e tomada de decisão. Em cada aula, a primeira reação dos alunos era ver a sua posição no Leaderboard, refletindo-se na satisfação, da grande maioria dos alunos, por verificarem que estavam a evoluir e a ser recompensados através de pontos, emblemas e cartas.

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Conclusão

À medida que novas ferramentas e serviços on-line estão disponíveis novas oportunidade emergem, seja para a aprendizagem de uma língua estran-geira ou aperfeiçoamento da língua materna. Os resultados mostram que o uso de estratégias ativas e ferramentas digitais móveis podem ajudar os alunos a melhor compreender os conteúdos da aula e a aumentar os níveis de participação e envolvimento.

Apesar das perceções positivas dos alunos sobre o uso de dispositivos móveis como ferramentas de aprendizagem, há constrangimentos e desafios que o professor tem de resolver durante o processo de aprendizagem. Há já alguns anos que aliamos metodologias ativas e tecnologias móveis, encon-trando alguns obstáculos que condicionam o uso de dispositivos móveis, no-meadamente, a conexão à Internet da escola que, por vezes, é lenta e quebra as dinâmicas da aula, o que desencoraja os alunos. A realização de algumas tarefas mais complexas em pequeno ecrã é difícil para alguns alunos, menos proficientes no digital. O carregamento das baterias é outro problema que surge, mas de fácil solução.

É importante que haja discussão sobre a possibilidade de implemen-tar estas ferramentas nas práticas educativas de uma forma natural, para uma maior adaptação ao contexto tecnológico em que vivemos, potenciar as funcionalidades que estas ferramentas trazem ao processo de ensino e aprendizagem e responder às necessidades dos alunos.

É necessário continuar a estudar o uso de dispositivos móveis nas práticas de diferentes disciplinas, para obter dados que permitam confirmar tendências ou diferenças neste campo. Desenvolver experiências usando os dispositivos móveis dos alunos nas práticas curriculares é a forma de au-mentar a motivação dos alunos nas aulas, de experienciarem momentos de aula enriquecidas com tecnologias digitais e de os preparar para o futuro.

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Referências

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Dudeney, G., Hockly, N., Pegrum, M. (2013). Digital Literacies: Research and Resources in Language Teaching. United Kingdom: Pearson Education Limited.

Guikema, J., Williams, L. (Eds.) (2014). Digital Literacies in Foreign and Second Language Education. San Marcos, TX: Calico.

Han, I., Shin, W.S. (2016). The use of mobile learning management system and academic achievement of online students. Computers and Education, 102: 79-89.

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Martyn, M. (2007). Clickers in the classroom: An active learning approach. Educause Quarterly, 2, 71-74.

Moura, A. (2017).  Game-Based Learning to Promote Student Engagement and Motivation to Study a Novel from Classic Literature. In  René David & Aubin,Corentin (Eds),  Mobile Learning: Students’ Perspectives, Applications and Challenges. Hauppauge, NY: Nova Science Publishers, Inc., pp.1-31.

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Moura, A. (2015). iPad Program in K-12 Education: The Pilot Year. In: ZHANG, Y. (ed.) Handbook of Mobile Teaching and Learning. Australia: Springer, pp. 601-616.

Moura, A. (2010). Apropriação do Telemóvel como Ferramenta de Mediação em Mobile Learning: Estudos de Caso em Contexto Educativo. Tese de Doutoramento, Braga: Universidade do Minho.

Moura, A. & Carvalho, A. (2013). Framework For Mobile Learning Integration Into Educational Contexts.  In Zane L. Berge, Lin Muilenburg (eds.), Handbook of Mobile Learning. London: Routledge, pp. 58-69.

Rikala, J. (2015). Designing a Mobile Learning Framework for a Formal Educational Context. (Tesis doctoral). University of Jyväskylä, Findland. Recuperado em 22 de dezembro, 2017, de https://goo.gl/zrM8cY

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ATAS DAS JORNADAS DE LÍNGUA PORTUGUESA - INVESTIGAÇÃO E ENSINO 219

Sung, Y.T., Chang, K.E. y Liu, T.C. (2016). “The effects of integrating mobile devi-ces with teaching and learning on students’ learning performance: A me-ta-analysis and research synthesis”. Computers & Education, 94: 252-275.

UNESCO (2013). Policy guidelines for mobile learning. Recuperado em 2 de dezembro, 2017, de http://unesdoc.unesco.org/ima-ges/0021/002196/219641e.pdf/

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APRENDER A LÍNGUA COM O MOODLE

Luísa InocêncioUniversidade de Cabo Verde

Resumo

Atualmente, o desenvolvimento de Ambientes Virtuais de Aprendizagem (AVA´s), de que é exemplo a plataforma Moodle, conduziu a um aumento exponencial na oferta de recursos de suporte à aprendizagem em novos espaços e contextos.

A par de alojar um conjunto de recursos nativos, a plataforma Moodle tem a vantagem de permitir a inserção de aplicativos que potenciam o despertar no estudante do gosto e motivação para a aprendizagem de idiomas. Na Uni-CV, o uso pouco ambicioso do Moodle, a par de sinalizar um evidente desperdício do seu real potencial interativo, testemunha o total desconheci-mento pela maioria dos docentes da existência de ferramentas imprescindí-veis à aprendizagem de línguas. Referimo-nos, basicamente, ao Read Aloud, o Trabalho e a Mensagem Áudio, aplicativos digitais de utilização em linha.

Esta comunicação tem como objetivo sensibilizar os docentes para que estejam aptos para utilizarem os três recursos digitais, dando a conhecer as suas principais funcionalidades técnicas e potencialidades pedagógicas. Contribuir para a dinamização do debate sobre a utilização de recursos di-gitais disponíveis no ambiente virtual.

A metodologia utilizada baseia-se na descrição dos três aplicativos ele-trónicos, recorrendo-se a uma abordagem qualitativa do tipo exploratória,

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de natureza descritiva. É validada a tese de que o conhecimento da existên-cia dessas ferramentas e suas potencialidades pode potenciar o desenvolvi-mento de competências linguísticas e comunicativas na Uni-CV.

Palavras chave: ferramentas do Moodle; aprendizagem interativa; inovação pedagógica.

Abstract

Nowadays, the development of Virtual Learning Environments (AVA’s), such as the Moodle platform, has led to an exponential increase in the provision of learning support resources in new spaces and contexts.

In addition to hosting a set of incorporated resources, the Moodle plat-form has the advantage of allowing the insertion of applications that enhan-ce students’ awakening of the taste and motivation for language learning. At Uni-CV, the unambitious use of Moodle, along with signaling an evident waste of its real interactive potential, testifies to the total lack of knowledge of the existence of essential tools for language learning. We basically refer to Read Aloud, Assignment and Audio Message, digital applications for online use.

This communication aims to make teachers aware of their ability to use the three digital resources, showing their main technical features and peda-gogical potentialities. It also intends to contribute to the dynamization of the debate on the use of digital resources available in the virtual environment.

The methodology used is based on the description of the three elec-tronic applications, resorting to a descriptive qualitative exploratory-type approach. The results validate the thesis that the knowledge of the existen-ce of these tools and their potential can foster the development of linguistic and communicative competences at Uni-CV.

Keywords: Moodle tools; interactive learning; pedagogical innovation.

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1. Introdução

Com o advento da Internet e a evolução constante das tecnologias que a suportam surge a oportunidade de oferta de ferramentas e serviços com os quais a comunidade académica terá que estar, cada vez mais, familiarizada para que as possa colocar ao serviço da educação práticas de pedagogia diferenciada e dos modelos construtivista de aprendizagem. Este contexto desafia os envolvidos no processo de educação/formação a introduzir ino-vações nas suas atividades pedagógicas, adaptando-as aos seus diferentes estilos e ritmos de aprendizagem.

A Uni-CV reconhece a relevância da tecnologia digitais na melhoria re-novação pedagógica da instituição reputando-a de uma estratégia capaz de agregar valor à prática letiva. Assiste-se, ainda que timidamente, ao recurso a ambientes tecnologicamente enriquecidos, de que é exemplo a plataforma Moodle, como suporte à prática docente.

O recurso ao ambiente virtual de aprendizagem em Moodle – plataforma de e-learning e da tecnologia web -, remonta à 2008, data em que a Uni-CV entrou em funcionamento. Com efeito, e não obstante os significativos avanços registados até então, resultantes de esforços de integração deste software na prática letiva, com alguma alteração de práticas pedagógicas que daí advêm, o Núcleo de Apoio ao Ensino a Distância (NaEaD) debate-se ainda com dois grandes desafios, a saber: (i) subaproveitamento do poten-cial formativo deste poderoso instrumento de comunicação, partilha e de aprendizagem colaborativa, regra geral, usado como mero suporte para a disponibilização de conteúdos didáticos. Esta atitude parece gerar reservas e ceticismo acerca das virtudes da aprendizagem em contextos online, o que pode desestimular a desejável adesão a este recurso; (ii) fraco uso das ferramentas ditas incorporadas no Moodle, foco deste artigo, cuja exploração circunscreve-se aos seus recursos nativos, habitualmente de vasta utilização e aceitação no seio da comunidade. Deste modo, parece lícito afirmar que o não uso habitual das ditas ferramentas esteja relacionado com algum des-conhecimento da sua existência e potencialidades, e/ou com a falta de mo-tivação e domínio técnico de como as usar. Torna-se, assim, possível inferir da emergência de reforçar a sua divulgação, de modo a que se possa dele tirar maior benefício.

Decorrente do exposto, os objetivos fundamentais deste trabalho consis-tem em descrever as principais potencialidades e funcionalidades do Read

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Aloud, Mensagem Áudio e Trabalho, como recursos educativos para o ensino de línguas, reforçar a sua divulgação no seio da comunidade académica e estimular a auto motivação dos docentes para o uso das mesmas

2. Desenvolvimento

A proliferação do uso da Internet e o relativo aumento da sua largura de banda vieram imprimir uma maior eficácia à aprendizagem de línguas na Uni-CV, o que possibilitou a incorporação no Moodle de duas novas ferra-mentas, das quais destacaremos o Read Aloud, a Mensagem Áudio. O Trabalho, ferramenta nativa do Moodle e também objeto deste estudo, está represen-tada na Fig 1, abaixo.

Figura 1 – Aprender Línguas com três ferramentas do Moodle

Fonte: Figura concebida com assistência técnica do NaEaD

Como assinala Jonassen (2007), estes dispositivos caracterizam-se pela ca-pacidade de estimular nos estudantes o desenvolvimento de competências comunicativas, propiciar o ensino mais interativo, interessante e produtivo de línguas, para além de permitir o incremento do gosto e da motivação pe-la(s) unidades curriculares(s) que adotam essas ferramentas no seu processo de ensino e aprendizagem. De facto, a exploração das suas potencialidades transcende as barreiras clássicas do espaço e do tempo, já que o seu uso não está necessariamente condicionado à utilização de uma sala de aula física ou equipamento da instituição. Basta ter disponível um computador

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ligado à Internet de banda larga, para que seja possível a utilização de áudios e vídeos, entre outros recursos necessários a uma aprendizagem interativa de línguas.

Na linha dessas ideias, o citado autor advoga que mais do que criar as condições técnicas para uso desses recursos, impõe-se que o estudante es-teja suficientemente auto motivado, para que possa autonomamente de-terminar os seus objetivos e envolver-se em atividades de aprendizagem significativa de línguas.

2.1. Razões da opção pela plataforma Moodle

2.1.1. O Moodle e a suas funcionalidades

A plataforma Moodle, conhecida como Learning Management System, ou Ambiente Virtual de aprendizagem (AVA) foi criada, em 1998, por Martin Dougiamas, educador e cientista computacional, que entende a aprendiza-gem como uma atividade social, alicerçada, como sustenta Vilela (2012, p. 1), “em princípios pedagógicos e nas teorias de aprendizagem comummente aceites (…)” e tem como objetivo principal possibilitar a aprendizagem cola-borativa. Baseia-se, portanto, em teorias socioconstrutivistas que defendem a construção partilhada e colaborativa de ideias, conhecimentos e significados.

O acesso ao Moodle, cujo recorte é mostrado na Fig. 2, abaixo, é feito com recurso ao computador ligado à Internet e mediante uma senha de utilizador fornecida pela instituição gestora do software.

Figura 2 – Navegando no Moodle

Fonte: Print screen da página principal do Moodle utilizado na Uni-CV

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Importa mencionar duas categorias de conteúdos - Recursos e Atividades, - sobre os quais assenta todo o funcionamento do Moodle. Os primeiros con-sistem em conteúdos estáticos que geralmente não envolvem interação entre docente/estudante e são disponibilizados no contexto da unidade curricular. Apresentam-se em formato de ficheiros PDF e Word, páginas de texto áudios e vídeos a que os estudantes podem consultar, descarregar ou imprimir. Para criar esses recursos, o docente dispõe de um poderoso Editor de Texto que lhe permite inserir links, imagens e vários outros conteúdos multimédia. Como re-corda Gomes (2005), o Recurso serve para disponibilizar conteúdos, tais como: programa da disciplina, textos, vídeos, áudios, simulações, apresentações em PowerPoint relacionados aos conteúdos programáticos da disciplina.

As Atividades, diferentemente do Recurso, são conteúdos pedagógicos interativos e dinâmicos potenciadores de interações do docente com os es-tudantes e estes entre si, com os conteúdos e com o sistema de gestão de aprendizagem. Teste, Fóruns de Discussão Wiki, Lição, Chat, Trabalho, só para citar alguns, representam os vários exemplos de atividades que podem ser criadas no Moodle.

Para Vilela (2012, p. 79) as Atividades possibilitam,por exemplo, disponibilizar o enunciado de um trabalho prático e pu-blicar a avaliação dos trabalhos submetidos pelos alunos a um teste de avaliação de conhecimentos, atribuir a nota e dar feedback ime-diato e até para disponibilizar um Fórum de Dúvidas sobre um deter-minado tópico da matéria.

Posto isto, apresentam-se de forma esquemática os aspetos positivos de três ferramentas potenciadoras do desenvolvimento de competências linguísti-cas na Uni-CV.

2.2. Read Aloud, Trabalho e Mensagem Áudio: principais características

2.2.1. Read Aloud

É um poderoso plugin de texto que permite colocar à disposição dos interes-sados um modelo de leitura fluente e expressiva com uma gama enorme de funcionalidades que possibilitam, só para citar algumas:

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- avaliar a fluência da língua e apreciar a qualidade da leitura;

- identificar o número de palavras lidas incorretamente e corrigir a pronúncia de certas palavras;

- destacar frases com rolagem automática;

- melhorar a velocidade de leitura do estudante;

- introduzir vocabulário e proceder à contagem, por minuto, do número de palavras corretas;

- ler, em voz alta, páginas da web, notícias, documentos, e-books e, si-multaneamente, ocupar-se de outras tarefas;

- partilhar com outros aplicativos, conteúdos, entre outros.

Em suma, o uso desta tecnologia, para além de apresentar uma panóplia de funcionalidades, tem a vantagem de permitir a desconcentração da avalia-ção de determinadas competências, muitas vezes, de difícil aferição, usando um único instrumento de avaliação. Acresce o detalhe de apresentar uma in-terface simples e intuitiva que facilita a aprendizagem de utilizadores com deficiência visual.

2.2.2. Trabalho

É uma ferramenta que, segundo Vilela (2012), permitir ao docente solicitar trabalhos aos seus alunos, configurar tarefas/exercícios, os quais assumem diversos moldes: texto em linha (digitado diretamente no Moodle) e/ou fi-cheiros em diferentes tipos de conteúdos digital, de que são exemplos pe-quenos ficheiros de som ou vídeo, apresentações em PowerPoint, relatórios, folhas de cálculo, fotografias, entre outros.

As opções de configuração do Trabalho, ainda de acordo com mesmo autor, possibilita que o docente defina o período para a submissão do(s) trabalho(s). Permite-lhe configurar a data e hora limites a partir da qual o estudante pode começar a submeter as tarefas, assim como o tipo de pena-lização a que pode ficar sujeito, caso apresente trabalhos fora de prazo.

O docente tem a vantagem de em qualquer momento consultar os tra-balhos submetidos, corrigi-los, dar feedback, fazer comentários e proceder à avaliação dos exercícios. O estudante tem a possibilidade de reagir aos comentários de feedback produzidos ao trabalho que submeteu para a ava-

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liação, proceder às alterações que considerar necessárias e submetê-lo na versão final. Ou seja, em função do tipo de configuração feita pelo docente à tarefa, o estudante tem a oportunidade de atualizar o seu exercício, após a data limite definida. O docente pode ainda configurar esta ferramenta de modo a não permitir receber trabalhos em atraso e/ou penalizar os estudan-tes pelas submissões fora de prazo.

2.2.3. Mensagem Áudio

É um plugin que possibilita produzir gravações de voz, com duração máxima 5 minutos e publicá-las no Moodle. A consulta das gravações consente que o estudante melhore a pronunciação correta das palavras e enriqueça o seu vocabulário, grave áudios e proceda à sua publicação no Moodle, registando online e baixando em ficheiro MP3. Permite ainda ao docente dar feedback, produzir resumos, introduções, explanações em forma de áudio.

Apresentadas que foram as principais características das três ferramen-tas e, não obstante as suas inúmeras potencialidades, importa ter em aten-ção que estas não podem ser consideradas panaceia para a resolução das dificuldades relacionadas ao ensino de línguas na Uni-CV. Mais do que ex-plorar as potencialidades facultadas por essas tecnologias, torna-se neces-sário, como recorda Machado (2012, p. 19) é “(…) adequar as combinações de informação visual e auditiva aos conteúdos que se pretendem transmitir e planificar as atividades”.

A Internet e o computador têm sido em todo o mundo ferramentas im-prescindíveis à aprendizagem de idiomas e recursos incontornável para a construção da aprendizagem. O pensamento de (Machado, 2012, p. 21) tra-duz esta afirmação, ao referir assim à língua espanhola:

(…) um aluno que utilize uma aplicação multimédia para praticar a língua espanhola pode escutar a pronunciação correta das palavras à medida que observa a grafia enquanto lê um texto, melhorando assim a pronúncia das palavras, ao mesmo tempo que aumenta o seu vocabulário.

Atendendo à grande variedade de recursos interativos que o Moodle dispo-nibiliza, parece-nos constituir-se como uma ferramenta educativa vocacio-nada para o ensino de idiomas e um contributo decisivo neste processo.

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2.3. Mudança de comportamentos impõe-se

A valorização do potencial pedagógico das três citadas ferramentas implica que os docentes assumam uma postura proativa face aos novos desafios, para que, parafraseando Jonassen (2007, p. 88) “se tornem agentes de trans-formação do processo de ensino-aprendizagem”.

Ao estudante é exigido que valorize as diferentes relações que estabele-ce com a prática do domínio da língua, assegurando-lhe o acesso irrestrito à Internet de banda larga para que possa envolver-se de forma ativa na aprendizagem da língua e na sua proficiência.

3. Metodologia

Optou-se por uma abordagem interpretativa que se inscreve numa lógica exploratória, sustentando-se na convicção de que é possível transformar práticas pedagógicas alterando estratégias de ensino mais significativas e investindo na auto motivação dos docentes.

Aplicou-se pela técnica de entrevista a um docente que se disponibilizou para colaborar neste estudo, de entre os quatro utilizadores das três citadas ferramentas contactados.

Interpretando as informações prestadas pelo Núcleo de Apoio ao Ensino a Distância (NaEaD), é de salientar que a nível dos cursos de graduação existem 27 docentes de Línguas, dos quais 10 são de L. Portuguesa, 11 de L. Inglesa e 7 de L. Francesa. Desses 27 docentes, apenas 18,5 % (5) usam a plataforma Moodle, em que 14,8% (4 da L. Inglesa) usam o Read Aloud e a Mensagem Áudio, 18,5% (5 da L. Portuguesa) ficam apenas pela utilização da Atividade Trabalho e nenhum utilizador da L. Francesa.

A nível de Mestrados, 7 docentes do curso de Ensino do Português como Língua Estrangeira fazem uso do Moodle, disponibilizando conteúdos e de-senvolvendo atividades como Fóruns de Discussão e Trabalho.

Acredita-se que a reduzida taxa de penetração na plataforma Moodle parece residir na falta de vontade e de auto motivação para a inovação, con-figurando determinante sensibilizar os docentes para o desenvolvimento da capacidade criativa para conceber atividades pedagogicamente diversifica-

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das e bem estruturadas.

O inquirido evidencia algumas virtualidades das ferramentas que mais usa, conforme excerto, a seguir:

“Há 1 ano para cá, descobri as extraordinárias potencialidades do Read Aloud e da Mensagem Áudio que têm permitido os meus alunos ouvir áudio de modo interativo e fazer a gravação da produção oral livre (…). Um desafio que lhes permite trabalhar o nível da precisão da língua (…)”.

Reconhece ainda que a criação de atividades diversificadas ajuda os estu-dantes a aprender melhor, ao afirmar que:

“(…) Com o auxílio dessas ferramentas os alunos aprendem muito me-lhor, porque com o foco no resultado (avaliação) dos seus performances na leitura e na produção oral, o trabalho de “Language Improvement” fica ainda melhor: ”Production” – “Improvement” – “Production” .

Não obstante, frequentes interrupções da Internet, o grau de adesão dos estudantes às atividades solicitadas é grande, tendo em conta que:

“Os alunos aderiram 100% às tarefas que lhes solicitei e fazem-no com entusiasmo, cumprindo os prazos estipulados”, apesar de alguns cons-trangimentos com a velocidade da Internet que muitas vezes cria situa-ções de crispação. Mas mesmo assim os alunos prosseguem até ao fim”.

Em jeito de conclusão, o entrevistado refere à plataforma da seguinte forma:“Considero a plataforma Moodle uma ferramenta de grande valia no processo de ensino aprendizagem das disciplinas que lecciono”.

Face a estes depoimentos, estamos em crer que com os docentes sensíveis à mudança da sua prática, pró-ativos e dotados de competências de utilização pedagógicas da plataforma, os estudantes sentir-se-ão mais motivados para aplicarem-se na melhoria do seu desempenho linguístico. Exprimindo uma perspetiva fundamentada na opinião de Araújo (2016, p. 15), que entende que a plataforma “deve ser analisada como um recurso válido e eficaz de ensino-aprendizagem de língua”, diríamos, que o recurso a esta tecnologia se afigura como uma estratégia metodológica potenciadora do gosto para a promoção de competências linguísticas.

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4. Considerações finais

As ferramentas aqui sugeridas parecem propiciar uma interação mais rica e interessante com contextos de aperfeiçoamento de competências linguísticas, alargando as oportunidades de aprendizagem independente dos estudantes.

Remete-se para os docentes a capacidade de auto motivação, vontade e curiosidade para descobrir as estratégias mais adequadas à criação de ati-vidades pedagogicamente eficazes e à responsabilidade de decidir usá-las nas suas práticas.

Cabe aos de gestão a responsabilidade na criação de condições para a melhoria da proficiência dos estudantes na língua.

5. Bibliografia

Araújo, G. S. (2016). O ambiente virtual de aprendizagem Moodle como espaço Multimodal de ensino de Língua Portuguesa. Dissertação de Mestrado em Linguística Aplicada. Universidade de Brasília.

Gomes, M. J. (2005). E-learning: Reflexões em torno do conceito. Acedido em: https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/2896/1/06MariaGo-

mes.pdfJonassen, D. H. (2007). Computadores, ferramentas cognitivas: Desenvolver o

pensamento crítico nas escolas. Porto: Porto Editora.Machado, P. M. A. (2012). O uso de plataformas educativas no ensino- apren-

dizagem de Línguas: A Plataforma Moodle. Dissertação de Mestrado. Universidade do Minho. Acedido em: http://hdl.handle.net/1822/24088.

Vilela, A. (2012). Moodle 2 para professores: Explore todas as potencialidades pedagógicas do Moodle para promover o envolvimento, criatividade e moti-vação. Lisboa: Ed-Rom.

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